Capítulo 19 - Novos ares


Meu coração estava acelerado. Minhas mãos suavam. Os lábios abriam e fechavam em tentativas inúteis de dizer alguma coisa. Mas não havia nada a ser dito, ou feito. Não quando Aono parecia estar tão contente em um universo que não me cabia. O que eu estava pensando? Havia tomado como missão, salvar Aono de um futuro que tomei como certo. Mas e se eu estivesse errada? E se tudo o que fiz até agora só tivesse o prejudicado? E se eu estivesse próxima dele por interesses meus? Sou tão egoísta a esse ponto?

Meus lábios se abriam em um pequeno sorriso de conformação ao perceber que Aono estava cercado de pessoas que o queriam bem. Mas será que esse era o único motivo que me deixava conformada? Meus olhos, apesar de apreciarem a cena do grupo de amigos, apenas enxergavam Aono e a garota de cabelo curto. Seria por causa dela que todos os sentimentos estavam conflitando em meu corpo? Ela era a causa da minha conformação?

— Jones! — Sem perceber, fiz o caminho de volta à saída do bar, apertando a alça da minha bolsa entre os dedos. Aono me interceptava a poucos metros da porta, me parando ao envolver os dedos no meu braço. — Você veio.

— Ah, é. — Sorri, ainda sem me virar. Não queria ter que encontrar o rosto do garoto, e voltar atrás na minha decisão. — Eu disse que viria.

— Ei, Sou! Quando você vai ajudar a...-- – Do palco, uma voz masculina se calava ao perceber a minha presença e a mão de Aono, ligada ao meu braço. E em segundos, todo o grupo estava espalhado ao nosso redor. — E quem seria essa?

Percebendo a ligação em meu braço, Aono pigarreava, se afastando. 

— Essa… É a Jones. Ela estuda comigo no colégio. Mas… Eu acho que ela já está de saída.

— Não brinca! — O garoto exclamou, passando o braço em volta do meu ombro. Me retesei, sentindo a aproximação repentina. — Vai chover hoje?

– Na verdade, o meu nome é Sop...--

— Sério, eu achei que ele nem estivesse estudando. Essa é a primeira vez que eu vejo alguém da Hachi. — A garota de cabelo vermelho concluía o raciocínio, me olhando de cima a baixo. No final, ela arqueou a sobrancelha, imediatamente me fazendo olhar para baixo, temendo ter colocado uma meia de cada cor.

O grupo de amigos prosseguiu com os comentários acerca da minha presença, me deixando com a clara sensação de não estar ali. Eles me arrastaram até o bar, jogando para debaixo do tapete a minha tentativa de sair sem ser notada. E entre risadas e cochichos, os amigos do Aono se voltavam para mim, como se estivessem encarando um produto em liquidação.

— Desculpa o nosso jeito, é que… Realmente o Sou não convida ninguém do colégio dele para assistir às nossas apresentações.

— Então, Jones...--

— Ichikawa. — Interrompi. — Sophie Ichikawa.

— Por quê o Sou te chama de Jones? — O garoto que tocava baixo, que até então estava calado, me olhava com curiosidade. Naquele momento percebi que precisava saber o nome deles.

— Jones é o sobrenome do meu pai, que é americano. O meu nome completo é Sophie Marie Ichikawa Jones, mas aqui no Japão eu prefiro que me chamem pelo meu sobrenome materno. — Expliquei. — Ele só me chama de Jones pra implicar comigo.

— Não é pra implicar. — Aono rebatia, tomando um gole da cerveja.

— Então, Ichikawa... — Consertando, o garoto de antes prosseguia. — De onde você veio, tem mais?

— Ai, como você é escroto! — Participando pela primeira vez da conversa, a garota de cabelo curto se inclinava por trás de Aono, desferindo um tapinha contra o outro garoto. — Isso não é coisa que se pergunte para uma garota.

— Eu só estava elogiando... 

Abrindo um sorriso tranquilizador, coloquei uma mecha de cabelo atrás da orelha para responder a pergunta.

— Até tem. — Respondi. — E obrigada, hmmm, como eu posso chamar vocês?

— Que bela educação vocês têm. — Sibilava Aono, olhando estreitamente para os amigos.

— Começando por você, né cabeção? — O garoto da bateria retrucava. – A tarefa de nos apresentar era sua.

— Se vocês não estivessem criando mil teorias, eu teria feito. — Aono suspirou, se virando para mim. — O mais falante é o Peiji. Ele é chato, então não dê muita bola pra ele. A gente só mantém ele aqui porque é o melhor baterista que conhecemos.

— Ei! — Peiji protestava. — Depois que eu aceitar o convite da X, não chorem por mim.

