Capítulo 24.1 - Temporal


🚫 Capítulo com potenciais gatilhos

Estava nítido o afastamento entre nós. O jeito que ele me olhava, como se ainda acreditasse que eu desceria do palco, arrependendo-me das minhas escolhas. Mas isso não poderia acontecer. Eu queria mesmo estar em cima do palco, compartilhando aquele momento com Aono. Vê-lo tocar mais uma vez e sentir que fiz parte daquilo. Ver mais de seus sorrisos, que iluminam o seu rosto de uma forma tão bonita.

~ Flashback ~

- Tem certeza que não vai dançar com as meninas? Apesar de odiar te ver com aquelas roupas, ainda é melhor do que te ver do lado de um esquisito.

- Kentin. - Adverti.

- Nada contra, é claro. - Disse ele se defendendo. - É só que... Música clássica e você não combinam, gatinha. Puta papo de velho. Quem ainda escuta algo do tipo hoje em dia?

- Eu gosto de música clássica. - Respondi diretamente, sentindo os dedos de Kentin no meu cabelo. A três minutos atrás estava escutando os feitos do garoto no treino para o Interclasse, e agora estava tentando me esquivar dos seus comentários ácidos. Queria tanto que ele continuasse a se gabar...

- Desde quando?

- Não sei, só gosto. Tem período certo para começar a gostar das coisas?

- Bom, eu acho que não, mas... Realmente não consigo te imaginar gostando dessas velharias.

~ Fim do Flashback ~

A primeira nota ecoou no espaço fechado ao mesmo tempo que tive a certeza de que Kentin não me conhecia. E se eu permanecesse nesse corpo para sempre, ele nunca ia me conhecer. Ter essa certeza não significava terminar o relacionamento amanhã, porque muitas coisas ainda não estavam claras pra mim, e a principal delas, era o fato de estar ou não de passagem. Mesmo assim, diminuía o fardo que crescia em mim desde que abri os olhos e um mundo que eu não conhecia me recebeu, me lançando à Kentin, ao colégio, e a todos os acontecimentos que me trouxeram até aqui. Ter essa certeza era importante, pois apesar dos meus esforços, a culpa de não ter conseguido ver Kentin pelas lentes do amor, não era minha.

Deslizei os dedos pelas teclas, deixando o som me envolver. Leve, sorri com a mais pura certeza de que ali era o lugar onde eu queria estar, e de todos os outros caminhos, eu escolheria sempre o que me levasse ao banco que estou sentada agora. Suave, olhei por cima do ombro para Aono, convidando-o a valsar comigo. E nunca houve um sim mais rápido do que aquele que ele me dava agora, movendo o arco e produzindo som.

~ Flashback ~

- Nunca te disseram que a música também é uma dança?

Aono me olhava com as sobrancelhas arqueadas. Havíamos terminado o treino, e no momento, só estávamos jogando conversa fora enquanto ouvíamos a senhora Uzuhara tocar.

- Isso não quer dizer que temos que dançar para sincronizar a nossa música.

- Ah, eu discordo completamente, Sou-kun. - Deslizando os dedos pelas teclas do piano, a senhora olhava para nós dois com um brilho gentil no olhar. Como se estivesse conversando com dois netos. - Não há sincronismo maior do que dois corpos conversando. Se a alma de vocês conversarem, então a música também conversará.

Aono olhava para mim e para a senhora Uzuhara, com dúvida e um pouco de chateação. E enquanto eu e a senhora trocamos um olhar cúmplice, ele relaxou o corpo, dando de ombros.

- Tsc. Se não tem outro jeito.

- Então quer dizer que o senhor me acompanha nessa dança? - Brinquei, erguendo a mão.

- Não, não, assim não pode ser. - Mito advertia, impedindo o garoto antes que ele tocasse na minha mão. - Sousuke, é você que tem que fazer o pedido.

- E-eu!? - Praguejou o garoto, retesado. Prendi o riso, concordando.

- A Uzuhara-san tem razão. Isso não é coisa que se faça com uma dama.

- Tsc. - Aono se aproximava com as bochechas cheia de ar, e vê-lo daquela forma quando ficava irritado era bem engraçado. Enquanto prendia o riso, esperei pelo cortejo, que veio de maneira desajeitada. - Você aceita... Me acompanhar nessa dança?

