Capítulo 23 - Beco Sem Saída


Coração acelerado. Pernas enfraquecidas. Palavras que somem dos lábios. 

Todas essas sensações estavam sendo descritas em "Rina-chan quer se apaixonar”, mangá shoujo que atualmente era a minha distração enquanto o trem se movimentava suavemente, levando-me ao meu destino.
Rina Okatsu é uma adolescente colegial. Prestes a completar 17 anos, a protagonista do mangá decide que, após anos de recusas amorosas, era chegada a hora de aprender sobre o amor. Para que isso aconteça, Rina decide pedir ajuda à Kazuki Maeda, seu melhor amigo e confidente de todas as suas frustrações amorosas.

Ela só não esperava que naquelas aulas sobre o amor, se apaixonaria pelo melhor amigo.

Estava no capítulo em que Rina descobre que está apaixonada por Kazuki. Mas... Era tão estranho. Para nós, os leitores, estava claro que a mocinha estava apaixonada pelo melhor amigo. Por quê ela não via isso?

— Você é tão bobinha, Rina-chan. — Comentei, rindo. Em seguida, uma voz anunciava a próxima estação, fazendo-me guardar o exemplar e prometer que continuaria a explorar o mundo de Rina quando tivesse tempo.

O CXC Square estava iluminado em tons de verde e vermelho, e pouco a pouco, o público presente se distribuía de forma desigual pelo espaço. Na entrada, enquanto os meus olhos se acostumavam com a iluminação do lugar, recebi a programação das audições, e parando para agradecer a gentil moça que recebia os presentes com um sorriso, avistei os meus amigos, que me esperavam em uma mesa à direita.

— Até que enfim você chegou! — Comentava Keiko, olhando para os lados.

— Perdi muita coisa? — Resmunguei, sabendo que era culpada pelo meu atraso. Não sabia que roupa vestir e de repente, tudo ficou disforme em mim. Acabei optando pela combinação de saia jeans com patches de lacinho e uma camisa social de manga, que me deixavam apresentável.

— Duas bandas. Como eu não entendo nada disso, pra mim elas estavam muito boas. 

— Mas a gente tem que torcer pela banda do Aono, lembra? — Pokko retrucou, olhando para Kaori, que dava de ombros. Assenti, ainda pensando na façanha que era ter conseguido arrastar os três para assistirem a apresentação.

Suspirei, nervosa mesmo sem saber exatamente o por quê. Havia falado com Aono no dia anterior, onde comentamos sobre a ansiedade para o dia que chegaria. Apesar de ter tentado muito, não consegui arrancar nenhum spoiler da apresentação da S.O.A.P.

— E com vocês... Uma das bandas mais aguardadas da noite... S.O.A.P!!!

O público se levantava, aplaudindo com euforia os quatro componentes que se organizavam. Ayane, no centro do palco, sorria e acenava para os presentes.

— Somos a S.O.A.P. e esperamos que vocês curtam o nosso som! — Disse a garota de cabelo vermelho, antes do primeiro acorde ecoar pelo recinto.

~ Flashback ~

— Se apresentar na frente de um grande número de pessoas deve ser divertido. Mas não dá um nervoso?

Olhei para Aono, que parecia agraciado com os últimos raios solares o iluminando. Naquele dia, havia terminado o ensaio da peça que apresentaria no Festival Cultural bem tarde. Ainda assim, Aono estava sentado no último degrau da escada, me esperando.

— Claro que dá. Mas se eu for pensar nisso, não consigo nem subir no palco.

— É verdade. — Sorri, concordando. — Você não me disse os detalhes dessa audição. — Como é?

— Como todas as outras. — Estreitei os olhos, o que fez o garoto rir, e levantar as mãos em rendição quando dei leves socos no braço dele. — A audição do CXC é o concurso mais importante para nós, artistas independentes. Por meio dele, as bandas vencedoras conseguem visibilidade e até a oportunidade de se apresentarem ao lado de grandes referências do nosso meio musical.

— Hmmmm... — Comentei, começando a entender.

— Na etapa passada, conseguimos chegar na final pelo desempate da platéia. Agora temos a obrigação de fazer melhor.

— Melhor do que a apresentação que vi no Hell’s Bar? Vocês já são incríveis.

— Acredite, somos medianos em comparação com os outros concorrentes. Há bandas que já até produziram clipes dignos de um estúdio grande.

— Mas aí, não seria trapaça? Digo, não é um concurso para artistas independentes?

— Eu disse que são clipes dignos de estúdios grandes. Não que fossem feitos em um. No CXC, entende-se como artista independente todas as bandas que não são agenciadas ou que não estejam contratadas por estúdios tradicionais.

— Entendi... — Assenti, murmurando. — Eu ainda acho que essas bandas não estão com nada. E que vocês vão arrasar. E é claro... — Sorri animada, dando um passo à frente de Aono. O garoto parou abruptamente, antes que colidisse com o meu corpo. — Que eu vou estar na primeira fila torcendo por você. Então, se estiver nervoso, é só olhar para mim. Vou ser uma espécie de fada madrinha e tirar todas as suas preocupações.

~ Fim do Flashback ~


Ayane se movimentava pelo palco, e todo o corpo dela era música. Era inegável a ideia de que a garota não tinha presença de palco, pois onde ela estivesse, a atenção era voltada para ela. Com o seu pandeiro, marca registrada da garota de cabelo vermelho, Ayane girava o corpo, se tornando uma só com o som. E atraindo o olhar de Keiko para ela, que parecia hipnotizada com as ondas de fogo que aumentavam a temperatura de forma inconsciente, mas convidativa.

Coração acelerado. Pernas enfraquecidas. Palavras que somem dos lábios.

Por quê... É tão fácil achar o amor nas outras pessoas, mas não em si mesmos?

Aono interagia com Ayane, movendo os seus dedos no mesmo ritmo que as cordas vocais da menina explodiam o lugar. Em seguida, em um solo de guitarra magistral, era impossível reparar em outro que não fosse ele. E o seu corpo perfeitamente sincronizado, seus dedos, a face concentrada. Aquele som estava escorrendo para dentro de mim, se enrolando nas minhas terminações nervosas e transformando-se em vibrações que ecoavam dentro do meu peito, e nas minhas pernas. Rina nunca esteve tão certa ao descrever os sinais do amor. Eu só não sabia percebê-los em mim.