— Tá, tá. — Aono prosseguiu. — Essa é a Ayane. Nossa vocalista e líder da banda. Segundo ela.

— E tô errada? — Se virando pra mim, Ayane continuou. — Você nem imagina como é ser a única garota no meio desses chatos.

— Esse é o Ogetsu, o baixista. É o nosso equilíbrio, mas não se engane por essa cara de bom moço.

Escutando um "ei" inconformado do garoto, ri, apontando para a garota não mencionada.

— E ela?

— Sou Kana. Eu não faço parte da banda. — A garota sorria, falando antes que Aono a apresentasse. — Esses aí se conhecem desde a infância. Eu conheci a Ay, e ela me apresentou ao restante do grupo.

— Ah é? — Comentei, interessada. — E hoje em dia você estuda com ela?

— Não, não. — Kana ria. — Tirando o Sou, todos estudam no mesmo colégio. Mas eu já estou na faculdade. Faço biologia.

Naquele momento, meu queixo caiu. Olhei de Kana para Aono, e em seguida refiz o caminho do meu olhar. Aono era um colegial, assim como o pessoal da banda. Mas Kana já estava na faculdade, o que acrescentava, no mínimo, uns dois anos a mais que ele. Então, ele gostava de mulheres mais velhas!? E por quê eu estava tão chocada com aquela informação?

— Poderíamos estar estudando todos juntos, se o pai do Sou não o colocasse naquela escolha de filhinhos de papai… Opa, com todo respeito. — Ayane sorria, olhando para mim de um jeito sem graça. Piscando os olhos, estava tão chocada com a descoberta anterior que só pude pegar o final da conversa.

— Não tem problema. — Ri, tranquilizadora. — Você não está tão errada. — Recebendo um suspiro aliviado em resposta, prossegui. — E como a banda surgiu? Vocês se apresentam em muitos lugares?

Erguendo o dedo indicador, Peiji chamava a atenção dos presentes, animado.

— Antes, você precisa acompanhar a gente. Ninguém quer ouvir uma história boa com suco.

— Ela não bebe, cara. — Estalando os lábios, Aono afastava a bebida, recebendo um olhar confuso de Kana e do restante do grupo. Por que ele estava se preocupando tanto comigo? 

— Ah, foi mal. — O garoto prosseguiu, pedindo um drink sem álcool. Assim que recebi, agradeci ao bartender, que retribuia o sorriso. — Agora que tá todo mundo servido, podemos começar.

— E quem disse que é você que vai contar a história, cabeção? — Cortando-o, Ayane prosseguiu. — Esqueceu quem é a líder? — E sem espaço para réplicas, a garota afastou as garrafas vazias para se sentar no balcão, atraindo a atenção dos presentes. Ayane era... intensa. Acho que Kaori gostaria dela. — Então, acho que eu posso começar dizendo que eu odiava o Pei. Ele sempre foi um bronco, e eu pensei que uma amizade entre nós nunca daria certo. Mas eu acho que acabamos ligados pela música. O Sou tinha acabado de largar o violino, eu estava passando por uns dilemas, o Ogetsu... É, ele só estava sendo ele mesmo. 

— Ei, porque vocês sempre me taxam como desligado?

— Preciso dizer!? — Rindo, Ayane prosseguiu. — Quando a gente se deu conta, estávamos fazendo música. No começo era só algo que a gente fazia pra se divertir, mas convenhamos, uma banda não é uma banda sem um nome que a represente.

— E foi assim que nasceu a S.O.A.P. — Pei completou, deixando Ayane irritada. — Foi mal, na minha cabeça essa frase ficou foda.

— Sua cabeça é feita de coxinha de frango, idiota. — Ayane prosseguiu, ignorando a expressão de cachorro pidão que o garoto fazia. — Mas como ele disse, foi assim que nasceu a S.O.A.P… E com um nome, tínhamos a oportunidade para nos profissionalizar. 

S.O.A.P é a junção dos nossos nomes. — Peiji comentou, orgulhoso. Naquela altura a Ayane já havia desistido, então ele só prosseguiu. — E também é uma alusão a "Soap" (Sabão em inglês). A Ayane é fã da Melanie Martinez.

— Ei, não fala da minha Melzinha! — Estalando os lábios, Ayane retomava o raciocínio. — Enfim. A gente se apresenta em bares como esse, que dão um apoio para artistas independentes como nós. Temos algumas músicas autorais, feitas pelo nosso compositor. — Ayane faz uma pausa, apontando para Aono. — E fazemos covers de músicas indie rock, que é o gênero que a gente curte. Nós buscamos crescer no mercado com as nossas músicas mas... É difícil crescer sem uma agência especializada.