- Sim. - Ergui a mão, sorrindo. Pegando-a, Aono depositava um beijo nas costas da minha mão, e aquele ato foi o suficiente para que o meu coração produzisse som antes que a senhora Uzuhara começasse a tocar. Avermelhada, deixei que Aono envolvesse a minha cintura, e a princípio, o que eu achei que era irritação, ao estar tão próxima, transmitia ansiedade. Aono suava e respirava de maneira irregular, e quando a música começou e começamos a nos movimentar, e ele foi obrigado a olhar para mim, vi receio e confusão nos seus olhos mais dilatados que o normal.

- Não vai pisar no meu pé. - Brinquei, mas Aono não respondeu, concentrado demais em mim para notar o que eu dizia. Seu olhar penetrante me calava aos poucos, deixando somente o barulho dos nossos pés e o piano da senhora Uzuhara preencherem o espaço.

~ Fim do Flashback ~

Merry Go Round of Life saia dos meus dedos com um endereço certo, e voltava para mim da mesma forma, atravessando a distância que nos separava na forma de som. Aono e eu devoramos a música e a reinventamos à nossa própria maneira, como passos de uma valsa particular.

Enquanto eu o olhava e sorria, Aono sorria de volta, entregando-me o som de seu arco. Já eu, dançava com os dedos sobre as teclas, entregando-lhe a música que aprendemos a compartilhar.

~ Flashback ~

- Até que você não é tão ruim. - Sorri. - Mas te falta prática.

Naquele momento, inverti as nossas posições, passando a ter controle dos passos. Com um olhar surpreso, Aono era forçado a acompanhar os movimentos precisos que fazia, pois aquele era o meu espaço. Bailar era o que eu mais fazia na minha vida passada, seja com Victor ou sozinha. E apesar de haver surpresa quando eu girava ou trocava a posição das minhas pernas, havia um certo prazer em se desafiar. Aquilo estava estampado nos olhos de Aono, vivazes.

- Não enquanto eu estiver no comando. - Ele sorriu, voltando a se colocar à frente do meu corpo. E eu sorri de volta, porque sabia que aquela seria uma boa disputa.

~ Fim do Flashback ~

Pode-se dizer que uma valsa é uma disputa entre corpos, além de uma conversa. A música também. Enquanto Aono e eu dialogamos com a nossa música, também disputamos. E isso fazia o nosso som chegar ao longe, ricochetear e nos dar energia para repetir o feito. Aono era como uma tempestade, mas naquele momento, me juntei a ele para fazer chover.

Abrindo um sorriso largo para a disputa que eu propunha silenciosamente, Aono deslizou o arco sobre as cordas como um anjo toca uma harpa. E o devolvi, na mesma leveza com a qual uma gota de chuva cai contra a janela. Apenas prelúdios do que realmente queríamos.

Risquei os dedos sobre as teclas, transformando o som antes leve, em trovoadas ferozes. E Aono retribuía o meu desafio com notas semelhantes às ricocheteios das ondas, influenciadas pela tempestade. E juntando sons tão ressonantes, fazíamos o nosso próprio temporal.

~ Flashback ~

Aono e eu disputamos cada passo, cada olhar, em uma guerra que não havia vencedor. Suas mãos, antes tímidas, firmavam-se em minha cintura, e os seus olhos, resistentes em me encarar, observavam-me com precisão. Como o anúncio do fim, as notas, as ondas, seja lá o que estivessem nos movendo, tornavam-se mais brandas. E assim como eles, nossos corpos agitados, se entregavam ao eixo.

~ Fim do Flashback ~

Finalizei com um último deslize sobre as teclas, ao mesmo tempo que o arco de Aono movia-se pela última vez. Depois de tantos sons, o silêncio parecia sufocante, tão sufocante quanto o sentimento que irradiava o meu peito.

Só naquele momento percebi que as minhas mãos tremiam. E que o suor se alastrava em meus cabelos, desfazendo o coque acima da minha cabeça. Aono estava igual, ofegante, como se tivesse acabado de sair de um transe.