Ao olhar para o lado, vi Kana, que acenava de maneira tímida para mim. Retribui o aceno, não imaginando que ela continuaria a me olhar e captar todos os meus olhares para quem compartilhava sentimentos ao lado dela. Kana não era minha inimiga, mas ao pensar que Aono a olhava, a tocava, e a queria perto de si... Me incomodava. Incomodava a ponto de doer o peito.

Mas não naquele momento. Naquele exato momento, em que os dedos do garoto criavam o mais bonito som, seus olhos estavam fixos em mim como se a mínima distração significasse me perder. Seus olhos noturnos, sombrios e cheios de segredo, me refletiam, se iluminavam, e me deixavam fazer parte das suas sensações.

Eu também o olhava. Daquele momento até o fim da apresentação, quando o último apelo em formato de voz, o último ecoar da guitarra, a diminuição do ecos do baixo, e por fim, a finalização da bateria, e tudo se entregou o silêncio, meus olhos permaneceram na figura cujo cabelo estava à frente do rosto, parcialmente colados pelas gotículas de suor que desciam pela testa. Subindo e descendo, o peito de Aono parecia querer saltar para fora, e ainda arfando, o garoto se reunia com os três membros da banda para se curvar e agradecer. Feito isso, os fios de cabelo mesclado eram jogados para frente, e sem perceber, eu estava perita o bastante em Aono Sousuke para captar todos os mínimos movimentos que o seu corpo fazia.

— Caramba, isso foi... Incrível. O pessoal não tem fôlego nem para aplaudir.

E era verdade. Os aplausos vieram depois de dois minutos completos, quando os ânimos se acalmaram e todos voltaram a ter consciência do que estava acontecendo. A S.O.A.P. era um acontecimento, e daquele momento em diante, todos os que estavam ali saberiam disso.

Enquanto Aono e companhia voltavam para a área de concentração, se preparando para a segunda rodada de apresentações, os presentes ganharam 15 minutos até a entrada da próxima banda.. Conversando com os meus amigos sobre a potência que eles tinham e as torcidas para que eles passassem para o top 3, onde seria escolhido o vencedor, notei que Kana se aproximava da nossa mesa, e sorri, a cumprimentando.

— Então o Sou tem mesmo mais amigos do colégio, além de você. — Comentou ela, sorrindo, com a clara expressão de que aquela informação não era costumeira. — É um prazer conhecê-los. Sou Kana, amiga do pessoal da banda.

— É um prazer, Kana. Sou Keiko. E dizer que sou amiga do Aono é forçar um pouquinho. Digamos que eu o suporto.

— Me chamo Kaori. E até que dessa vez eu concordo com a minha gêmea.

— Sou Pokko. E essas duas são assim mesmo, não liga.

Kana riu e assentiu, gravando o nome de cada um. Em seguida, pigarreando, ela voltava a atenção para mim.

— Não é a minha intenção atrapalhar o momento com os seus amigos, mas você pode vir comigo um instante?

— Claro. — Assenti, me levantando da cadeira. Acenando rapidamente para os meus amigos, segui até uma área pouco movimentada do bar, ouvindo o som quase distante do início da próxima apresentação. — O que você queria falar comigo?

— Primeiro, eu queria realmente me desculpar por ter essa conversa com você. — Iniciou a garota, olhando para o chão. — Quero falar sobre o Sousuke. E você...

— O S...--- O Aono e eu? — Arrumei a frase, me lembrando que nunca havia chamado Aono pelo primeiro nome. Existia a vontade, mas nunca aconteceu. Talvez não tivéssemos intimidade o bastante para isso. — Eu não entendo.

— Hmmm... Acho que o Sou já deve ter te falado que não existe nada sério entre nós, não é? — Assenti, incentivando-a continuar. — Somos amigos com benefícios, se essa for a melhor definição. E acredite, eu só o vejo dessa forma mesmo. Se um dia ele vier a se apaixonar por outra pessoa, ótimo. Vamos continuar amigos, sem os benefícios. Eu não ligo se isso acontecer, sério.

— Kana-san. — A interrompi, sentindo um tremular estranho na palma da minha mão. Eu não estava entendendo onde ela queria chegar. Ou melhor. Eu acho que não queria que ela chegasse em lugar nenhum. — Por que você está me dizendo essas coisas?

— Porque eu quero que você se decida. Sousuke me disse que você tem namorado, mas você vem aqui e o enche de esperanças, ou convida-o para sair, em vez de chamar o seu próprio namorado para isso. Nesse território, você é novata. Não sabe pelo o que o Sou passa diariamente. E não tem o direito de brincar com ele dessa forma.

— Kana-san, eu...

— Se você gosta dele, devia parar com esses joguinhos. Antes que alguém saia machucado nessa história.

— Eu... eu... Peço desculpas se causei essa impressão, mas... — Apertei os punhos, sentindo uma náusea sufocante. — Não existe nenhuma intenção da minha parte em machucar o Aono. Muito menos o meu namorado. Então, você não precisa se preocupar, pois... Eu nunca terminaria com o Kentin.

— Você o ama?

Kana nutria uma acidez provocativa na voz. O certo seria despejar a resposta que traria fim àquela dúvida, mas eu não conseguia. Mesmo com todas as minhas forças, não conseguia vomitar o “sim”, entalado na minha garganta.

— Você não percebe, não é? — Kana ria, balançando a cabeça em negação. — O quanto ele gosta de você.

— O quê?

— Na apresentação... Você não percebeu? Ele tocou e cantou pra você.

— O Aono não tem esse tipo de sentimento por mim! — Exclamei, apertando as mãos. O som da guitarra era o pano de fundo daquela conversa, e os toques melódicos preencheram o curto silêncio que tomou conta da nossa interação. — Ele gosta de você. Eu sei que o Aono tem todo esse jeito introspectivo... Mas ele gosta realmente de estar ao seu lado.

Ofegante, encarei a garota que olhava para mim como se pudesse ver através das minhas palavras. O que eu estava dizendo, era realmente o que o meu coração queria?

— Eu espero que você não o machuque. Não vou te perdoar caso... — Trincando os dentes, Kana passava por mim, tão ríspida que até o vento que passava por nós duas parecia me cortar em mil pedaços.

Kana já havia voltado para a área de apresentações, enquanto eu busquei abrigo ao lado das paredes adornadas com luzes internas. Todo o som e euforia do lado de lá parecia distante para os sentimentos que eu nutria após aquela conversa. Kana realmente tinha razão ao afirmar que minha aproximação levaria Aono para o lugar que eu tanto lutava para afastá-lo? Eu deveria deixá-lo com as pessoas que ele conhecia a mais tempo? E se toda a minha vontade de ajudá-lo... Se tornasse um desejo egoísta?