— Nem por isso a gente desiste. — Ogetsu afastava a bebida dos lábios, comentando. — Tentamos por outros meios, como as audições. Os vencedores conseguem patrocínios, além da puta visibilidade para conseguir o contato de produtoras grandes.

— Ah, falando em audições. — Peiji se erguia, exibindo um olhar confiante. — Vamos participar na final do CXC Square. E eu já estou pronto para amassar as outras bandas.

— Vai com calma, idiota. — Ayane advertiu. — As outras bandas também são muito boas.

— Mas a gente é a S.O.A.P., poxa! Somos invencíveis. — Pei afastava a manga da camisa, exibindo os músculos do braço, levando todos as risadas.

— Como se isso fosse um ringue de luta. — Aono balançava a cabeça, sorrindo. E se dirigindo a mim, disse. — Se você quiser, aparece lá.

— Mal posso esperar. — Confirmei, devolvendo o sorriso, que logo murchou ao olhar para Kana, que mesmo conversando com Ogetsu, nos observava. — Vou torcer por todos vocês. E também quero escutar todas as músicas e quero que você me passe o link para eu divulgar no Instagram.

— Você é tipo aquelas garotas que conversam com uma câmera? — Ayane arqueava a sobrancelha.

— Um pouco. — Confessei. — Eu posto sobre coisas cotidianas, como reviews de maquiagem, posts de look do dia, essas coisas.

— Traduzindo: você é uma patricinha. — Rindo, Ayane abanava as mãos quando arregalei os olhos. — Relaxa. Você é a primeira patricinha que eu gosto.

Ri, balançando a cabeça em negação, me recordando da primeira impressão que ela teve de mim. Talvez ela tenha me achado "fru fru" demais, naquele momento em que arqueou as sobrancelhas, e julgando o modo como ela e as outras pessoas presentes no bar estavam vestidas, acho que ela tinha razão ao pensar assim. Minha saia colegial roxa e meu suéter de pelinhos, além dos sapatos maryjane não permitiam que ela pensasse o contrário.

— Bom, acho que já é hora de te levar para casa. — Suspirando, Aono se colocava ao meu lado, olhando na minha direção. E novamente aquele ar protetor chamava a atenção de todos no balcão, inclusive a atenção da namorada dele.

— Ah, não precisa. — Sorri, agradecendo. — Você pode ficar com os seus amigos. Posso ir para a estação sozinha.

— Já tá tarde. — Aono retrucava. — É perigoso andar sozinha.

— Com certeza vai chover. — Pei zombava. — Esse cara é o mais desinteressado que eu conheço.

Estreitando os olhos para o amigo, Aono o fuzilava com o olhar, e Ayane o cutucava, advertindo-o silenciosamente. Tímida, me levantei, olhando para todos com um sorriso no rosto.

— Eu adoraria ficar mais. — Comecei, fazendo um bico. — Mas ele tem razão. Não posso voltar tarde.

— Tudo bem, princesa. — Ayane piscou um dos olhos, claramente tirando uma comigo ao dar ênfase ao adjetivo. — Tá aí, esse pode ser o seu apelido.

— Concordo! — Pei levantava a garrafa, brincalhão. — A gente te vê numa próxima, princesa.

— Ei, idiota! — Ayane protestava, limpando resquícios de bebida em seu rosto. — Olha pra onde sacode essa garrafa!

Peiji ria, puxando-a para uma série de beijos na bochecha. Enquanto ela se esquivava, o xingando, me despedi de Ogetsu e Kana, recebendo um olhar demorado e um sorriso contido da garota de cabelo curto. Me senti um pouco mal de estar roubando o namorado dela dessa forma, mas tinha certeza que ele voltaria para ela logo, afinal Aono só me levaria até a estação.


— Os seus amigos são bem animados. — Comentei, sentindo a brisa gélida da noite. — Gostei deles.

— Eles também gostaram de você. — Aono comentou, colocando a mão nos bolsos. Devido ao horário, a pouca movimentação nas ruas fazia parecer que éramos os únicos a passar por ali.

— É, acho que eu tenho esse dom. — Brinquei, achando graça ao notar a sobrancelha arqueada do garoto. — A Kana também é muito legal. Ela é... sua namorada? — Arrisquei, mordendo os lábios em antecipação, ansiosa pela resposta.

— Não. — Aono respondeu rapidamente, e diferente do que eu esperava, sua resposta me causava mais dúvidas. O que era aquilo que eu havia presenciado, então?

— Mas vocês... Ah, eu senti alguma coisa rolando.

— E isso não necessariamente quer dizer que estamos namorando.

— Por Kami, Aono! — Levei as duas mãos até a cabeça, indignada com o vazio das respostas. — Você pode por favor ser mais claro?

Sorrindo ladinamente, o garoto interrompeu os passos de forma abrupta e se colocou na minha frente. Em seguida, Aono pôs as mãos em meus ombros, me forçando a olhar para ele.