Mesmo sentimento daqueles que assistiam, tão paralisados ao ponto de, apenas depois de 3 minutos completos, que usamos para ir até o centro do palco e agradecer, se levantaram e encheram o espaço de aplausos. Ouvindo-os, olhei para Aono, que não olhava para mim, mas para os aplausos que percebia. E para mim, somente para mim, guardei a imagem do seu sorriso.

- Vocês foram incríveis!! - Em um abraço conjunto, nossos amigos nos deixavam no meio, e apesar de ainda estar anestesiada do momento anterior, me deixei ser apertada. Aono foi o primeiro a se afastar, tossindo.

- Eu espero que sim. - Comentei. - Me sinto tão dolorida que poderia dormir por dois dias inteiros.

- Nossa, e eu! - Kaori comentou, se alongando. - Aliás, vocês viram o grupo da Kobayashi? Elas...---

- Então é verdade mesmo, meu filho... Você voltou para o violino.

Tudo aconteceu muito rápido. Em um momento estávamos conversando descontraidamente, e no outro Aono e os amigos estavam paralisados, como se todo o ar estivesse sendo drenado para fora do corpo. E ao olhar para a pessoa cuja aparição causou aquela reação, não precisei olhar duas vezes para congelar.

- Pai. - Aono se forçou a dizer, com raiva na voz.

- Você decaiu, Sousuke. Uma apresentação medíocre como aquela não seria do seu feitio caso ainda estivesse sob os meus cuidados. Se não fosse por essa pianista, que é muito boa por sinal e salvou essa porcaria de apresentação, você teria levado o meu nome à lama.

- Ahn, Aono-san, eu não sou pianista profissional... Cometi vários erros. Se não fosse o seu filho a me dar suporte...

- Aono? Então ainda está usando o sobrenome da sua mãe, Sousuke!? - O homem dizia com agressividade para mim, se voltando para mim com os olhos semelhantes a duas bolas de fogo. Ali eu tinha percebido o meu erro. Ele não era Aono... - Esse ingrato se chama Okuyama. Assim como eu, Okuyama Kyousuke.

- Peço desculpas, Okuyam...---

- Como você sabia que eu ia me apresentar aqui!? - Aono me interrompia, fechando os punhos. E todo o resquício do Aono que eu vi nos últimos dias se foi, restando apenas a dor que ele nutria.

- Você acredita que eu não tenha contatos aqui quando sou que pago os seus estudos!? Primeiro, não me apresenta a sua namorada. Agora, não atende as minhas ligações e ainda quer me impedir de assistir à uma apresentação de um colégio que eu tô pagando!?

Fiquei calada, pensando que o "sua namorada" havia sido para Kana, que assistia a tudo com os olhos semicerrados. Mas com o olhar de Kyousuke Okuyama para mim, empalideci.

- Está havendo um engano, eu não sou a...---

- Então se pagar os meus estudos significa que tenho que conviver com você, não precisa pagar essa merda, Kyousuke.

Antes que o pai pudesse o repreender pelo uso da palavra, Aono se afastou, abrindo espaço entre os presentes. Eu estava disposta a ir atrás dele, mas fui impedida de ir de imediato pelo pessoal da minha turma, que vinha ao meu encontro para me abraçar e elogiar a apresentação. Quando eu cheguei ao portão, só encontrei as nuvens pesadas e o clima noturno antes das 6 da tarde.

Voltei para dentro a tempo de ver o pai de Aono saindo. Nos esbarramos na entrada do auditório.

- Ele é um garoto difícil. - Kyousuke iniciou. Não sabia se devia responder, até o olhar dele encontrar o meu. Aono possuía muitos traços da mãe, mas algo na expressão do pai os assemelhava.

- Não é de se esperar que uma criança que tenha a vida virada de cabeça para baixo por causa dos erros dos adultos cresça com uma visão distorcida sobre as coisas ao seu redor?

- Pelo jeito, aquele moleque andou fazendo a sua cabeça contra mim. - Kyousuke riu, balançando a cabeça. Fechei os olhos, buscando o controle que eu precisava para não avançar em cima daquele homem. - Crianças são tolas. Não sabem nada da vida. Sousuke entendeu tudo errado naquela época, a mãe dele era uma...---

- Por favor, me poupe das suas tentativas de explicação. - Pedi, impaciente. - Sei o que você fez e o acho repulsivo por isso. Não espero nada do senhor, após todas as cicatrizes que causou em sua ex-esposa e em seu filho. Mas, se em alguma parte do seu coração, se ainda possuir um, existir sentimento por seu filho, peço que deixe-o em paz. Não espalhe ainda mais os caquinhos que estou tentando juntar.