— Por Kami, onde você estava? A segunda rodada já vai começar.

Enquanto eu me ajeitava, o apresentador anunciava a próxima apresentação da S.O.A.P e diferente da primeira, que preenchia o meu coração de cores, a segunda trazia um gosto amargo para dentro de mim. Não sorri nem senti a onda de música me arrepiar como da primeira vez, afogada em cada palavra que saía dos lábios avermelhados daquela garota que sabia mais de Aono do que eu poderia saber em minha vida inteira. Ela estava ao lado dele. E era injusto com ele estragar essa relação.

No final da última apresentação, o resultado final deixou a S.O.A.P em segundo lugar. A banda vencedora comemorava com o público que os tornou vencedores, e enquanto os meus amigos comentavam sobre a injustiça do resultado, Aono e os amigos eram recebidos por Kana, que se aproximava com um sorriso compreensivo.

Virei o rosto, perdendo o momento em que Aono pedia licença aos amigos para caminhar na nossa direção. Com um sorriso fraco, só percebi que ele estava atrás de mim quando Pokko e as garotas comentaram que a apresentação deles havia sido melhor.

— A gente meio que já esperava esse resultado. — Disse Aono, coçando a nuca. — Mas ter ficado em segundo lugar, sendo uma banda iniciante, já nos deixa bem confiantes para as próximas audições.

Engoli em seco, me virando. Aono me olhava com uma ruga de dúvida entre os olhos, talvez percebendo a minha distância na segunda apresentação. Seu semblante mostrava que ele esperava alguma palavra minha.

— Tenho certeza que vocês conseguem na próxima.

Sorri, pondo uma mão no ombro dele de maneira compreensiva. Aono assentiu, ainda com aquela ruga que perguntava sem palavras o que havia acontecido. Para não respondê-la, desviei o olhar.

— A gente vai para o HB agora. Vocês topam ir?

— Ah, se a Soso for...

— Vocês podem ir. Eu esqueci que... Tenho que ajudar a Yuina nos deveres de casa.

— Ah, entendi. — Aono sorriu sem mostrar os dentes. Eu sorri de volta, de maneira robótica. — Fica pra uma próxima.

— É. — Assenti. — Manda um beijo para os seus amigos por mim?

Aono assentiu, e antes que eu saísse, Keiko e Kaori me levaram até a saída. Quando estávamos longe o suficiente para sermos ouvidas, Kaori me puxou pelo braço, olhando-me com uma expressão desconfiada.

— Como assim “ajudar a Yuina com os deveres de casa...?” Ela não vai passar o final de semana na casa de uma colega?

— Hmmm, é. — Olhei para o lado, mordiscando o interior da bochecha.

— Então por quê você mentiu? — Keiko perguntou, trocando olhares com a irmã.

— Eu não menti. Eu... eu... Só achei que seria bom que eles tivessem um momento entre amigos.

— Mas... Você sempre diz que nós também somos amigos dele.

— É. — Kaori concordou. — Não estamos te entendendo, Sophie. O que é isso? Ciúmes?

— Claro que não! — Exclamei  assustando-as. Abaixando o tom de voz, olhei para o chão. — Olha, vão vocês, ok? O pessoal da banda é ótimo. E você, Keiko... Pensa que não percebi que você ficou bem interessada?

— Eu!? — Agora foi a vez de Keiko exclamar, arregalando os olhos. — Não muda de assunto, ok? Depois a gente quer saber direitinho o que rolou na conversa com aquela garota.

— Uhum. — Afirmei. Em seguida, abracei as meninas e me distanciei, encarando os prédios e o céu parcialmente cinzento, combinando com o meu humor atual. — Prometo que conto tudo.


A proximidade do Show de Talentos do colégio Sendai Hachifuni deixava toda a escola envolvida em alguma tarefa do evento. Aos que não estavam inscritos em alguma apresentação, restavam a confecção de cartazes, pompoms e camisetas especiais para cada torcida.

— Não sei por quê é tão difícil colocar a perna nesse ângulo... — Resmungava Kaori, ofegante. Ela e a irmã gêmea usavam o horário do intervalo para repassarem os passos da dança que elas apresentariam, na categoria de Danças Modernas. — Kei, nessa parte da música você vira para o outro lado, não para esse. Af, seria melhor se eu dançasse sozinha.

— Mas foi você que me perturbou para me inscrever. — Keiko estalou os lábios, secando o suor. — Cansei. Soso, o que você vai apresentar?

— Eu... — Olhei para as duas, fazendo suspense. Elas me olhavam com expectativa, ansiosas para a revelação. — É segredo. Só posso dizer que me inscrevi na Categoria de Cordas e Teclas.

— Cordas e Teclas...? Desde quando você toca Piano? Ou Violino?

— Se eu não tocava antes, agora eu toco. — Respondi, sorrindo. — Prometem que irão me assistir?

— Tá, tá, eu prometo. — Kaori se sentou ao meu lado, me abraçando. Em seguida, Keiko se juntou a nós, encostando o rosto no meu ombro.

— Você vai se apresentar sozinha?

— Com o Aono.

— Ah é, ele já foi violinista, né...?

— O pai dele é um violinista profissional. — Afirmou Keiko, pegando o celular. — Saiu até no canal de notícias. Quando foi descoberto o caso de traição.

— Esse assunto machuca muito o Aono. Vocês prometem que não vão tocar no assunto quando ele estiver por perto? — Pedi, pegando o celular de Keiko quando a garota abriu na notícia. Apesar de saber de todo o caso, não havia procurado em sites de notícia. Aquela era a primeira vez que eu via o quanto Aono era fisicamente parecido com o pai.

— Claro que não. A gente sabe como é ter um pai merda.

Assenti, abraçando mais as garotas ao mesmo tempo que rolei para baixo, vendo os comentários. Na época, as pessoas lotaram as redes e até mesmo a residência da mãe do Aono, enchendo-a com comentários depreciativos. Entendia o motivo dela ter ficado tão mal depois de tudo aquilo.

Quando o sinal tocou, anunciando mais um dia de aula finalizado, Aono e eu tínhamos um destino para seguir. Eu o havia evitado a maior parte do dia, me retendo a cumprimentos ocasionais. As palavras de Kana ainda ecoavam na minha cabeça à medida que eu tentava uma aproximação, como se fosse pecado o mínimo ato de ter vontade de estar mais próxima.

