Gustavo

Preto definitivamente é a minha cor. Eu sempre uso preto, e mesmo se eu não estiver totalmente de preto , sempre estou usando nem que seja uma peça dessa cor.

Para a merda do primeiro dia de aula, eu uso contornos pretos, saia jeans de lavagem azul clara e camisa de mangas curtas da cor...? Isso,  preta. A escola não é lá o melhor lugar para mim, eu vou porque preciso, lá é a selva, literalmente. Convivo com animais da pior espécie e fazer o que eu faço foi a maneira que encontrei para não ser oprimida como fui até metade dos meus  quatorze anos. Ou seja, para sobreviver de uma maneira digna.

Agora vamos para o que eu faço. O que eu faço? Eu minto. Surpresa!!! Eu sei, cômico, mas trágico também. Principalmente quando se tem uma amiga que te lembra disso todos os dias. "Tu acha mesmo que ninguém nunca vai descobrir que tu na verdade nunca beijasse todos aqueles boys e nem fizesse todas aquelas putarias que tu diz que fez? A mentira tem perna curta, minha filha, acorda!"

Roberta não precisa me lembrar todos os dias que a merda da minha máscara um dia vai cair, porque às vezes eu quase consigo acreditar, mas tudo bem, eu não acredito. Deixe - me explicar : as coisas são diferentes aqui do lado errado. Por que você acha que após as pessoas errarem uma vez, ela erram de novo sem pensar? Porque quando se está dentro do jogo, parece difícil acreditar que algo vai acontecer com você, e depois que se safa uma vez, tudo passa a virar costume, então a crença de que nunca será pego só fica mais forte.

Até você cair, e aí é só ladeira abaixo.

- Oi, gato preto - Roberta chega no refeitório, sentando do lado oposto da mesa.  Ela usa vestido justo e provocante, que deixa sua bunda enorme em evidência. Eu particularmente adoro.

- E aí, já conhecesse a bicharada nova? - eu me refiro aos alunos.

- O zoológico só enche, e pior, com animais mais insuportáveis que os que a gente já tá acostumada. Tu tem que ver a quantidade de pirralhas metidas que eu vi. Não sabem a merda que é essa escola e a merda que é o ensino médio.

  Tombo a cabeça pra frente, colocando em cima dos meus braços cruzados na mesa. Eu não estou pronta para encarar a escola mais uma vez, toda a chatice e os olhares reprovadores dos professores , as notas baixas e o sufoco pra passar no final do bimestre após eu ter zoado com a turma do fundão durante o período em que eu devia ter estudado.

- Aonde tá o resto da gangue? - pergunto após levantar a cabeça e encarar um cacho que teima em cair nos meus olhos.

- Lorena nāo vem hoje, tu sabe que ela não gosta de primeiro dia de aula. Alice disse que daqui a pouco encontra a gente e Leticia tá fazendo o que ela faz de melhor - nós duas nos encaramos e falamos ao mesmo tempo :

- Agarrando algum novato.

   O primeiro dia de aula da nossa escola é como em qualquer outra que eu conheço, todo mundo vêm muito arrumado para conhecer seus adversários de guerra durante  o ano, quer dizer, isso não vale para os novatos, eles acham que vão  encontrar os veteranos mais gatos da cidade, conhecer eles, ficar com eles e assim se tornar o que os americanos chamam de popular, o que Roberta chama de " inchiridos", e eu também, às vezes. Os novatos causam pena! Cheios de sonhos que eles juram que serão concretizados aqui,  bom, se tu quiser causar uma guerra, aqui é o lugar certo.

O segundo passo de um primeiro dia aqui é conhecer os professores, a diretora sempre monta um pequeno palco na quadra coberta da escola para apresentar os professores e anunciar em quais turmas eles darāo aula. Os professores ,por sua vez, falam um breve discurso motivador quando seu nome é chamado, um discurso que não será lembrado no final do ano após tantas merdas terem acontecido na vida desses otários.