Deixei o local sem esperar por resposta do homem que me olhava, boquiaberto. Quando entrei, todas as apresentações haviam sido concluídas, e as notas dos juízes e do público estavam sendo computadas. Ao término, os vencedores foram chamados ao palco, e quando Kaori, Keiko, Aono e eu fomos chamados como ganhadores das nossas respectivas categorias, suspirei, feliz pelas meninas, mas preocupada com o sumiço de Aono.

- Alguém anima uma comemoração!? - Keiko propunha, olhando para Ayane e seu grupo, que ainda ficaram para ver o resultado.

- Tô dentro! - Peiji levantava a mão, sendo acompanhado por Ogetsu.

- Eu acho que vou pra casa. Minha família veio para ver as apresentações, acho que vou com elas.

- Tão cedo assim, Sophi? - Kaori arqueava uma sobrancelha, se aproximando. - Tá tudo bem?

- Sim, sim. Eu só tô... cansada.

- Olha, se for por causa do Sou... - Peiji começou, coçando a nuca. - Relaxa que ele tá bem.

- Você conseguiu entrar em contato com ele!? - Esperei pela resposta com esperança, pois Aono não me retornava em nenhuma das minhas chamadas nem respondia minhas mensagens.

- Não, mas... Como posso dizer...? Sempre que o pai dele aparece, ele fica desse jeito. A relação deles é complicada.

Olhei para Kana, a única calada, e me perguntei se nem ela poderia fazer alguma coisa. Pelo olhar que ela me dirigia, sei o que ela pensava. Que a culpa de Aono ter se encontrado com o pai era minha.

E como eu estava me martirizando por aquilo. Se não fosse eu e minha ideia estúpida, Kyousuke não havia dito aquelas coisas. Eles não teriam se encontrado. E Aono não estaria distante novamente, como da primeira vez.

Me despedi do pessoal, sem energia para ficar mais. E mesmo quando estava na companhia de Hanako, Yuina e Tia Miya, e elas teciam elogios para mim e minha dupla, não consegui responder na mesma animação.

O outro dia surgiu sem uma gota da água prometida e com o fantasma das provas retornando à nossa porta. Algumas pessoas diziam que até o fim de semana aquela tempestade chegaria, outras diziam que era apenas balela da previsão do tempo. Eu ficava me perguntando como os meteorologistas ficavam, anunciando uma chuva que nunca chegava. Mas aquele pensamento logo se dissipava, pois outro ocupava a minha mente.

Coloquei a conversa com Kentin para debaixo do tapete ao não ter retorno nas mensagens que enviava, nem nas ligações, que caíam na caixa postal. Esperei a aula terminar e me despedi rapidamente das meninas, correndo até o StarBooks, mas nada. Aono não estava lá, e não apareceria nos próximos dias, pois estava afastado por questões de saúde. E ao receber aquela notícia, meu coração ficou mais perturbado do que já estava.

Recorri a Ayane, a Peiji e até a Ogetsu, mas nada. Eles também não tinham notícias e não conseguiam entrar em contato, e todos estavam igualmente preocupados.

Então, tentei com Kana. A garota me recebeu na saída da faculdade, e nervosa do jeito que estava, nem percebi os olhares estranhos e os cochichos zombadores dos alunos ao ver uma colegial no espaço deles. Trincando os dentes, a garota me olhava de cima a baixo, demonstrando não estar nada satisfeita em me ver.

- Eu disse que você ia acabar machucando ele, não disse!?

- Por favor, só me diga onde ele está. - Pedi, com os olhos marejados.

- E por que eu diria para uma garota egoísta como você? Só se importa com o que você quer. Não pensou em como era doloroso para ele voltar para um cenário que o fazia se sentir inferior?

