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Após atravessar a cidade em um trajeto que requeria duas conduções, Kirishima chegou à Zona Leste de Tóquio, em um típico bairro do subúrbio repleto de casas de telhado vermelho, pequenos jardins bem cuidados e dezenas de pessoas que já movimentavam o comércio local.
Entre as várias ruelas e avenidas, havia a mais famosa dali, reconhecida por abrigar balcões abandonados e alguns prédios em péssimas condições, alguns alugados para atividades consideradas suspeitas ou de caráter duvidoso.
Kirishima ainda não tinha se acostumado ao lugar, quando reconheceu o pequeno prédio cuja pintura verde estava bastante desgastada. A entrada, um portão de ferro com cerca de um metro e meio de altura já bastante inferrujado, o obrigava a abaixar-se toda vez que chegava, além de deixar algumas marcas de ferrugem no terno; as gastas escadas de madeira rangiam com a pressão dos pés e, aliadas às manchas de mofo e infiltração nas paredes, dava ao lugar um aspectos lúgubre e um tanto fantasmagórico.
Mas era só abrir a porta de número 19 que o ambiente sofria uma brusca mudança: iluminado pela luz que vinha da janela que ficava em frente à entrada, o apartamento, apesar de minúsculo, era acolhedor. As paredes laterais brancas eram preenchidas por estantes com centenas de livros, pequenas estátuas e decorações que remetiam à Justiça. Três mesas com cadeiras confortáveis, duas em cada uma, foram colocadas de forma organizada de modo que houvesse um pequeno corredor até os fundos, onde localizava-se o banheiro. O ambiente cheirava a café, provavelmente vindo da máquina recém comprada, juntamente com os vasos de plantas, algo que deixava tudo mais leve e agradável.
Foi entrando, colocando a bolsa e a pasta em cima da mesa que continha uma pequena placa com os dizeres "Kirishima Eijiro", que ele chegou ao escritório onde estagiava, nove minutos antes do horário.
— Bom dia! Senti o cheiro do café lá de fora!
— Agora ele não consegue ficar um dia sem tomar isso — Tamaki falou virando-se na cadeira e se dirigindo a ele —, aliás, bom dia.
— Bom dia, garoto! Vocês continuam chegando cedo! Tome, pegue essa caneca e beba um pouco — seu chefe disse ao vê-lo chegar.
Toyomitsu Taishirō era um homem alto, de aparência simpática e bem jovial, beirando a casa dos trinta. Ele foi um dos únicos a acolher Kirishima para um estágio, mesmo não tendo condições para tal e sabendo da pouco experiência do rapaz.
Passando boa parte da carreira advogando em um grande empresa do ramo petrolífico, conseguiu obter prestígio e ótima condição financeira, a custo de ver seus ideais ficarem cada vez mais de lado, posto que havia se especializado em Direito Ambiental.
Quando a situação ficou insustentável na empresa na qual trabalhava — pois além da pressão absurda por trás das autoridades ele era obrigado a assinar licitações ambientais clandestinas mesmo sabendo dos riscos e danos tanto para o meio ambiente como para a população local — pediu demissão e, com o seguro que recebeu, investiu em um escritório destinado à sua área de especialização.
Um ano depois de correr com a papelada, viu que não era nada fácil se estabelecer sozinho como advogado e que o custo era muito alto. Com o recurso restante comprou o pequeno apartamento em um bairro pouco conhecido na cidade e, aos poucos foi mobiliando, reformando.
A quantia de dinheiro que saía era muito maior do que a que entrava, pois não era muito procurado no começo, tendo entrado em dívida com alguns bancos. Somente após dois anos ali, mais casos começaram a surgir e ele teve a necessidade de contratar mais um ajudante.
Tamaki Amajiki foi o único a demonstrar interesse pela vaga. Recém formado, tímido e se mostrando bastante inseguro na primeira entrevista, Toyomitsu apostou no rapaz e não se arrependeu quando, um ano depois, o jovem se mostrou extremamente competente nos casos, embora a insegurança de Tamaki o atrapalhasse em certas audiências.
Com muito trabalho, conseguiram deixar o escritório com ar profissional e se estabelecer no mercado, por menor que fosse. Não esperava receber um estagiário, mas vendo a determinação que o jovem de cabelos vermelhos esbanjava quando bateu em sua porta quase implorando por uma vaga de estágio, foi incapaz de negar-lhe uma oportunidade.