E nós, os veteranos, encaramos esse patético circo com os olhos cansados, ao menos eu quero dormir. A gente já sabe que nada será bom, mesmo que você tire notas altas , passar pelo ensino médio nunca é bom.

- Quando eles vão calar a boca e colocar funk? - Leticia pergunta, com tédio. Eu acaricio sua cabeça  , enrolando seus cabelos loiros e cacheados (que se mantém presos num coque, infelizmente ela tem vergonha de soltá - los ), tentando me manter acordada ao seu lado.

- Pelo visto, o discurso aumentou - diz Alice, bocejando.

- Velho, eu vou no banheiro, cansei dessa chatice! - anucio, deixando o cabelo de Leticia de lado e seguindo pelo caminho entre as pessoas que se espalharam pela arquibancada e na frente dela.

Não costumo observar os olhares ao meu redor, após tanta repetição de olhares,  eu já não me importo, mas agora eu observo, dos veteranos até os novatos, eles me olham e cochicham com os outros, uma parte só me observa - o peso da minha fama - e tem uma exceção que não só olha de esguelha como também ri como uma hiena.

Minhas botas, involuntariamente, me levam até a pessoa em questão, e eu sinceramente não gostaria de vê - la agora , mas sim de preferência no inferno quando eu fosse amiguíssima do capeta e ele me ajudasse a acabar com a alma da desgraçada bem devagar.

- Oi, Jô -  ela me chama assim, como se fosse minha amiga , e segurando o riso como se eu fosse uma palhaça. Ela acena, mesmo que eu já esteja em sua frente.

Se você acha que já conheceu gente irritante, foi porque não conheceu Jennifer. Ela é dez mil vezes mais, não importa quem você tenha conhecido e julgou ser irritante, eu repito : Jennifer é dez mil vezes mais.

Jennifer é o que pode se chamar de "inchirida", ela é basicamente crente, mas eu sinto e vejo que a sua alma de piranha é louca para sair. Uma pobre piranha encubada.

- E aí - ergo o queixo. Me limito a dizer seu nome, tenho medo de que acabe acrescentando um         " desgraçada filha da puta " nele.

- Bem - vinda de volta - ela segura mais o riso. "Segura na māo de Deus, segura na māo de Deus..."- cantarolo ,mentalmente ,para não cair na tentação do capeta agora e acabar com sua vida além da alma que eu já tenho em mente. -  vi que a gente ficou na mesma turma de novo, a diretora deixou todo mundo ficar nas mesmas turmas.

- Que desgraça! - resmungo.

- O quê?

- Que desgraça - repito, a olhando friamente, ela para de segurar o riso. De repente, a desgraçada não vê mais graça.

  As pessoas ao nosso redor começam a observar a cena com atenção, essa cena já se repetiu muitas vezes, a típica cena em que todos pensam que o pau vai comer entre nós duas, mas eu, como em todas as vezes, desvio da cobra e sigo meu
caminho.

- Aposto que ela vai agarrar algum novato no banheiro - ouço ela comentar aos risos com seu grupo

Não dou atenção, isso é o resultado do que eu plantei e por mais imbecil que pareça ser, ela me inveja exatamente por isso, porque eu "vou agarrar algum novato no banheiro ".

Começo a rir sozinha assim que entro no banheiro , mas paro assim que lembro o que ela disse. Então seria mais um ano com" a família 2c " - como a diretora queria que a gente se visse -, não que eu esteja surpresa, é óbvio que eu já esperava que continuaríamos "inseparáveis."

Minha turma é dividida em quatro grupos: as piranhas que sāo piranhas de verdade, não imitações como eu; as crentes que sāo amigas das piranhas, porque obviamente sāo piranhas também, tem o meu, que é composto por cinco garotas sensatas, e tem o dos meninos que é só os meninos, eles se espalham por todos os grupos.

E por falar em sexo masculino, não há um decente nessa merda. Nenhum novato que preste nos terceiros anos, ou segundo...

Pow!

Eu bati em algo, merda!