- Nunca foi minha intenção...---

- Esse é o mal de vocês, garotinhas mimadas. Nunca querem fazer mal. Ele está bem, mas quer ficar sozinho. Se gosta mesmo do Sousuke, então respeita a vontade dele.

"Sousuke"... Assenti, pedindo licença e desculpas por incomodar. Em seguida, alguns metros depois, deixei todas as lágrimas que eu segurava na frente de Kana, descerem como cascata por meu rosto. O que eu estava pensando, achando que era tão importante assim na vida de Aono para que ele se apoiasse em mim?

Aono, era isso o que ele era pra mim. Para Kana e os outros, era Sousuke. Só isso já mostrava a diferença para qual fechei os meus olhos esse tempo todo.

E no restante da semana, tentei fazer o que Kana sugeriu, e seguir a minha vida sem perturbar mais Aono. Sorri e brinquei com os meus amigos, criei rodas de estudo e vi pela janela a chegada do verão. Decidi usar a outra semana para conversar com Kentin, já que precisava rebobinar esta. E quando estivesse pronta, seria a Sophie que deveria ser.

Meus movimentos robóticos terminavam em lágrimas toda vez que um dia de mentiras terminava. Sim, por que eu estava mentindo quando tentava convencer a mim mesma de ter deixado Aono para trás, quando o que eu mais queria era correr até ele. Um dia, depois do horário de aula, cheguei a ir até o apartamento dele, mas desisti ao lembrar das palavras de Kana. Ele estava bem e precisava do espaço dele.

Mas estar bem significava não frequentar mais a escola? E se o pai dele tivesse cancelado a sua matrícula? E se ele nunca mais voltasse? Eram tantas perguntas... Que já não me diziam respeito. Era difícil, mas era melhor assim.

O final de semana trouxe a chuva que todos esperavam. A princípio, nada parecido com a tempestade que era anunciada, mas assim como os sentimentos humanos, a quantidade de chuva que cai em um dia pode mudar. Devido a chuva, cancelei todos os meus compromissos que basicamente eram acompanhar Lya ao shopping. Mas não foi só pela chuva que não fui. Culpar o tempo era ser injusta com ele.

Ainda não conseguia me distrair por completo. Keiko e Kaori cobravam a minha presença nas conversas, a primeira quando me perguntava mais sobre Ayane, e a segunda quando me contava de mais desventuras amorosas. Pokko tentava me animar levando doces, e se tratando de comida, eu não podia negar. Mas nem os doces mágicos estavam me ajudando.

Para ocupar a cabeça com outra coisa, abri os cadernos e fiz minha própria revisão para as provas que estavam pra chegar. Da janela, observava as gotinhas pequenas de chuva, e aquele tec tec me lembrava o som das teclas do piano, e o calor do momento que compartilhei com Aono. Se eu soubesse que aquele seria o último...

Uma gota de chuva escorria na janela ao mesmo tempo que uma lágrima solitária preenchia o papel que eu segurava. Limpando-a rapidamente, sorri para Yuina, que se pareceu notar o meu rosto avermelhado, nada perguntou. Acho que Hanako havia instruído Tia Miya e ela a não me perguntarem nada.

No primeiro dia em que não tive notícias de Aono, desabei no colo dela e Hanako permitiu que eu chorasse e chorasse até ficar cansada. Depois disso, não a procurei mais. E vendo que eu precisava do meu espaço, e fazendo-me admirar cada vez mais por ser a mãe que eu não tive a oportunidade de ter, Hanako me cedeu aquilo que eu tanto precisava.

Um dia chuvoso passa mais rápido que um dia sem chuva. Constatei essa informação quando fechei o caderno e olhei para a noite que me recebia do lado de fora, junto com a chuva que se tornava cada vez mais forte, para a má sorte daqueles que duvidaram que ela chegaria. No noticiário, coberturas especiais sobre a chuva mostravam que a circulação dos trens e metrôs estavam paralisadas, e em algumas ruas já era possível ver o caos formado pelos bolsões d'água. Com uma caneca de chocolate quente na mão, Tia Miya balançava a cabeça em negação.

- Ainda bem que todas vocês estão em casa e ninguém precisa sair...

- Verdade. - Hanako concordou. - Foi bom você não ter saído com a Lya hoje, filha.