Quatro dias depois, um novo conjunto de mesa e cadeiras chegava ao apartamento. O espaço ficou ainda mais apertado, mas Toyomitsu estava muito satisfeito com a equipe, pois todos os três estavam empenhados em defender os diversos segmentos do Direito Ambiental.
E seis meses depois ali estavam eles, iniciando mais um dia de trabalho. No geral, os casos se resumiam a brigas de vizinhos por terras, moradores inconformados com a decisão da prefeitura em cortar algumas árvores e pequenas causas trazidas por microempresas que precisavam de um alvará para instalação.
Kirishima não poderia ser mais grato a Toyomitsu pois, estando no último ano da faculdade e tendo procurado por mais de dois anos um estágio, estava desesperado. Já estava prestes a desistir da procura ou até mesmo disposto a mudar a cor do cabelo — já que, segundo sua mãe, a cor carmesim não era profissional e talvez esse fosse um dos motivos das recusas — quando o animado homem ofereceu a vaga. Foi um dos dias mais felizes da sua vida.
Também tinha Tamaki, que fora seu veterano quando ingressou no curso de Direito. Sempre o admirou muito por seus esforços e destaques no curso, sendo um dos três alunos recém-formados mais famosos da instituição. Ele sempre estava disposto a ajudá-lo e era um ótimo profissional.
Após receberem instruções do mais velho, Kirishima tirou o paletó, colocando-o na cadeira, abriu seu notebook e começou a redigir um relatório do último caso que tiveram, uma senhora de noventa e três anos que resistia bravamente em não ceder sua propriedade a uma indústria de mineração, que desejava o manancial que se localizava dentro dos limites do território dela.
Levou um longo tempo até procurar todos as bases bibliográficas que fomentavam a defesa, organizar os documentos, analisar os impactos que a mineração levaria para o local entre outras questões. Acabou almoçando com os outros ali no apartamento mesmo, aproveitando o combo de fast-food comprado por Toyomitsu.
Já estava perto das cinco das tarde, fim do expediente, quando Gum, apelido de Toyomitsu, desligou o telefone, já se levantando.
— Reviravolta no caso, garotos! — disse com certa urgência na voz pegando o paletó e reunindo alguns papéis. — A mineradora decidiu pegar pesado e estão na casa da senhora Shuzenji, tentando persuadí-la com a ameaças. Foi ela quem ligou, falei que já estávamos a caminho.
Nenhum dos mais jovens se importavam em fazer hora-extra, mesmo sem pagamento. Pelo contrário, gostavam quando as coisas estavam agitadas, Kirishima mais que Tamaki, na maioria das vezes. Pegaram todas suas coisas, os paletós, e deixaram o escritório em direção à zona rural de Tóquio no carro de Gum.
Quarenta minutos depois, o carro branco já estava sujo pelo barro instalado na estrada de terra que levava à grande propriedade com uma casa de madeira no centro, Toyomitsu estacionando ao lado de dois carros pretos de luxo. Não era necessário estar lá antes para saber que o clima não estava bom: pequena e de cabelos grisalhos, Chiyo Shuzenji falava altiva, segurando a bengala nas mãos ameaçando os quatro homens que tentavam acalmá-la.
— Ah, ali estão eles! Eles chegaram! Botem esses patifes para fora da minha casa! — ela falou vendo os três se aproximando.
— Boa tarde, Sra. Shuzenji! Pode me contar o que está havendo aqui? — Toyomitsu falou simpático passando um braço, amigavelmente, ao redor do ombros da pequena mulher, muito mais baixa que ele.
Se havia uma, das muitas coisas, que os mais jovens admiravam no chefe, era sua capacidade de acalmar a situação para, assim, resolvê-la.
— Esses cretinos vieram me oferecer dinheiro! Dinheiro! Como se um monte de papéis pudessem comprar esse lugar que eu e meu falecido trabalhamos tanto para cuidar! — falava indignada.
— De jeito nenhum que poderia! Mas nós podemos resolver o caso, que tal? Kirishima! — chamou o rapaz que correu até eles. — Já viu a nova plantação da Sra. Shuzenji?
— Oh! Claro que não! O Tomatinho não estava aqui da última vez que vocês vieram! — ela disse mostrando um sorriso enrugado. — Vamos, garoto, eu te mostro.
Antes mesmo que pudesse dizer alguma coisa, Kirishima foi puxado pela mão, sendo levado para a outra parte da propriedade. "Tomatinho" era o apelido que tinha ganhado dela pela cor do cabelo e pela forma como ficava vermelho quando ela apertava suas bochechas ou elogiava seu corpo. E ele gostava, pois a Sra. Shuzenji era simpática e dócil, não deixando porém de pegar em sua orelha e na de Tamaki quando pisavam sem querer em algum pé de alface.