— Agora, será que sozinhos, você passa a considerar a minha companhia?

— O quê?

— Você tem me ignorado o dia inteiro.

— Não tenho não. — Retruquei. — É impressão sua.

— Você é irritantemente falante, Jones. Mas você está irritantemente não falante hoje.

— E isso não deveria ser bom? Você vive falando que eu sou chata.

— Você também é chata quando não está da maneira que costuma ser.

— Não entendo você. — Estalei os lábios.

— Não é o que te incentiva a continuar do meu lado?

— Não te entender? Não. — Afirmei, sincera. — Não fico do seu lado por causa disso.

— Ah não? Pelo o que é, então?

— Segredo. — Sorri, segurando a vontade impossível de continuar neutra diante daquele garoto. Como eu disse, era impossível.

Entramos no Classic Music Hiragawa, o prédio onde Aono costumava ter aulas de violino. O lugar era agradável, em tons claros, trazia uma sensação de conforto que foi sentido por mim desde o primeiro momento que entrei naquele ambiente. Olhando de um lado para o outro, via quadros reforçando a excelência do lugar, e troféus divididos em ouro e prata, todos preenchendo paredes inteiras.

— Você treinava em um bom lugar. — Comentei.

— Era um bom lugar mesmo. — Respondeu Aono, com um pequeno sorriso saudoso.

— Olha, não é você aqui? — Apontei para um quadro com moldura antiga, com quatro crianças. Apenas uma segurava um troféu de ouro, Aono.

— É sim. Esse era o Concurso Júnior de Allivance, acho que foi o meu segundo ou terceiro concurso.

— E você já ganhava o primeiro lugar com tão pouca experiência!?

— Sendo filho de quem é... — Uma terceira voz, que para mim era desconhecida, entrava na conversa. E ao me virar na origem do som, vi uma senhora de estatura baixa, com alguns fios brancos no coque alto que usava. — Não achei que te veria aqui novamente, Sou-kun.

— Mito Uzuhara-san. — Aono abaixava o corpo em sinal de respeito, e se eu não me engano, aquela era a primeira vez que eu o via ser tão formal com alguém.

— Ah, você sabe que tem intimidade para me chamar só de Mito. Há quanto tempo... Você já é um rapaz feito.

— Não é pra tanto. — Aono comentava, sorrindo de maneira fraca. — E essa é a Jones, ela estuda comigo.

— Mas é claro! Fiquei tão chocada ao te ver que esqueci de perguntar sobre essa adorável mocinha... Me digam, o que os trazem aqui?

Enquanto Aono se afastava para conversar com a senhora, andei pelo centro da sala, olhando mais quadros e troféus. Tudo aquilo parecia distante do Aono que eu conheço hoje, mas ao mesmo tempo, eu não podia me sentir tão próxima. Estava no terceiro troféu quando os passos dos dois me fizeram voltar à posição original.

— Vocês querem os meus instrumentos emprestados para ensaiarem para um evento no colégio... Não é?

— Isso. — Confirmei, olhando para baixo. — Se não for muito incômodo para a senhora, claro.

— Não é incômodo nenhum! — Respondeu Mito, sorrindo de ponta a ponta. — Você não sabe a alegria que é tê-lo de volta a esse salão. Quando o Sou-kun se afastou do violino, foi uma grande tristeza para o mundo dos concursos clássicos. Eles nunca mais foram os mesmos depois da saída dele.

— Mito-san, isso é temporário. Eu não pretendo voltar para o violino.

— Eu sei, querido, eu sei. — Comentou a mulher, abaixando a cabeça em um tom penoso. — Aquele homem colocou uma ideia muito errada na sua cabeça sobre o violino... Mas não vamos falar disso. Vocês podem ficar pelo tempo que precisarem, pois as turmas que tenho não treinam nesse horário. E se precisarem de auxílio, não hesitem em me contatar.

Assenti, agradecida pela hospitalidade. Aquela era a primeira vez que eu estava em um espaço como aquele, recheada com partituras e instrumentos. Entrando em uma sala branca, vi um piano de mesma cor no centro do grande espaço, e imediatamente caminhei até ele, passando os dedos delicadamente em cima das teclas. Com o pequeno som que produzi, olhei para Aono, que olhava para a sala como se nunca tivesse saído dela.

— Eu não sei como agradecê-la por trazê-lo de volta. — Ao meu lado, a mulher abria as cortinas, olhando para o garoto como se ele ainda fosse aquele menino que frequentava as suas aulas.

— Não precisa agradecer. — Sorri. — Eu também queria muito vê-lo tocar.

Passei a tarde inteira admirada com os sons que Aono produzia no violino. Mesmo agora, caminhando ao lado do garoto de expressão serena, ainda podia sentir a vibração das ondas sonoras, fazendo um caminho lento pelo meu corpo. Se parar para pensar, a música não está tão longe do amor: ambos produzem sensações eletrizantes no corpo.

— Uau, você está calada por mais de 5 minutos. Isso é um novo recorde. — Brincou Aono, me olhando com o canto do olho.

— Bobo. — Sibilei. — Só estava pensando que a música e o amor caminham juntos.

— Ah é? E o que te fez chegar nessa conclusão?

— Hmmm... Dizem que, quando amamos alguém, nos tornamos elétricos. Essa sensação também está presente no som. Quando ouvi você tocar hoje... Senti como se estivesse perto de uma tempestade.

— E você não teve vontade de fugir?

— Fugir? Por quê eu fugiria? — Perguntei, confusa.

— Não deveria estar tão exposta a uma tempestade. — Aono concluiu, suspirando. Ao olhar para ele, vi que também me encarava. Seu olhar estava diferente, carregado de um sentimento oculto que não fui capaz de identificar. Ainda assim, me sentindo atiçada por ele, deixei escapar as palavras formadas no mais profundo espaço do meu coração.

— Há tempestades que valem o risco de se molhar.

Aono me olhava com aquela expressão indecifrável e convidativa. Em seguida, voltando a olhar para frente, o garoto alargava os lábios em um sorriso que, aos meus olhos, deixava-o tão bonito quanto uma pintura.

— Chegamos. — Disse ele, quebrando o silêncio. Inexplicavelmente, o som da sua voz em meio aquela aura tensa que nos rodeava fez o meu coração bater mais rápido. — É a sua estação.