Assenti, encolhida com a coberta que compartilhava com Yuina. Liguei e desliguei a tela do celular, procurando algo para fazer e não encontrando nada. Mesmo que o relógio mal marcasse 21h da noite, estava pensando em me deitar. Não havia nada para fazer, e cabeça fazia era oficina de pensamentos complicados.

- Acho que já vou me recolher.

- Já? - Tia Miya perguntava, sem acreditar. - Mas ainda está tão cedo! Ainda nem começou aquele dorama que a gente gosta.

- Acho que a Sophie precisa descansar, Miyako. - Hanako piscou pra mim, me desejando boa noite. Sorri para ela, balbuciando um "obrigada" sem som.

Antes que eu me recolhesse embaixo dos lençóis do mesmo jeito que estava vestida, Yuina me visitou, perguntando se estava tudo bem mesmo e que eu parecia muito tristinha ultimamente.

- É as meninas do colégio que estão mexendo com você de novo, Sô?

- Não é não. - A tranquilizei. - É coisa de adolescente. Já já passa.

- Ser adolescente não é muito bom às vezes. - Yuina constatou e eu assenti, tendo plena certeza de que ser adolescente no mundo real era muito complicado.

- Tem seus altos e baixos. É por isso que você tem que aproveitar bem a idade que tem agora.

Yuina assentiu, prometendo que ia aproveitar. Antes de sair, minha irmã beijou a minha testa, desejando que meus sintomas de adolescente sumissem logo. Sorri, desejando mais do que nunca que o seu desejo fosse atendido.

Apesar de estar deitada, segurava o celular contra o peito na esperança que alguma coisa acontecesse. Não sei, eu só... sentia. Meu peito estava retorcido, com a certeza que algo muito importante estava acontecendo. Eu só não sabia o quê.

Minutos depois do desejo da minha irmã e o meu, minhas mãos vibravam. Não elas sozinhas, mas sim o celular que eu segurava. Me levantando de supetão, o deixei cair contra a coberta, e vasculhando-a, achei o aparelho e o peguei novamente, olhando para a tela.

Akkun

Atender Recusar

- Aono!?

1 minuto. 2. Depois três.

- Aono, tá ai?

Escutei barulho de chuva e carros, buzinas... Mas não escutei o que eu queria ouvir. Segundos depois, a ligação caía.

Insisti, ligando de novo, e de novo, mas a chamada não era completada. Eu estava disposta a esperar o tempo de Aono, mas aquilo, somado com o aperto que eu sentia no peito...

Não tinha noção do que fazia até estar enfiando uma calça jeans pelas pernas, agindo como se o tempo fosse o meu inimigo. A blusa foi escolhida pela disponibilidade da peça, e um casaco foi escolhido apenas para que eu não passasse frio. Peguei meus coturnos e a bolsa e atravessei o corredor como um jato, paralisando a todas na sala.

- Sophie!? Onde você pensa que vai?

Hanako se levantava, apontando para as janelas embaçadas. Tia Miya completava, achando a ideia absurda.

- Tá um temporal lá fora! O que você vai fazer, menina?

- Trazê-lo de volta.

- Trazer? Trazer quem? Sophie? Sophie!?

Abri a porta, abrindo o guarda chuva e calçando os coturnos na saída mesmo. Hanako segurava o guarda chuva, me parando.

- Mãe, por favor, essa é a única coisa que eu te peço. Não me impeça.

- Não é o meu objetivo. - Hanako revelou. - Mas eu preciso saber para onde você vai. A cidade está paralisada, minha filha. Não quero que se coloque em perigo.

- Eu não sei, mãe. Vou pra onde meu coração me levar. Prometo não me colocar em perigo, então por favor...

- Quem seria capaz de te parar... Desse jeito, parece até o seu pai. Sempre te achei a cópia dele. - Ela sorriu, alisando o meu rosto e afastando as mechas do meu cabelo castanho. - Que Kami te proteja, minha filha. Não saía de lá sem buscá-lo.

- Não vou.

Sorri, acenando conforme me afastava cada vez mais de casa. O vento forte ameaçava levar a minha proteção contra a chuva para longe, e quanto mais eu caminhava contra as poças d'água que se acumulavam, mais o meu corpo gritava para que eu voltasse. Mas eu não podia. Não quando ele precisava de mim.

