2. Um espelho sobre a Terra

 🌻 Capítulo 2 🌻

A menina teve um sonho estranho. Na verdade, Ana não tinha certeza se fora realmente um sonho, pois ela havia visto o Sol nascer pela janela e Hermes — seu gato rajado e de olhos dourados — sentado sobre seu peito, miando sem parar. O felino cobriu seus olhos com seus pelos amarelados, aproximando-se de seu rosto e produzindo sons insistentes. Ela tinha certeza de que havia fechado a porta do quarto, então como aquele gato entrou ali? Ainda sonolenta, Ana olhou para a porta, que estava entreaberta. Não deveria ser nem seis da manhã. Hermes pulou para o chão, olhando para a menina como se a convidasse para um passeio, mas ela o conhecia desde filhote: ele queria perambular pelo jardim e acordaria a casa inteira caso seu desejo não fosse atendido.

Ana tirou o pijama e colocou seu velho vestido branco, seu favorito, pois aprendera a trocar de roupa logo quando acordava. Saindo do quarto, seguiu Hermes até a porta da sala — que ainda estava enfeitada com balões amarelos — e a abriu para o animal passar. Mas, ao contrário do que ela havia imaginado, o gato parou próximo aos seus pés e olhou para ela. Começou a miar novamente, rodeando as pernas dela, e a mensagem ficou clara para a menina: o gato queria que o seguisse.

— O que você quer? — ela perguntou, as sobrancelhas franzidas, ansiando voltar para a cama logo. Naquele momento ela tinha certeza que não era um sonho, pois não se lembrava se era capaz de sentir sono no mundo onírico.

O gato respondeu empinando o rabo e saiu correndo em direção ao jardim, saltando três degraus e pousando habilidosamente na grama. Ana poderia ter deixado-o ir para onde quisesse e voltado para o quarto — sem antes fisgar algum docinho que havia sobrado da festa. No entanto, algo a fez seguir Hermes. O comportamento do animal estava um tanto estranho. Talvez houvesse algo de errado; quem sabe um gato de rua ferido se escondendo nas árvores. Hermes era um ser inteligente e já havia achado muitos animais que precisavam de ajuda humana (menos os passarinhos livres que ela costumava alimentar. O gato sempre tinha um olhar assassino quando os observava, o que deixava Ana brava com ele pois não entendia muito bem a natureza daqueles bichanos).

Ana o seguiu até que Hermes desaparecesse por entre as plantas, deixando-a parada no meio do jardim. Ela aproveitou para conferir a comida dos pássaros, que ficava no alto, para que o gato não impedisse o banquete deles. A menina então pegou um banquinho de madeira para alcançar o comedouro, satisfeita por não precisar mais de adultos para fazer aquilo. Eles diziam que era perigoso ficar subindo em coisas altas, mas Ana tinha um bom equilíbrio e adorava subir em árvores. A menina colocou um pouco mais de comida, pegando algumas sementes de girassóis para acrescentar em sua coleção — ela pretendia plantar girassóis quando completasse cem sementes. Ana poderia muito bem pedir a alguém que comprasse um pacote com muitas e muitas sementes como aquelas, mas ela gostava de colecionar e escolher cada uma delas: tinham que ser grandes e bonitas, pois ela queria que os girassóis fossem grandes e bonitos.

Aproveitando que estava ali, Ana foi em sua casa particular (que chamavam de casinha de boneca); uma construção pequena, mas muito bonita, com paredes verde-musgo e janelas e porta brancas. Lá dentro, havia uma mesinha com cadeiras, prateleiras nas paredes e um fogão de brinquedo que Ana fingia fazer feitiços. Nas prateleiras havia potes com folhas, pedras e outras coisas que achava pelo jardim. Tinha muito orgulho de sua coleção peculiar, mas seu pote favorito era aquele que continha suas sementes de girassóis. Ana esticou o braço e pegou o pote, colocando as novas sementes lá dentro. Depois, virou-as um pouco nas mãos para observá-las melhor, e começou a contar quantas tinham.

Sua contagem foi interrompida por Hermes, que passou correndo por ela e quase derrubando as sementes. Ana correu em direção ao animal, pois tinha certeza que havia visto algo na boca dele — quem sabe um de seus brinquedos que ficava ali, ou até mesmo um camundongo — e se desesperou quando viu o gato passando por debaixo da cerca que separava a reserva e o terreno de sua casa. Hermes não costumava fugir — pelo menos, ela achava que não — pois morria de medo de outros bichos ou locais desconhecidos. Preocupada, a menina foi atrás do animal, parando apenas quando percebeu a aproximação de uma névoa esbranquiçada e fria.

Aquilo acontecia muito quando estava frio, pois morava em um local alto — mas não daquela forma, tão de repente e tão intensamente. Ana não conseguia enxergar nada à sua frente, o que a deixou com medo. Deu meia volta, tentando voltar à casinha, mas seu corpo se chocou contra algo muito sólido e alto. Uma árvore. A menina apalpou o tronco, achando tudo aquilo muito estranho. Não havia árvores como aquela na parte de trás da casa; não naquela direção que tomara e não daquele tamanho. Os troncos eram mais finos e não tinham musgos e, quando a neblina começou a baixar, Ana pôde ver as pequenas plantinhas cobrindo o grosso tronco da árvore — que ela nunca tinha visto antes, pois sabia de cor como eram todas as árvores do jardim.