- Ai! - ouço um gemido masculino  quando  saio de uma das cabines do banheiro. Eu bati em alguém e quando fechei a porta a fim de ver quem foi minha vítima ( drogas de portas que abrem pra fora!) , senti vontade de voltar pra cabine, entrar na privada e implorar para ser transportada pra nárnia. Meu coração de repente para na boca e as minhas mãos tremem como eu nunca me lembro que isso alguma vez aconteceu. - Como é que alguém abre uma porra de uma porta assim? - a voz grave se exalta e um olho castanho me encara furioso, o outro está coberto por sua mão que esfrega o lado esquerdo da testa.

- Desculpa - eu consigo murmurar,  quase não dá pra ouvir, um frio percorre por minhas pernas quase me derrubando no chão.

   Obviamente eu estou espantada, não sei exatamente como minha cara está,  mas pela face do garoto irritado, eu devo parecer que tô chapadona.

- O que foi? - ele franze o cenho, sua mão deixa a testa e eu me deparo com um olho cinza atravessado por uma cicatriz que lhe dá um ar selvagem  - Tu tá bem? mina estranha...

  É essa frase que me tira da porra do transe, como assim eu sou estranha? e como assim esse imbecil é mal educado e não galanteador como o meu Gustavo?
  
- Estranho é tu, imbecil! Esse banheiro é feminino! - me exalto, cruzando os braços. Qualquer vestígio que eu tinha visto de Gustavo nesse imbecil com cara de mau,  acaba de se esvair.

- Eu percebi quando a dama delicada aí abriu a porta da cabine como se um trem fosse passar - ele ri, descarado. Sorriso absurdamente alinhado e com covinhas nas bochechas, covinhas fundas e não rasas como as minhas.

- Ah, te lasca, garoto - resmungo e vou até a pia.

Seu sorriso se alarga e ele me encara pelo reflexo do espelho com um olhar desafiador. Sinto meu coração na boca, novamente,  na verdade, acho que ele não voltou para o seu lugar nem por um segundo.

Limpo a garganta.

Eu tenho que me afastar desse cara antes que minhas pernas já trêmulas valicem de verdade , eu caia de joelhos em sua frente e ele pense que eu queira lhe pagar um boquete. Já que a essa altura, ele já deve conhecer minha reputação.

- Acho bom tu se mandar daqui, a não ser que a madame deseje ficar - zombo, mesmo que por dentro eu esteja tremendo. Merda! Eu não fui programada para ficar assim! Quase dois anos de trabalho pra eu me abalar por causa de um imbecil! Um imbecil que é a cara de Gustavo.

- Não vi a placa do banheiro quando entrei, é que eu sou novo aqui - começa, encostando na parede fria e aparentemente nem um pouco preocupado em se mandar.

- E eu com isso? - pego papel toalha para enxugar as mãos.

Lei de sobrevivência na escola, intimide antes que seja intimidado. Independente de ele ser legal ou não, não foi o que me mostrou a primeira impressão, então eu não posso ser educada com ele ou estaria sujeita a opressão. Eu precisei levantar minha cabeça rapidamente , para que ele não se aproveitasse de mim porque é isso que acontece quando alguém  te intimida e você não revida. Se você não usar sua voz poucos segundos após o opressor ,ela jamais será ouvida.

- Uou - sibila - tu é grossa.

- Eu sou muitas coisas - digo, ficando de frente para ele.

- É, tu tem razão - é só isso que ele diz, assentindo com um sorriso de lado e então se vai.

  Se eu não o encontrasse na quadra junto com o resto dos adolescentes que se acabam no funk, eu diria que nunca tínhamos nos encontrado naquele banheiro. Aquele garoto parece um sonho, até abrir a porra da boca.

- O que aconteceu contigo? - Roberta me para em meio as pessoas dançando em baixo  das luzes que piscam na quadra um tanto escura , sua pele negra brilha como se ela fosse uma sereia que acabou de sair da água - Tu tá parecendo um zumbi.

- Eu  falei com Gustavo - digo , olhando em seus belos olhos castanhos jabuticaba que logo reviram.

- Oh, Deus, agora o hospício vem!

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top