Havia sido muito heroica com as minhas palavras, que pareciam ter saído de um mangá shoujo, mas aprendi com muito custo que aquela era a vida real, e a verdade é que eu não sabia para onde ir. Não podia contar com o metrô, e andar a pé sem destino era impensável. Esperei no ponto de ônibus deserto, trêmula e praticamente encharcada, com a pouca serventia do guarda chuva. Quando o veículo chegou, entrei, assustando até mesmo o motorista.

Encostei a cabeça na janela, acostumando à vista com o ônibus parcialmente escuro. O cenário ter me parecido um ambiente perfeito para a aranha assassina aparecer me fez rir baixinho, apenas para me entregar a um suspiro doloroso em seguida. Liguei a tela do celular, vendo que não havia ligações. E não importa quantas vezes eu voltasse a tentar, ele nunca atendia.

As buzinas me levavam de volta ao momento da ligação. Ao longe, Aono não parecia estar tão perto da rua quando me ligou. Mordi os lábios, descartando o seu apartamento das minhas opções. Não era possível que ele estivesse no Classic Music. O Hell's Bar era uma opção, mas confirmei com Ayane que eles não estavam lá. Ele poderia ter ido sozinho, mas... Não era isso. Meu coração estava me levando para outro lugar.

- O prédio comercial! - Gritei alto o suficiente para chamar a atenção do motorista, que se sobressaltou. E emendando uma desculpa em um pedido para descer, voltei a abrir o meu guarda chuva, decidindo ir a pé, devido ao congestionamento que me faria chegar tarde demais.

Pulei em cima das poças d'água, não me importando se ficaria encharcada. Lutei contra o vento que me levava para trás, usando toda minha força para ir para frente. Ignorei o tremular dos meus lábios e os olhares dos poucos transeuntes que tentavam fugir da chuva, enquanto eu mergulhava de cabeça nela. E finalmente, cheguei ao meu destino.

O prédio continuava do mesmo jeito da última vez que o visitei, e refazendo o caminho que me levava ao andar mais alto, pedi aos deuses que meu coração estivesse certo. Que, ao abrir aquela porta, o encontraria lá.

A mecha loira voava solitária, sendo a única que ainda se rebelava quando todos os outros fios estavam grudados contra o pescoço do garoto. De costas, Aono parecia perigosamente perto da cerca de proteção, seus pés a um passo daquilo que meus sonhos tanto me alertavam. Mas não poderia ser assim. Não podia acabar daquele jeito.

- Não!! - Gritei. Minha voz ecoando contra a chuva que molhava a nós dois.

Aono se virou. A água da chuva criando uma cascata abaixo dos seus olhos.

- Jones. Como você me achou aqui?

- Não pode acabar assim! - Continuei gritando, enquanto as lágrimas se misturavam à chuva e escorriam pelo meu pescoço. - Não pode... Você não pode virar uma lembrança! Não quero me lembrar de você desse jeito!

Aono não respondeu, nem se moveu. O que significava que a qualquer momento, a chuva poderia ganhar tons de sangue. E os meus pesadelos, aqueles que eu tanto lutei, se tornassem realidade.

- Eu sou egoísta, eu sei! - Comecei, pedindo forças aos céus para conseguir falar sem tremer. - Pensei que poderia te salvar. Que eu poderia impedir que isso aqui acontecesse, mas... Eu só estava pensando em mim! Agi por meios que me beneficiavam! Então se quiser, pode me odiar à vontade! Mas por favor, se puder me ouvir uma última vez, eu peço... Que a partir de agora, você seja um pouco egoísta também! Quem liga se as pessoas falam de você? Se te comparam com o seu pai? Quem liga se aquele homem só se importa com os interesses dele? Pegue tudo pra você! Os comentários, os achismos dele, tudo! E os devore por inteiro!

Frente a frente, o vi iluminado por um raio que cortou o céu. E só por causa dele pude ver a surpresa nos olhos de Aono, que ainda possuíam uma fagulha de vida, e era aquela que eu queria agarrar.

- Deposite todo o seu ódio em mim, se for possível. Mas não faça... O que está pensando em fazer.