— Você é muito ligada às convenções sociais, Jones. — Ele suspirou, quase cantarolando o meu sobrenome. Na penumbra, seus olhos pareciam ser dois corvos me encarando profundamente. Prendi o fôlego sem perceber. — Eu e a Kana podemos ser muitas coisas, mas preferimos não ser nada. A gente se gosta, e se curte. Mas é só.

"Você é muito ligada às convenções sociais, Jones?" "A gente se gosta, e se curte, mas é só." O que raios ele queria dizer? Odiava quando ele explicava, e explicava, mas acabava não esclarecendo nada.

— Então... resumindo. — Comecei, tentando entender. — Vocês não têm um relacionamento sério? Mas ao mesmo tempo, nutrem algum sentimento pelo outro? E compartilham desse sentimento... estando juntos...?

— Por aí. — Aono sorria diante da minha tentativa, voltando a caminhar. — Entenda isso como ficar. Você e Kentin não tiveram essa fase?

Naquele momento, me calei. Eu não tinha propriedade para dissertar sobre o meu relacionamento com Kentin, pelo "simples" motivo de não ter começado. No bonde em que eu estava, havia pego à muitas estações depois da inicial.

Mordi as bochechas em busca de alguma resposta convincente, mas não foi necessário quebrar a cabeça após Aono me silenciar, apontando para um beco escuro. Fazendo o que ele pedia, me entreguei ao silêncio, e segundos depois pude escutar o som que havia feito o garoto se calar. No fundo do beco, um som esganiçado chamava a nossa atenção, e após duas recorrências, decidimos investigar a causa, ou o quê estava provocando aquele som.

— Você fica atrás de mim. Pode ser perigoso. — Sorri, assentindo, mesmo que o indicador de perigo fosse igual para ele. Não conseguia imaginar o Aono de alguns meses atrás sendo tão cauteloso comigo, o que significava que a nossa relação estava mudando, e isso era bom, eu acho.

Enquanto eu divagava sobre a nossa relação, Aono afastava alguns caixotes, revelando a causa do som. Em cima de uma banqueta velha, um gatinho se enrolava no próprio corpo, visivelmente ferido. Seus miados, agora que ele estava livre das caixas que o mantinha preso, se assemelhavam a choramingos.

— Tadinho. Ele tá muito ferido! — Coloquei a mão sobre a boca, chocada com o que estava vendo. Ao me aproximar, vi que era aquele gatinho que ficava em frente à estação. — Esse gatinho ficava perto da estação. Eu tentei pegá-lo duas vezes, mas ele sempre fugia... Quem pode ter feito uma maldade dessas com um bichinho tão indefeso!?

— Essa é a realidade dos animais que vivem na rua. — Suspirando, Aono tinha o semblante enraivecido. — As pessoas se sentem livres para maltratá-los, feri-los... A mesma pessoa que fez isso com ele podia ter o levado para alguma ONG de proteção aos animais. Mas as pessoas sempre preferem a violência.

Apertei os punhos, me perguntando quem poderia ser tão perverso a esse ponto.

— Foi mal, Jones. Eu... — Passando a mão entre os fios de cabelo, Aono se abaixava para pegar o gatinho, que acuado, tentava se soltar. Em uma dessas tentativas, o animal o arranhava, fazendo-o morder os lábios pela dor. — Vou chamar um carro pra você. E depois... Vou levar esse aqui para um veterinário.

— Nada disso! — Exclamei, sendo rápida ao passar o suéter pelos braços, oferecendo-o. A brisa gelada era um problema para a blusa fina que eu usava por baixo, mas nem isso me incomodaria diante daquela situação. — Pode usar para segurá-lo. Vou procurar um veterinário de emergência enquanto isso. Não vou te deixar sozinho.

— Mas você... — Indeciso, Aono olhava de mim para o suéter, demorando um pouco para aceitar. Ele ficaria inutilizável depois disso, mas não tinha problema. — Sua família vai ficar preocupada.

— Ligo pra minha mãe quando a gente chegar. — Procurando no Maps, achei uma clínica veterinária perto de onde estávamos, e após Aono envolver cuidadosamente o gatinho no meu suéter, indiquei o caminho.

— Não vou te convencer a ir para casa, né?

— Negativo. — Sorrindo, caminhei em passos rápidos ao lado do garoto, e antes de irmos para a veterinária, passamos na konbini para comprar band-aid e pomada, para o arranhão no braço do Aono.

Enquanto Aono conversava com a veterinária a respeito do estado de saúde do gatinho, liguei para Hanako, tranquilizando-a. É claro que precisei de algum tempo para convencê-la de que estava tudo bem e que eu voltaria em segurança, mas felizmente, ela havia permitido que eu ficasse, desde que não demorasse para dar notícias.