— Você não quer jantar lá em casa? — Disparei, incapaz de vê-lo se afastar. Eu não estava agindo na melhor das racionalidades, mas apesar de ter consciência do meu “descontrole”, não conseguia fazer nada para restaurá-lo. — Quer dizer, seria bom, mas... Se você não puder tudo bem também, não é como se eu o estivesse obrigando ou algo do tipo e...--- 

— Eu vou.

— O quê!?

— Eu disse que vou. — Insistiu ele, rindo. — Ou você só convidou por educação?

— C-claro que não! — Estalei os lábios, virando o rosto para o lado para que ele não notasse a vermelhidão crescente em minhas bochechas. — Vamos, ok? — E sem esperar por resposta, o peguei pela mão e praticamente o arrastei até a área de espera do metrô, agindo de modo emburrado mesmo que a culpa pelo embaraço que se formasse entre nós fosse toda minha.

Chegando em casa, girei as chaves e abri a porta, não desgrudando nem por um segundo do enlace com Aono. Entrando, deixei o calçado no genkan e segui pelos corredores, anunciando a minha chegada.

— Estou em casa! — Exclamei, sendo recebida por Hanako, que olhava para mim e para o meu convidado, com uma ruga interrogativa na testa. — Mãe, esse é o Aono. Aono, essa é a minha mãe.

— Esse é o famoso Aono? — Sorrindo, minha mãe olhava-o mais atentamente dessa vez, achando graça da forma como o meu convidado parecia parte dos móveis da sala de estar. — Não precisa ficar envergonhado, sinta-se em casa. A Sophie fala muito de você.

— Obrigado pela hospitalidade, Ichikawa-san e... Desculpa por ter vindo sem avisar. — Aono começava, desfazendo a ligação entre nossas mãos ao perceber que Hanako observava o entrelace. Pigarreando, Aono tentava parecer relaxado, falhando de maneira engraçada. Eu não sabia que tinha um lado dele que ficava sem graça na frente de outros adultos, era fofo. — Sua filha também fala muita da senhora. No colégio, ela está sempre elogiando a sua comida.

— Não precisa de tantas formalidades. Pode me chamar de Hanako, ou Hana, se preferir, ok? — Aono assentia, encarando o chão como um filhote de gato assustado. — Essa daí come até o prato se eu deixar. Eu espero que vocês estejam com fome, quer dizer, nem preciso perguntar isso para a Sophie.

— Mãe! — Interferi, inflando as bochechas. Mas, provando que era verdade, minha barriga roncou ao sentir o cheiro gostoso que vinha da cozinha.

— Tá vendo? — Hanako ria, concluindo a frase. — Eu espero que você esteja com fome. Gosta de tonkatsu karê?

— Sim, gosto. — Aono respondeu, balançando a cabeça ao mesmo tempo. Se eu não estivesse grudada com ele desde a saída do Classic Music, podia jurar que ele foi trocado no caminho, e que o original estava pegando o metrô de volta para casa.

— Ótimo. Já já fica pronto. — Se afastando, Hanako nos deixava livres para explorar a casa, o que aconteceria se não fôssemos interceptados por Tia Miya. A mulher que havia escutado toda a conversa estava no aguardo pela hora do seu interrogatório, que já começava pelos olhos céticos, olhando para o garoto de cima a baixo.

— Então você é o Aono?

— Sim.

— Aono, essa é a minha tia. Tia Miya, esse é o Aono, meu amigo do colégio.

— Eu escutei a conversa de vocês com a Hana. — Ela sorria de maneira divertida. — Não precisa ficar envergonhado, ela só tem essa aura amedrontadora mas na verdade é um amor. Acredita que ela tem medo de corujas?

— Ei! — Hanako gritava da cozinha, interrompendo a irmã. — Eu não tenho medo. Só não gosto.

— Não gosta e morre de medo. Uma vez, quando éramos pequenas, a Hana ficou a noite inteira acordada porque ela jurou que uma coruja mordeu o pé dela. E eu nem sei se as corujas mordem pés!

— Não é invenção! Eu senti a mordida!

— E como você sabia que era uma coruja? Podia ser qualquer bicho. — Rebateu Tia Miya, olhando para a irmã mais velha com os olhos estreitos assim que ela deixou os afazeres na cozinha para se defender.

— Porque ele tinha aqueles olhos gigantes, parecidos com os olhos de uma coruja. Só de pensar, já fico com calafrios.

— Você deve ter sonhado com isso.

— Não sonhei!

Puxando Aono discretamente, caminhei em passos silenciosos para fora daquela briga, na direção do meu quarto. Antes de abrir, bati levemente na porta, avisando que entraria.

— Sua família é bem... Animada.

— Isso, porque você ainda não conheceu a líder da animação. — Ri, abrindo a porta assim que Yuina gritou do lado de dentro, avisando que eu poderia abrir. — E esse é o meu quarto.

— Esqueceu de dizer que é meu também. — Yuina bufou, saltando da beliche. — E oi amigo da Sô.

— Meu e da minha irmãzinha chata. — Corrigi, brincando. — E finalizando as apresentações, essa é a Yuina.

— É um prazer, Yuina. — Aono sorriu de maneira acanhada, não tão acostumado com tantas apresentações em um só dia.

— Você gosta dela? — Yuina perguntou, curiosa, automaticamente me transformando em um pé de tomate fresco.

— Yui! Isso é pergunta que se faça?

— Eu só estou curiosa. Não foi você que veio trazer a minha irmã em casa tarde da noite? A Frannie, minha amiga da escola, disse que os meninos agem como cavalheiros quando querem namorar com as meninas.

E aqui jaz Sophie Marie Ichikawa Jones. Não tinha coragem para encarar o Aono, e naquele momento eu só queria pular na Yuina e enchê-la de cócegas.

— O Aono... Ele tem namorada!

— Eu não tenho namorada. — Me corrigindo, Aono sorria para a minha irmã, enquanto analisava o quarto. — Mas a sua irmã tem. Não era à ele que você deveria perguntar isso?

— Ah, o Kentin... — Yuina suspirava, pensativa. — Eu gosto dele, mas ele quase não vem aqui mais. Você gosta de jogos? Se gostar, te deixo levar ela de graça.

Eu estava ouvindo aquilo mesmo??? Aos deuses da vergonha, por favor me escondam.

— Gosto. O meu preferido é Sombras do Amanhecer.

— Sério? Eu também! Qual é o seu ID? — E com o início de uma conversa acalorada sobre RPG Gacha, perdi o Aono por meia hora.