- Eu jamais poderia odiar alguém... Que está tentando me salvar. Seja os motivos que a levaram a fazer isso, Jones... Não odeio você.

- Então...

- E é por isso que eu não posso ficar ao seu lado. Não sou merecedor dos seus cuidados. Se você estiver livre, então...---

- Eu nunca desejaria isso! - O cortei. - Quem decide se você é ou não merecedor dos meus cuidados? A partir de hoje, vamos nos cuidar mutuamente. Eu também preciso de você. Preciso tanto, que não sei quem serei se você não estiver aqui.

- Você tem o Kentin, as meninas...---

- E nenhum deles é você.

Aono se calou, sentindo a potência das minhas palavras, e a certeza com as quais eu disse, sem titubear por um instante.

- Você não consegue perceber que para mim, é insubstituível? Mas não peço que fique por mim. Peço que fique por você. Eu só ficaria muito contente se decidisse ficar.

Aono olhava para baixo, para onde a vida continuava sem imaginar o que acontecia acima de suas cabeças. E naquele momento, com a sua aproximação, meu coração gelou e eu instintivamente fechei os olhos, sentindo que havia falhado.


Um baque. Mordi os lábios, me recusando a aceitar que aquilo tinha acontecido sem que eu pudesse fazer nada. Na minha frente, Aono se foi... e eu jamais me perdoaria por aquilo.

Me neguei a abrir os olhos carregados de lágrimas dolorosas, apegada ao silêncio amargo da chuva que não cessava. Mesmo quando braços largos me envolveram, e um perfume de chuva misturado à café preencheu as minhas narinas, ainda me recusei a enxergar a realidade.

- Você é mesmo irritante, Jones.

- O quê!? - Abri os olhos, aturdida. - Você não pulou!?

- Não? - Aono me observava em meio ao abraço, notando as lágrimas que se acumulavam em minhas bochechas. - Era pra eu ter pulado?

- Por Kami, não! - Balancei a cabeça freneticamente, afastando aquela ideia por completo. - Mas o que foi aquele barulho?

- Acho que foi uma freada, sei lá. Jones, é sério que você comparou o barulho de um pneu com o barulho de um corpo caindo?

- Olha, não me culpa, tá? Você queria que eu pensasse diferente?

Aono riu, escondendo o rosto no abraço. Apesar do perigo ter passado, não salvei Aono. Não sabia quanto tempo levaria para fazer isso, nem se faria. Estar aqui hoje, pode ter impedido uma ideia futura, mas nada me impediria de olhar o sonho que tive com outro viés. Há muitas formas de uma pessoa deixar esse mundo, e ela não necessariamente precisa abandonar a sua carne. Aono constantemente passa por situações onde vê que a sua vida não tem mais valor, e atrás de todos os sorrisos, tiradas e risadas, há alguém que precisa ser trazido para perto. Posso não ser essa pessoa, mas se eu puder o deixar seguro até que ele a encontre, eu farei.

- Então isso significa, que tenho que te mostrar mais filmes como o da aranha assassina.

- Credo, o que tem a ver uma coisa com a outra?

- Assim você vai se tornar expert em barulhos de corpos caindo.

- Não quero não, obrigada!

Me esquivei, encharcada dos pés à cabeça. Aono também estava completamente molhado, sorridente e iluminado pelo outdoor que refletia o lugar onde estávamos. Atrás dele, um trovão me sobressaltou, deixando claro que apesar da tempestade ter passado, sempre sobram resquícios dela.

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Oioi galerinha, terminamos o capítulo 24!! Deixei pra falar com vcs nessa parte 2 pq aconteceu muita coisa, né? De repente o arco íris que a Sophie estava acostumada virou uma tempestade, quero deixar claro que odeio o pai do Sou e tudo o que eu queria quando estava escrevendo era abraçar ele, meu bebezinho :( O cap de hoje foi um dos mais fortes que eu escrevi e eu espero que vcs gostem da forma como foi abordado. O Sou é de verdade um personagem muito importante pra mim pq ele representa tanta coisa, e se vc se identificou com ele, eu desejo que fique tudo bem com vc e se precisarem de alguém pra desabafar, estou sempre aqui!! Um beijo meus amores e até o próximo cap sz


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