— Conseguiu falar com a sua mãe?

— Uhum. Ela só pediu que eu me comunicasse, para não a deixar preocupada. — Balancei a cabeça em afirmação, me sentando ao lado do garoto em seguida. Estávamos na sala de espera, que estava vazia devido ao horário. — Como ele está?

— A veterinária o levou... E ainda não voltou com notícias. — Disse Aono, suspirando. O suéter manchado de sangue ainda repousava em seu braço arranhado.

—  Ainda não consigo acreditar que tenham pessoas tão más espalhadas por aí. — Suspirei, pegando o suéter com delicadeza. Deixei a peça inutilizada em um banco ao meu lado, e abri a sacola que segurava, puxando uma pomada de dentro. Aono fez uma careta no mesmo instante. — Nem vem. A gente precisa tratar disso.

— Mas...—

Shhh... — Pedi. — Não vai demorar. Prometo. — Levantei o dedo mindinho, sinalizando a promessa. Em seguida, tirei a tampa da pomada e depositei um pouco do conteúdo em meu dedo, levando-o à área lesionada. Distribuí o conteúdo com delicadeza, ainda assim, não consegui impedir os resmungos do garoto, que encolhia o braço devido a ardência da pomada. — Não sei como você consegue fazer tatuagem, se está sofrendo tanto por causa de uma pomadinha...

— É diferente. — Aono estalava os lábios,emburrado.

— Não é não. — Retruquei.

Em silêncio, abri o pequeno pacote de band-aid, puxando um curativo. Em seguida, tirei a parte autocolante, grudando-o no braço do garoto. Aono, olhando o meu eficiente trabalho, resmungou um “obrigado” baixinho, me fazendo rir.

— Não tem de quê.

O silêncio me levava a olhar para o relógio, fixado no teto branco da clínica veterinária. Os ponteiros mostravam que já passava de 1h da manhã, e no horário biológico do meu corpo, as horas se confirmavam em bocejos curtos.

— A Kana concorda com isso?

— O quê?

— Com o não-namoro. — Me expliquei, depois de ter começado o assunto repentinamente. — Ela parece gostar bastante de você.

— Ah... Você não esqueceu isso, né? — Disse Aono, zombando da minha curiosidade. Ouvindo o meu estalar de lábios, o garoto prosseguiu. — Por quê ela não concordaria?

— Ah, é que geralmente as garotas querem mais do que isso, sabe? E não sei, talvez ela já tenha dado sinais e você que não percebeu. Não duvido nadinha.

Sinais? — Aono me olhava de uma maneira estranha, arqueando a sobrancelha.

— Sinais, oras! — Inflei as bochechas, devolvendo o olhar. Será que eu tinha que ser uma espécie de tutora no quesito amor? Não que eu tenha conhecimento suficiente pra isso, mas... — Por exemplo... Você já disse o que mais gosta nela? Já demonstrou que ela é a sua melhor companhia?

— Hmmm... — Passando os dedos entre os fios de cabelo, Aono meneava a cabeça. — Talvez.

— Não é uma boa resposta. — Sibilei, me virando na direção dele. Estávamos frente a frente quando prossegui. — Ok, vamos fazer isso. Tenta comigo.

Aono me encarava com uma sobrancelha arqueada, sinalizando que não havia entendido. Bati na minha própria testa, suspirando profundamente. Ele precisava mesmo de umas aulas de interpretação.

— Imagina que eu sou a Kana. O quê você diria para ela? Quais seriam as palavras certas para demonstrar o que sente?

— Preciso mesmo fazer isso?

— Mas é claro que sim! — Exclamei, levando as mãos aos lábios em seguida, me auto-repreendendo pelo barulho. — Isso é o básico do romantismo. Todas as garotas gostam disso.

Me encarando por alguns segundos, Aono suspirava, certamente pensando o contrário. Não vacilei, sorrindo.

— Gosto quando sorri. — Ele começou, repentinamente. O choque das palavras, sendo recebidas em meus ouvidos, me despertava de uma maneira estranha. — Gosto quando o seu sorriso é especificamente pra mim, tão claro quanto o sol do fim da manhã. Gosto quando aperta os olhos, sinalizando que não entendeu alguma coisa. Gosto do jeito que se preocupa com os seus amigos. Gosto da sua confiança quando fala com a turma. Gostei do jeito como me defendeu. Gosto do seu jeito intenso. Gosto de olhar pra você e me sentir em um campo rodeado de girassóis. — Aono me olhava fixamente, ignorando a vermelhidão em minhas bochechas. Eu havia começado tudo aquilo, mas aquelas palavras, elas... Eu queria esconder o meu rosto, tampar os lábios dele, tudo para correr daquela sensação eletrizante, que percorria o meu corpo, desembocando em borboletas no meu estômago. Abri e fechei os lábios, tentando emitir um som, mas a cada sílaba, a cada palavra, meu coração saltava dentro do meu peito, impedindo-me de esboçar qualquer reação. — Gosto do modo como você me tira do meu mundo em preto e branco, para me jogar no seu, repleto de cores que me abraçam de uma forma inesperada, e nova. Gosto do modo como você caiu de paraquedas na minha vida... Causando-me um turbilhão de emoções a cada vez que estou perto de você.