Antes que o jantar ficasse pronto, consegui recuperar o Aono das perguntas e curiosidades da minha família, antes que ele abrisse a porta e saísse correndo. Para a minha surpresa, ele estava bem mais relaxado com a presença da minha mãe, tia e irmã do que quando chegou. Sorria educadamente e respondia as perguntas, jogava com a Yuina e a assistia mudar de personalidade quando o assunto era jogos. Entrando no quarto de brinquedos, suspirei, desacostumada com tanta animação, por só receber as meninas que já eram de casa.

— Achei que elas fossem te convidar para morar aqui. — Brinquei.

— Não seria uma má ideia. — Aono sorriu, se sentando em um puff inflável. — Mas eu tenho que confessar que a sua irmã é uma cópia sua em miniatura.

— Isso é um elogio? — Ri, confusa.

— É sim. — Aono balançava a cabeça em afirmação, e naquele momento, suas palavras pareceram genuínas. — Você sabe que eu tenho um irmão mais novo, mas... Por muito tempo, fui filho único. Até hoje, acho que eu me sinto um pouco dessa forma. Para mim, é estranho ver o quanto vocês se dão bem.

— Você queria ser mais próximo do seu irmão, não é?

— Não sei. — Aono confessou, apertando os nós entre os dedos. — Sempre que olho pra ele, lembro das traições do meu pai. Sei que ele não tem culpa, mas eu nunca consegui olhá-lo e ter o que você tem com a sua irmã.

— Eu espero, de verdade... Que vocês possam se dar bem no futuro. — Compreensiva, arrastei um puff na direção dele. Apertando a sua mão, sorri de maneira animadora. — E eu adoraria conhecê-lo também, um dia.

— É, quem sabe. — Aono fazia força para manter o sorriso, enquanto analisava os meus dedos.

— Uhum. — Concordei, e em seguida encarei o rosto dele, notando os seus traços. — Posso te maquiar? Sei que é repentino, mas... Estava lembrando da maquiagem que você fez para a audição. Queria ver se consigo replicar.

— Tem alguma chance de você arrancar os meus cílios?

— Nenhuma. Prometo. — E para retificar o que eu dizia, beijei o dedo mindinho, fazendo um barulho estalado.

Animada, corri até o quarto, aproveitando para trocar de roupa. Vesti um vestido azul de bolinhas brancas confortável, chegando até um pouco acima do joelho. Me olhei no espelho por repetidas vezes até achar um pequeno borrado no batom, e rapidamente vasculhei a minha necessaire a procura do tom certo. Destampei a embalagem, levando o conteúdo até os meus lábios no mesmo momento em que Yuina entrou no quarto, desconfiada com a cena que via.

— Por quê você está se arrumando? Vai sair?

— Não. — Respondi. — Por quê?

— Ah, você está toda arrumada... No dia a dia, você veste um daqueles seus pijamas folgadões.

— Mas eu quero usar um vestido hoje. E nem vem, tá, que não é todo dia que eu fico largadona.

— Sei, sei... O Kentin sabe que você está recebendo um garoto em casa?

— Não. — Engrossei a voz, encarando Yuina pelo reflexo do espelho. — E não vai saber se eu não contar. Nem tudo se conta ao namorado.

— É, eu tô sabendo... Não quero ser chata nem nada, mas Sô, você tá gostando desse menino?

— Quê? Yuina, é claro que não. — Ri, nervosa com o absurdo que a minha irmã acabou de cogitar. — O Aono é meu amigo. E só.

— Tem certeza? É que você tá diferente. Toda alegre quando alguém fala dele. Eu sou sua irmã, sabia? Você pode me contar qualquer coisa.

— Você é minha irmã e é uma criança. A mamãe sabe que você tá com conversa de namorado?

Hmpt, lá vem você mudando o assunto só pra fugir da pergunta. Fique você sabendo que eu vou fazer 11 anos, não sou mais uma criancinha.

— E disse a adulta. — Brinquei. — Não se preocupa. Entre mim e o Aono só existe amizade. E sim, vou falar com o Kentin que você está com saudades. Agora deixa eu voltar que é feio deixar a visita sozinha, tá?

Antes de voltar, dei um beijo estalado na testa da minha irmã, que resmungava e limpava o beijo assim que saí. No corredor, fiquei pensando sobre a breve conversa que tivemos, e o quanto Yuina estava crescendo desde que parei nesse mundo. Eu poderia até dizer que ela sabia mais de assuntos amorosos do que eu, e aquilo era impossível de aceitar pois para mim, ela ainda era uma pitiquinha.

— Voltei. Demorei muito?

Aono separava os lábios, prestes a responder, porém, ao me olhar e ver o vestido que eu estava usando, o garoto engoliu em seco, pigarreando. O garoto parecia vidrado no design da peça, que exaltava as minhas curvas e acentuava o busto. Olhando para o lado, achei ter visto uma pequena vermelhidão nas maçãs do rosto dele, mas quando me aproximei, o garoto foi mais rápido e tampou os meus olhos, respirando de maneira audível.

— Aono? Você está bem?

— Não olhe pra mim agora. — Entrecortando a voz, Aono ofegava. No escuro, tentava entender o que estava acontecendo, fazendo força para retirar a mão dele da frente dos meus olhos. — Eu preciso... de um tempo.

Assenti, abaixando as mãos. Mesmo a alguns centímetros de distância, a respiração quente e pesada de Aono criava padrões imaginários em meu rosto. Embalada por aquela tensão intangível, comecei a respirar de maneira irregular, sentindo cada gotícula imaginária de fervura me envolver e desaguar na forma de formigamentos em meu corpo.

— Posso agora...? — Pedi, assim que Aono afrouxou a mão, permitindo que eu a abaixasse. Assentindo, o garoto engolia em seco mais uma vez ao me olhar.

— Esse vestido, Jones... Você não sabe que isso não se faz com um garoto? — Aono praguejava, cada palavra que saia de seus lábios parecia uma súplica.

— O quê? — Perguntei, confusa. Aono estava diferente. Um diferente bom, que eu não sabia como explicar... Só sentir.


Comecei preparando o rosto dele para a maquiagem. Ficou decidido que eu apenas passaria rímel, delineador, iluminador e gloss labial, já que eu não tinha outros produtos que correspondessem ao tom de pele dele. Destampei a caneta delineadora, me aproximando do rosto dele para iniciar o delineado.