— Esses homens depravados pensam que eu sou boba! Mas eu não sou não! Eles só vão pegar minha nascente por cima do meu cadáver! — Kirishima se compadecia dela e ao mesmo tempo ficava receoso, pois sabia que grandes corporações estavam dispostas a tudo para ter o que queriam.
Não demorou para que a simpática senhora esquecesse por completo dos problemas e se concentrasse em ensinar a Kirishima algumas técnicas do Bonsai, depois de ter mostrado as novas hortaliças, juntado algumas lenhas para o fogão e forcá-lo a comer um pouco de sopa, que o ruivo amava.
Do outro lado, as coisas estavam tensas, com Toyomitsu explicando que eles poderiam alegar extorsão contra a dona da propriedade, processo no qual recebe-se dinheiro ou outro bem material sob coerção física ou psicológica. Eles não abririam mão tão facilmente da nascente, mas preferiram evitar mais um processo.
O sol já estava a ponto de pôr quando o filhote siamês de Sra. Shuzenji resolveu ficar preso entre os troncos da jabuticabeira.
— Meow, meow, gatinho! Meow... Psi psi psi — ela tentava interagir em vão com o gato se mostrava medroso.
— Acho que ele não vai descer, Sra. Shuzenji... Ele está com medo.
— Ele não pode ficar lá! Já está escurecendo! E é um pobre filhotinho... — lamentava.
— Hã... Eu, eu acho que consigo pegá-lo — Kirishima sugeriu sem muita certeza.
— Isso, Tomatinho! Poderia pegá-lo, por favor? O pobre coitado está morrendo de medo!
— Ah, claro! — respondeu inseguro, observando como faria aquilo.
Após rodear a árvore, encontrou um bom caminho para subir. Tirou o paletó que já estava sujo de terra e puxou as mangas da camisa.
— Está forte, Tomatinho! — a senhora disse com um sorriso sapeca, fazendo Kirishima corar mais uma vez.
Meio sem jeito, pois evitava tirar as jabuticabas dos troncos, foi se esgueirando pela folhagem até alcançar o gato, que estava a uma altura consideravelmente alta. Muito arisco por estar com medo, o felino não parava de tentar arranhá-lo, conseguindo arrancar algumas lascas de pelo do ruivo.
— Calma, calma... Eu só quero tirar você daqui — ele falava tentando acalmá-lo — psi psi, vem comigo... Isso... Ai! — assim que conseguiu passar seu braço entorno do gato, este passou suas presas em seu rosto, deixando dois arranhões em cima da sobrancelha. Mesmo assim não o largou, levando para baixo e acariciando-o quando voltaram ao chão.
— Oh, aí está você Riot! Muito obrigada, Tomatinho! — alternava seus carinhos entre o gato e Kirishima, que tinha que se abaixar para recebê-los.
— Não foi nada! — respondeu sorrindo e tentando tirar algumas folhas do cabelo.
— Você está vermelho de novo, Tomatinho. Sabe de uma coisa? Vou fazer uma homenagem a você. Vou chamar esse gatinho de Red Riot, porque você é vermelho! — ela disse animada.
— Ah, obrigado, Sra. Shuzenji — ele estava realmente feliz em poder ajudar.
— O que houve com você? — Tamaki se aproximou ainda guardando alguns papéis na pasta.
— Digamos que as visitas à Sra. Shuzenji são bem... Agitadas — repsondeu sorrindo, pegando seu paletó.
— Bem, eles vão te deixar em casa agora, Sra. Shuzenji. Agora só os encontraremos no tribunal — Toyomitsu explicou após dar uma larga risada da situação de Kirishima.
Depois de dar mais algumas explicações e beberem chá juntos, os três partiram de volta à cidade. Como tinham levado todas suas coisas, Gum preferiu deixá-los em casa, pois já passavam das sete, mas Kirishima pediu que o deixasse na Universidade, pois ainda tinha que encontrar os amigos.
— Nos vemos amanhã então! — Gum se despediu ainda dentro do carro depois de deixar Tamaki em casa — Ah, Kirishima! — chamou-o antes de partir — Tamaki e eu ouvimos seu novo apelido, "Tomatinho"!
O ruivo apenas sorriu e se despediu. Com o paletó jogado em um ombro, a bolsa no outro, as mangas dobradas e o cabelo bagunçado, se dirigiu à biblioteca a fim de encontrar os amigos do grupo de estudos.
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