Não percebi que estava me agarrando ao encosto da cadeira, até sentir a ardência em ambas as mãos. Respirei com dificuldade, como se a muito tempo estivesse incapacitada de respirar. Aono também estava ofegante, atônito, como se estivesse se recuperando de uma descarga elétrica. E foi desse jeito, lidando com nossos próprios corações desordenados, que a veterinária nos encontrou.

— Quem de vocês é o responsável pela gatinha...?

— Sou eu. — Aono se levantava repentinamente, deixando-me atônita em meu lugar. Não consegui ouvir as últimas atualizações do estado da gatinha - que descobri ser fêmea - nem o que ficou decidido depois das informações. Meia hora depois, quando eu ainda sentia o meu corpo latejar e chacoalhar pelas palavras recebidas, Aono erguia a mão para mim, me chamando.

— O quê...? — Pisquei, aturdida. — Ah, já vamos? E a gata?

— Ela vai ficar em observação. — Aono me explicava, enquanto eu me preparava para ir. O ar do lado de fora da clínica nos recebia sem aviso prévio, e no momento em que alisei meu braços, protestando contra o frio, senti os braços de Aono me envolverem, compartilhando calor. — Além dos ferimentos externos, ela estava com uma das patas fraturadas. Por isso ela me arranhou, quando tentei pegá-la. Devia estar com muita dor.

Assenti, sentindo-me mal pelo estado de saúde da gata. 

— Ela vai ficar bem, né?

— Vai. Só precisa ficar sob os cuidados dos profissionais por mais algum tempo. — Aono sorria, me tranquilizando. Na penumbra, seu rosto parcialmente iluminado pela luz dos postes me recebia trazendo as palavras do momento anterior. Minhas bochechas coravam novamente, dessa vez pela vergonha. Como eu pude ter confundido as coisas? É claro que ele havia adaptado para mim, mas era Kana a garota a receber aquelas palavras. Eu não estava em uma posição tão alta na vida de Aono para preencher a vida dele de cores, como ele havia dito. Mas por um momento, talvez eu... — Você está vermelha. Ainda tá com frio?

Sem esperar por uma resposta, Aono me encostava em seu corpo, me aturdindo por completo. Céus, por quê esse garoto não sabe ler nas entrelinhas!!??

— Eu… eu estou bem. — Consegui dizer, depois de tomar fôlego. Meus dedos nunca digitaram tão rápido, e eu agradeci mentalmente quando o ícone do aplicativo de corrida apareceu.

— Espera. — Tomando o celular da minha mão, Aono demorava algum tempo teclando, antes de me devolver. E tudo o que eu conseguia pensar era no toque dos dedos dele contra o meu.

— Espera. Que endereço é esse?

— Da minha casa, ué.

— Mas... Você não precisa me levar. Eu posso compartilhar a corrida. Se você me deixar primeiro em casa, para depois ir para a sua, vai chegar muito tarde.

— É o mínimo que eu posso fazer, depois de você ter me esperado.

— Mas eu...---

— Quem está sendo teimosa agora? — Sorrindo, Aono abria a porta para mim assim que o carro parava ao nosso lado. Em seguida, percorríamos o caminho até a minha casa em silêncio.

Por vezes, observei Aono encostado na janela, vendo como o cenário lá fora interferia nas feições do seu rosto. Pensei naquelas palavras, e no modo como os seus olhos pareciam nublados ao me encarar. No jeito como a pronúncia chegava aos meus ouvidos, na feição do seu rosto e...

— Chegamos. — Interrompendo os meus devaneios - em uma ótima hora, por sinal, - o motorista se virava para nos encarar. Olhei dele para Aono, que abria novamente a porta para mim.

— Hmm... Tchau. — Acenei. Do lado de fora, abri um pequeno sorriso antes de me afastar. — Me manda uma mensagem quando chegar em casa.

Vendo o carro partir, observei até que a rua voltasse ao silêncio habitual. Bati nas minhas bochechas, me obrigando a entrar e esquecer o que quer que tivesse acontecido de estranho hoje.