Com os olhos fechados, Aono fazia pequenos movimentos em reação à sensação do pincel em seus olhos. Eu já estava boa o suficiente na maquiagem para não fazer algo grotesco, e entre traços e pequenas pausas para consertar algum erro, segurei o rosto dele, observando as suas feições. Ele estava tão próximo. Eu estava tão próxima. 

— Terminou?

— U-uhum. — Murmurei, tossindo. Aono abriu os olhos, e eu evitei olhar para os seus olhos pintados, voltando a vasculhar o próximo item na necessaire.

Precisei me segurar para não rir e borrar toda a maquiagem ao passar a máscara de cílios, e limpar periodicamente a cada vez que o garoto piscava, sentindo cócegas.

— Fica com o olho parado! Assim eu não vou terminar nunca.

— Impossível. — O garoto resmungava, abrindo os olhos.

Fechei a máscara de cílios, vendo o resultado do meu trabalho até então. Aono era muito bonito e os olhos, ampliados com a maquiagem, explicitavam ainda mais o ar sombrio das pupilas. 

— Você está me encarando a 5 minutos. Você não está me deixando idêntico ao Vecna, não é?

— Era pra ser surpresa. — Brinquei. — Não queria que ficasse sabendo que estou te transformando na criatura mais feia do universo inteiro.

Aono riu, revirando os olhos, e sem perceber, eu estava rindo junto. Era estranho pensar que bastava tão pouco para que eu me sentisse além do espaço-tempo com Aono, como se nada pudesse me alcançar. As risadas eram fáceis, as conversas me envolviam, e os momentos que estava longe, me fazia desejar pela próxima vez. Kentin nunca havia me dado aquela sensação. Tornar esse dado um fato era estranho.

Abri o gloss com cheirinho de morango, inaugurando-o nos lábios de Aono. Passei delicadamente, espalhando o produto lentamente, sentindo o cheiro da fruta preencher o lugar e ao mesmo tempo, comprimir o espaço como se não houvesse a passagem de ar entre nós. Sem perceber eu estava próxima o bastante do garoto, com a mão ainda parada rente aos lábios dele, a ponta do batom no mesmo lugar. Próximos, passamos a compartilhar o mesmo ar, e inexplicavelmente interligados, olhamos para o mesmo ponto, ao mesmo tempo.

Nossos olhos encaravam os lábios um do outro, em um pedido mudo para que aquele espaço que ainda insistia em se colocar diante de nós sumisse. Aono olhava para a minha boca, assim como eu olhava para a boca dele, sentindo a união entre eles mesmo que ainda fosse um produto da minha imaginação. Fechei parcialmente os olhos, disposta a concretizar o desejo da minha mente no plano da realidade, e me aproximei, buscando-o. Aono não recuou. Assim como eu, ele queria aquilo.

— Sophie, Sou-kun, a jant...--- — Abruptamente, Hanako aparecia de pé, na frente da porta, com os olhos arregalados e fixos no interior do quarto. Automaticamente, me afastei com um pulo, afastando o garoto que se desequilibrava do puff e era consolado pelo chão. — Ahn, eu... atrapalhei alguma coisa?

— N-não! — Gritei, sentindo o coração sambar em meus ouvidos. — Que ideia! O que tinha aqui para atrapalhar? Eu só estava... Batom. É, eu estava passando batom. Ele tem um cheirinho bem gostoso, você quer experimentar, mãe!?

Hanako piscava, observando o meu falatório trêmulo e sem sentido. Em seguida, ela olhava a cena atrás de mim, Aono se levantava, limpando a calça e pigarreando. Tudo ali gritava caos.

— Eu tenho certeza que é... — Disse a mulher, se segurando para não rir. — Bom, eu só vim mesmo avisar que a janta já está pronta. Vocês podem continuar a... a... Passar maquiagem.

Escutando o baque da porta, apertei os punhos, controlando o tremor. Onde raios eu estava com a cabeça para fazer o que eu estava pensando em fazer? E o Aono... será que ele...?

— Eu acho melhor a gente não deixar a sua mãe esperando. — Assenti, e antes que eu me virasse para encará-lo, Aono passou como um raio por mim, me deixando sozinha no quarto. Meus pensamentos estavam divididos entre “Eu estava prestes a beijar Aono Sousuke! e “Eu estava prestes a beijar Aono Sousuke?”

— Isso foi um... delírio. É isso. Um delírio. — Ri sozinha, batendo a mão na testa. Por que não tinha como ser algo além disso, né?

Aono e eu não nos encaramos no jantar, nem depois dele. Quando terminamos, ele seguiu direto com Hanako para a cozinha, auxiliando-a com a louça mesmo que ela tenha o impedido, justificando que ele não precisava fazer aquilo.

— Ele é tão bonzinho, não é? — Sobressaltada, olhei para Tia Miya, que encontrava um espaço ao meu lado na porta da cozinha. Ela encarava com um sorriso amigável no rosto, Aono e Hanako se dividirem entre secar e lavar a louça do jantar. — Gostei dele. Daria um ótimo namorado, se você já não tivesse um. Como é mesmo o nome dele...?

— Kentin. — Interrompi antes que ela começasse uma sequência de nomes errados. E não, eu não precisava de uma menção a Kentin bem no momento que uma culpa gigantesca me atingia como uma chuva repentina atinge os pobres estudantes que esqueceram o guarda chuva em casa.

— É, esse mesmo. Aliás, como vocês estão? Você quase não fala dele.

— Melhor impossível. — Sorri de maneira nervosa. — E ele é tão perfeito que eu não tenho o que falar.

— É mesmo? Pra mim, quanto melhor o namorado é, mais se tem coisas para falar. Ah, os relacionamentos de hoje...

— ...Você não quer ficar mais um pouco? Estou assando alguns biscoitos.

— Agradeço, Hanako-san, mas minha mãe está me esperando em casa.

— Ah, eu entendo. — Hanako sorria, compreensiva. — Volte mais vezes, viu? Agora que você sabe o caminho, é só voltar quando quiser.

— Sim. Novamente, eu agradeço pela hospitalidade. Miyako-san, foi um prazer. — Ele sorria, se curvando em um gesto de cumprimento. — E Yuina-chan.

— Você vai entrar no S.D.A hoje? — Yuina o interrompia, com os olhos brilhando.

— Você já vai dormir, mocinha. — Lembrou Hanako, o que fez Yuina bufar em resposta.