Ana teve ainda mais medo quando toda a neblina se dissipou e percebeu que estava no meio de um bosque. Um estreito riacho cortava a terra, desviando de pedras e troncos (com muitos musgos). Pequenos passarinhos voavam acima dela: alguns amarelos, outros azuis, alguns coloridos. Apesar do temor inicial, ela achou tudo muito bonito; e foi naquele instante que teve certeza de que estava sonhando. Aquela certeza diminuiu seu medo pois, se estava sonhando, seu corpo estava na segurança de seu quarto. Para a sua surpresa, Hermes surgiu por trás de uma das árvores, encarando-a como se estivesse convidando a menina para uma importante exploração.

Ela não teve outra opção a não ser segui-lo. Ana subiu nas pedras para atravessar o riacho, tomando cuidado para não escorregar. Tudo era muito úmido, mas ela não sentia frio. Maravilhada com tudo o que via ao seu redor, ela logo se esqueceu que estava em um lugar desconhecido e supostamente perigoso, pois estava sozinha e animais selvagens poderiam aparecer. Mas os únicos animais que ela viu foram os pássaros e Hermes, que desaparecia e reaparecia por entre plantas, pedras e troncos caídos. O gato então parou frente a uma ampla cascata de plantas, encarando a menina e soltando um miado alto. Ana apressou os passos e Hermes desapareceu por entre as folhas, que caíam sobre a cabeça de Ana como uma cortina viva.

A menina andou com dificuldade, enxergando apenas o verde — os troncos cheios de musgos, plantas e folhas — até que sentiu seus pés umedecerem como se tivesse pisado em uma poça d'água. Com ambas as mãos, ela afastou a cortina de folhas e se deparou com o lugar mais exótico que já havia visto em sua breve vida. Diante dela, havia um imenso lago que parecia não ter fim. Acima dele, um céu com variados tons de violeta habitava milhões de estrelas. Ana nunca havia visto tantas antes. O lago refletia os astros, e a menina podia facilmente confundir o céu com o lago se olhasse por tempo demais. Era como se fosse um grande espelho sobre a Terra.

Fascinada, ela pisou na água e andou por alguns metros, percebendo que se tratava mais de uma enorme poça do que um lago, pois não sentiu nenhuma profundidade até ali. Naquela hora, ela havia se esquecido completamente de Hermes — e de que estava em um lugar que parecia pertencer a outro mundo — de tão encantada que estava. Algo a fez querer andar por aquelas águas, pois, para ela, era como se estivesse andando no próprio céu. Baixando o corpo e imergindo as mãos, ela tocou o reflexo de uma das estrelas. Quando a água parou de tremular, Ana viu o seu próprio rosto: Os olhos grandes e castanhos, os belos cachos emoldurando sua face e sua pele escura; contrastando com o velho vestido branco. A menina nunca tinha visto seu reflexo de forma tão profunda, e ela tinha certeza de que nenhum espelho (por mais limpo que fosse) conseguiria refletir os rostos humanos daquela forma.

Ana poderia ficar ali por muitas horas, olhando as estrelas acima e sob seus pés, mas a voz de sua mãe a fez lembrar de que estava fora de casa — e que não eram nem seis da manhã. Porém, como poderia haver estrelas no céu?

— Ana Cecília! — a voz da mãe soou ainda mais alta, como se estivesse a poucos metros de distância. Mas aquilo era impossível, pois não havia ninguém ao redor. Ainda sim, a menina deu um salto para trás e saiu correndo em direção à cortina de folhas, fazendo o caminho de volta sem olhar para trás. Seu coração batia fortemente. Ana não gostava de deixar a mãe brava, e quando ela chamava a filha com seus dois nomes só significava uma coisa: Ela estava brava.

A criança não sabia explicar o que aconteceu em seguida: logo quando chegou próxima à árvore que havia se chocado, a densa e fria neblina surgiu novamente. Entretanto, dessa vez, Ana não parou. Continuou correndo até que conseguiu enxergar as coisas ao redor de novo. O nevoeiro desapareceu, e de repente ela estava em seu jardim mais uma vez. O bosque, que havia suposto que se tratava da reserva no fundo do quintal, havia sumido também. Era impossível ser o mesmo lugar, pois as árvores e as plantas eram muito diferentes; além de haver uma enorme cerca separando ambos os terrenos — o que a impossibilitava de passar para o outro lado também.

Ana olhou para a varanda da casa e viu a mãe de braços cruzados, esperando por ela para o café-da-manhã. Aos pés dela, a menina viu uma bola de pelos alaranjada, também aguardando a sua volta (e seu sachê matinal). Ana correu até eles, mas sem antes prometer a si mesma que voltaria a ver o lago que refletia o céu.

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