No entanto, quando escorreguei para dentro de casa e tentei ser o mais silenciosa possível diante das luzes apagadas e o silêncio capaz de me denunciar em qualquer passo em falso, Yuina me esperava em cima do meu lado da beliche, me fazendo tapar a boca depois de um grito.

— Yui! O quê você tá fazendo acordada!?

— O quê você estava fazendo chegando a uma hora dessas? — Minha irmã retrucava, cruzando os braços na frente do corpo.

— Longa história. — Suspirei, jogando a bolsa em um canto do quarto, enquanto tirava os sapatos. — E você, mocinha, já deveria estar dormindo.

— Quando a mamãe disse que você chegaria tarde, não consegui dormir. Você estava com o Kentin?

— Não. — Respondi, passando o lenço demaquilante em meu rosto. — Estava com um amigo.

— Um amigo? — Yuina sorriu, sentando-se com as pernas cruzadas. Alguém avisa pra essa menina que já está quase amanhecendo? — Me conta tudo!

— Não tem nada pra contar, curiosa. — Ri, pegando meus produtos para limpar o rosto. Antes de seguir para o banheiro, me esquivei de um travesseiro jogado por Yuina. — Ok, juro que conto. Mas amanhã. Hora de dormir, ou então você vai dormir até tarde amanhã e a mamãe vai brigar.

Temendo uma bronca de Hanako, Yuina pulou para a cama dela, se cobrindo dos pés até a cabeça. Balançando a cabeça em negação, fechei a porta antes de suspirar, lembrando de tudo o que tinha acontecido, desde presenciar Aono e Kana juntos até aquelas palavras que causavam reações no meu estômago idiota.

Não esperava ser convidada por Aono para buscar a gatinha, quando ela teve alta. No entanto, animada e ansiosa, andei aos pulinhos pelo caminho da estação, até encontrá-lo com as mãos enfiadas nos bolsos, nos seus típicos all stars de caveira, calça jeans e camisa de banda. Uma das orelhas carregava aquele brinco de serpente, enquanto a outra ostentava diversos brincos argolados.

— Você demorou.

— Ah, nem tanto. — Brinquei, encarando a sua sobrancelha arqueada para a minha produção de hoje. Em um dos seus comentários, minha saia marrom plissada, camisa social branca com botões, e blazer preto com listras, além dos meus já conhecidos sapatos maryjane me destacavam dos demais. Algo afiado no seu tom de voz me fazia crer que aquilo não era uma coisa boa.

Andamos lado a lado, observando a movimentação matutina. Parando no sinal, Aono me olhava com uma das sobrancelhas arqueadas, me fazendo rir ao me lembrar da nossa “primeira” interação. Esperei pacientemente ao lado dele, mostrando em minha expressão zombeteira que ele não precisaria me segurar hoje.

— Você já sabe o que vai fazer com ela? Digo, a gatinha. — Perguntei, próxima a clínica veterinária. Quando a deixamos, não perguntei o que Aono faria. O mais lógico era pensar que ele a levaria para a ONG, e lá ela seria muito bem cuidada. Mas algo me fazia desejar que ela tivesse um lar fixo, e ser cuidada com todo o amor do mundo. — Eu queria muito ficar com ela, mas a Yui é alérgica...

— Vou ficar com ela. — Enquanto eu me lamentava pela impossibilidade de ter um gatinho, me surpreendi com a declaração do garoto. Olhei para ele a fim de algum sinal de brincadeira, mas Aono não faria aquilo.

— O quê?

— Vou ficar com a gatinha. — Aono repetiu, abrindo a porta da clínica para que eu passasse. Em seguida, completou. — Não te chamei aqui só para buscá-la... — Ele olhava para baixo, coçando a nuca. — Vou passar no pet shop em seguida. Queria... Uma segunda opinião.

— Aono, isso é ótimo! — Exclamei, seguindo para a recepção. — De verdade, fico muito feliz. Ela vai te fazer tão bem...

Sorrindo, Aono assentiu. Esperei na sala de espera até que ele conversasse com a veterinária, e quando ele voltou, trazia a gatinha na caixa de transporte.

— Ela está bem? — Me levantei abruptamente, apreensiva.

— Está, sim. Os ferimentos externos e a fratura foram tratados, mas o emocional, só com o tempo. A veterinária me disse que ela está muito assustada, devido ao tempo que viveu nas ruas. Vai ser difícil a adaptação.

— Eu imagino. — Suspirei, me aproximando cautelosamente da caixinha. — Ela deve ter sofrido tanto... Mas agora, daqui para a frente vai ser só amor.

Aono assentiu, e em seguida se afastou para assinar mais algumas papeladas. Minutos depois, estávamos liberados.