— Outro dia. — Aono respondeu, bagunçando os cabelos da minha irmã como ele faz comigo.

— Sophie, querida, leve-o até a porta! — Tia Miya sorriu, piscando, e eu podia jurar que aquela sugestão não foi atoa.

Assenti, abrindo a porta para que Aono passasse primeiro. Quando estávamos do lado de fora, a vermelhidão tomou conta de mim, sendo aquele o primeiro momento que ficávamos sozinhos novamente desde aquele embaraço.

— Elas gostaram muito mesmo da sua visita. — Comecei, envergonhada.

— É.

Hmmm, eu te vejo na escola?

— Aham.

— Então... acho que é isso. — Sorri, rolando os olhos.

— É. Tchau, Jones. — Aono olhava para o lado, coçando a nuca.

— Tchau. — Respondi, ainda sem mexer. Aono também estava paralisado. — Você não vai?

O garoto assentiu, se movendo de maneira robótica. Assenti também, aparentemente sem motivo nenhum, e fiquei na frente do portão até que Aono sumisse completamente da minha linha de visão, o que demorou cerca de 15 minutos.

Suspirando, olhei para o céu, me encostando no muro antes de ter coragem de entrar. Repassei os momentos na memória, o olhar de Aono quando troquei o uniforme colegial pelo vestido, as palavras que não saíram, sua garganta seca, nossos lábios a milímetros de distância e... o quase beijo.

— Estrelas, o que está acontecendo comigo? — Pedi, esperando uma resposta dos astros celestes. Como ela não veio, suspirei. A noite estava bonita, as estrelas piscavam e a lua centralizava o cenário noturno. Irritantemente, a cor do céu me levava a lembrança dos olhos delineados de Aono, e o quão próximos eles estavam de mim. Bati na testa, esfregando os cabelos de maneira desordenada. — Eu estou ficando louca. Essa é a explicação.

Meia hora depois, entrei em casa, encontrando a Tia Miya no sofá. Ela estava assistindo o dorama diário que passava nesse horário, mas quando cheguei e me sentei ao lado dela, ela passou a me olhar.

— Ele já foi?

— Uhum. — Respondi, olhando para a TV. Naquele momento, a mocinha estava tomando uma decisão duvidosa. “Minha xará”, pensei.

— Sua mãe estava te procurando agora a pouco. Acho que ela foi verificar se a Yuina já está dormindo.

— Ah, depois eu falo com ela. — Mordi as unhas, balançando as pernas sem perceber. Eu sabia o que e sobre qual assunto ela queria conversar.

— Tá tudo bem, querida?

— Tá. Por quê não estaria? — Ri, frenética.

— Suas pernas. Sabia que você tem esse tique desde pequenininha? É claro que eu só te visitava esporadicamente, mas ainda lembro das suas perninhas pra lá e para cá.

Me entreguei ao silêncio, incapaz de dizer alguma coisa. Era doloroso assumir que Miyako estava falando com outra pessoa, a Sophie que ela conhecia e não sabia que não residia mais ali. Eu ainda não sabia como funcionava aquela “troca” e o quanto de Sophie ainda existia nesse corpo. Com essa dúvida martelando na minha cabeça, pedi licença para me recolher, mas ao chegar perto da porta do meu quarto, fui interceptada por Hanako.

— Você sabe que não pode fugir do que eu quero te dizer, né?

— Eu estou com um pouco de dor de cabeça, mãe.

— Vai ser rápido. — Sem opções e encarando a porta do quarto de Hanako aberta, assenti a contragosto e entrei. — Sophie, o que foi aquilo que eu vi naquele quarto?

— O quê? Eu não sei do q...---

— Você sabe sim. Eu estou dizendo de você e aquele menino, e o beijo que eu interrompi.

— Mãe, eu juro. Você não interrompeu nada.

— Tem certeza que você pode jurar, Sophie Marie? — Sophie Marie. Ah, como eu estou ferrada.

— Eu...---

— Sophie, escuta. — Hanako me instruia a sentar, e foi o que fiz, me sentando na ponta da cama. — Eu não vou julgar por nenhuma escolha que você fizer. Mas minha filha, você precisa ter consciência do que você está fazendo. Você já parou para pensar no que poderia ter acontecido caso eu não tivesse entrado naquele quarto? A confusão que você teria que desfazer?

Abaixei a cabeça, sabendo que eu estava errada. Se eu tivesse beijado o Aono, se aquele beijo acontecesse, eu não me perdoaria. Teria traído Kentin e a minha antecessora, que nunca trataria o seu namoro dessa forma.

— Eu sei. — Comecei, com os olhos marejados e fixos no chão. — Eu sei que eu estava prestes a fazer uma coisa muito errada. Mas mãe, eu... Eu não sei o que me deu. Eu não consigo pensar quando estou com ele.

Hanako dedilhava o meu cabelo, passando os dedos carinhosamente entre os fios. A outra mão, afagava o meu ombro, me fazendo amolecer.

— Meu amor, você ainda não percebeu o que está acontecendo? — A voz de Hanako parecia um sussurro. Tão doce, que eu poderia morar naquele embalo.

— Não. — Respondi, confusa. — Não consigo entender.

— Então, toda vez que estiver com ele, quero que preste atenção no que sente. E quero que pense sobre o que esses sentimentos podem significar.

Assenti, secando as lágrimas. Em seguida, me aninhei no corpo de Hanako, mantendo a mente lotada de pensamentos confusos até adormecer.

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Gente, esse capítulo de hoje foi de 10 à 100 né? A Rina do mangá é para a Sophie o que ela é para os leitores kkkkkkk aposto que vcs ficaram “mas vc tbm é assim!!!” quando ela chamou a personagem de boba
Vou protestar na frente dos quartéis por causa do segundo lugar da S.O.A.P!! Divos que mereciam mais
Eu ouvi algo rolando nos sentimentos da Keiko? Cheirinho de POV vindo por aí…
O Show de Talentos tá chegando e como diria a filósofa contemporânea Anitta: PREPARA!
E finalizando, essa visita rendeu o que os leitores estão torcendo desde o cap 8 mas que ficou no quase: Hanako nós te amamos mas pq vc foi interromper, mulher!
O ponto alto do cap pra mim foi as Ichikawa family recebendo o Aono como se ele fosse parte da família. Eu amo essas mulheres <3

E é isso, eu espero que vcs tenham gostado do cap, comentem o que acharam e até o próximo (que promete mesmo, não é bait da Anitta)

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