— Agora... Vamos no petshop comprar muitas coisas divertidas para ela. — Sorri, olhando para a altura dos prédios. Aono me acompanhava nessa mania costumeira, até chegarmos no prédio que procurávamos.

Peguei um carrinho, enquanto Aono procurava os itens básicos para os cuidados com a gatinha. Abri um sorriso contido ao vê-lo encarar diversas opções de rações, enquanto dialogava com a atendente. Daquele jeito, ele parecia tão... atraente. Como se fosse incapaz de me imaginar em qualquer situação que não fosse essa, comprar itens para o nosso felino. Balancei a cabeça em negação, assustada com o pensamento.

— Por quê você não pede a opinião da sua namorada? — A atendente sugeriu, sorrindo assim que me aproximei. Automaticamente, minhas bochechas viraram tomates vivos.

— Ah não, a gente não...-- — Parei assim que percebi que Aono considerava a ideia, e estava me encarando, com dois pacotes de ração da mão. — Eu acho que... Tem diferença?

— Ah, tem. — A atendente balançava a cabeça em afirmação, dando veracidade ao que falava. — Vocês são recém-casados? É que parecem tão novos... Mas enfim! Tem muitos casais como vocês que vem para comprar rações, brinquedos e etc. É fofo observar essas pequenas dúvidas.

Enquanto eu tentava desfazer o mal entendido, rubra dos pés a cabeça, Aono considerava as duas rações em mãos, e a gatinha miava, dentro da caixa. Onde é que eu fui me meter?

— Por Kami! Aquela atendente insistia em achar que nós somos casados. — Ronronei, segurando um cartão de fidelidade para casais. Ao lembrar da ideia de casamento, voltei a ficar idêntica à um pimentão novamente.

— Nem morto. Se fôssemos casados, você ia me falir. — Estalando os lábios, Aono apontava para as sacolas, mostrando o estrago. Ok, tinha algumas coisinhas além da conta. Mas tudo era em prol do bem estar da gatinha, e se Aono não lembrava, ele havia me convidado para receber uma segunda opinião. Por que estava reclamando agora?

— Você vai me agradecer depois. — Respondi. — E nem saiu tão caro, por causa disso. — Balancei o cartão fidelidade, que estava marcado no primeiro cartão. — Sempre que quiser comprar aqui, é só me trazer.

— Além de amigo de emergência, sou seu esposo de mentira?

Aono havia dito aquilo despretensiosamente, mas o tom ácido de suas palavras e o sorriso ladino me diziam ao contrário, chacoalhando as paredes do meu órgão vital. Todo aquele acúmulo de sangue me deixava quente e vermelha.

Felizmente, havíamos parados em um café, e um bubble tea de matcha caía bem em toda a fervura presente no meu corpo. Sugando o líquido pelo canudo, encarei Aono, que tomava um expresso.

— É hoje que eu vou conhecer a sua casa?

Tossindo, Aono precisava de um algum tempo para me responder.

— É... hmmm...

— Ah, eu só estou brincando. — Abanei as mãos, rindo. Não sei se Aono ficava confortável em levar alguém para a casa dele, quer dizer, não alguém que ele não tem tanta intimidade.

— Você pode ir. — Disse ele, olhando para o lado.

Sério!? — Bati as mãos na mesa, demonstrando minha empolgação. — Quer dizer, tem certeza?

— Uhum. — Aono abriu um pequeno sorriso, certo da decisão. Mas uma pequena falha no canto dos olhos me passava a impressão de uma certa insegurança.


Horas depois, Aono girou as chaves do apartamento, abrindo a porta devagar. Eu estava sorrindo e segurando a caixa de transporte quando, no momento em que a porta foi totalmente aberta, escutei o barulho do molho de chaves tilintar contra o chão. Seguindo a direção do som, vi Aono correr na direção de uma mulher, que estava caída no início do corredor. Coloquei a mão na boca ao perceber que ela estava desacordada.

— MÃE!?

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E chegamos ao final do capítulo! Como vocês estão? Finalmente, todos os personagens foram apresentados com a chegada dos amigos do Aono. Eu já tô amando eles, e vcs?
Opiniões sobre a Kana? Ela pareceu achar estranho a aproximação dos AoKawa, será que ela vai se impor ou realmente o relacionamento deles é como o Aono pensa? Possiblidades….

Eu achei MUITO fofo a parte que eles vão fazer compras com a gatinha como se fossem casadinhos, e por falar nela, que bom que a gatinha da estação conseguiu um lar, ne? Agora só falta um nome. Vcs tem sugestões?

O Cap tinha tudo pra ser fofo se não fosse esse final… O que será que aconteceu com a mãe do Aono? Torcendo para que ela esteja bem.

Enfim, eu espero que vcs tenham gostado do ep e espero todos aqui para o próximo! Um xêro!

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