12. O Guardião do Coração
🌻 Capítulo 12 🌻
Quando Ana estava a apenas alguns metros do desfiladeiro, pequenos flocos de neve começaram a cair do céu. A menina ficou fascinada — nunca havia visto neve antes, a não ser em filmes. Antes de desaparecer, a corvo soltou o último corvejar, como se dissesse: Agora é com você! No entanto, durante todo o trajeto por entre a montanha, a menina pôde sentir pequenos olhos escuros observando-a; ocultos pelas grandes rochas. Sentiu que nada de ruim poderia lhe acontecer, pois os corvos estavam ali para protegê-la.
Começou a fazer bastante frio. Os flocos começaram a cobrir o caminho rochoso que a levaria para algum lugar desconhecido. Mas não havia dúvidas de que aquele era o caminho, pois era o único visível. Ela parou várias vezes para pegar alguns flocos, que derretiam em suas mãos. Ana gostava de imaginar que a neve vinha das estrelas, por mais que ela soubesse que era apenas chuva-congelada.
A montanha ficava cada vez mais alta, o topo desaparecendo pelo nevoeiro cada vez mais denso. Entretanto, Ana continuou caminhando, e uma estrutura rochosa apareceu em seu campo de visão. Parecia ser uma pequena caverna no meio do desfiladeiro, unindo ambos os lados da grande montanha. A menina apressou os passos para ver melhor. De fato, tratava-se de uma caverna, mas não era tão pequena quanto ela havia imaginado a princípio. Como uma pirâmide, tinha o topo pontiagudo, cuja neve já cobria a metade. Ana pôde escutar vozes vindas lá de dentro, e por um momento achou que fossem mais fantasmas como aqueles que a perturbaram no bosque. No entanto, ao se aproximar, viu que não se tratava de sombras, mas sim de humanos: Um homem e uma mulher tagarelava sem parar, acusando um ao outro sobre algo que a menina não compreendia.
Ana esticou a cabeça para dentro da caverna, o corpo apoiado na parede gélida. Ela estranhou a presença de humanos ali, pois, desde que tinha encontrado a Ilha dos Pássaros, não vira nenhum outro humano além dela.
A menina ficou um pouco preocupada.
— ...E você é um bêbado! — a mulher, com o dedo em riste, gritou para o homem.
— E você é uma perversa! — o homem fez um bico. — A culpa é sua.
— Minha?! — a mulher perguntou, indignada. — Eu não o matei! Você se matou, imbecil.
— Eu jamais faria isso! — o homem gritou ainda mais. — Você é que se matou!
Ana estreitou os olhos para vê-los melhor. Ainda discutindo entre si, começaram a adentrar cada vez mais a caverna; como se algo os puxasse para o seu interior. Pareciam inconscientes de seus passos, de suas falas e gestos impulsivos. Cautelosa, a menina os seguiu. Tochas iluminavam o único corredor da caverna, que ficava cada vez mais profunda.
Enquanto isso, os dois continuaram brigando, acusando um ao outro sobre coisas que Ana ainda não entendia muito bem. Porém, a discussão sempre chegava a um único ponto, que se repetia:
— A culpa é sua!
— Seu bêbado!
— Sua perversa!
— Suicida!
Ana quase tapou os ouvidos e mandou-os parar com aquilo, mas algo lhe dizia que nada adiantaria. Eles continuaram brigando até o corredor se expandir em um salão, ainda mais iluminado. Mais tochas pendiam das paredes e uma chama crepitava sobre uma pedra, ao centro, como uma pequena fogueira. Porém, o que mais chamou a atenção de Ana foram os pequenos vasos ricamente adornados, dispostos nos vãos irregulares das paredes da caverna.
A menina olhou para os humanos, que observavam tudo muito assustados.
— Onde estamos?! — a mulher perguntou.
— É o inferno! Eu sabia, a culpa é sua! — o homem se virou para ela.
— Cala a boca!
— Cala a boca voc...
Ana deu um pulo de susto quando um latido alto e grave ressoou pelo lugar. Segundos depois, o silêncio se instalou — ouvia-se apenas o leve crepitar da chama do centro. O homem e a mulher estavam tão assustados quanto ela.
— Agora sim — ouviu-se uma voz vinda dos fundos. Oculto pelas sombras, um cão com pelos pretos estava deitado. Ana viu apenas metade de seu rosto, mas, quando o cão se levantou e foi para onde a luz o iluminava, ela pôde vê-lo melhor. Era um cão enorme, totalmente preto, com orelhas pontudas e olhos pequenos.
— U-um cão do i-nferno! — o homem estava trêmulo, os olhos fixos no cachorro. O animal se sentou, observando os dois humanos com atenção.
— Não sou um cão do inferno, meu caro amigo. — ele disse. — Sou apenas um guardião. E nada adiantará este debate fútil, pois suas jornadas chegaram ao fim.
— Eu sabia! Sabia que estávamos mortos... — a mulher disse, fazendo uma careta engraçada. Olhou para o cachorro, os olhos arregalados: — Estamos mortos?
O cachorro apenas olhou para ela, deixando-a tirar as próprias conclusões.
— Eu sabia! — ela exclamou, prestes a chorar.
— O quê?! — o homem apalpou o próprio corpo. — Como posso estar morto?
— Eu disse que havia algo além da morte! E você nos levou para o inferno.
— Eu não estou morto! — o homem gritou, indignado. Olhou para os lados, confuso. — Isso tudo aqui é uma ilusão! Me leve de volta para a minha casa, seu vira-lata imundo.
O cão se aproximou um pouco mais, parando ao lado da chama. Não parecia bravo pelas palavras cruéis.
— Ilusão? — apesar da postura séria, o animal permanecia calmo. — Onde seria ilusório? Este lugar, ou a sua mansão? Meu amigo, você fez sua escolha. Não me culpe pelas suas amarguras. Como eu disse, sou apenas um guardião.
— Pare de me chamar de amigo! — ele gritou. A mulher choramingava, murmurando consigo mesma. — Eu não sou seu amigo. E como isso não seria uma ilusão, se estou falando com um vira-lata?
— Se existe vida após a morte, eu quero voltar! — a mulher estava muito brava, apesar das lágrimas.
Ignorando o homem, o cachorro olhou para a moça.
— Poderá voltar, um dia. Mas não agora — disse o animal. — Porém, como poderá existir vida após a morte para vocês, se não se importaram em viver?
— Você fala demais — o homem parecia querer avançar no cachorro. — Você não sabe de nada! Quem é você para dizer que não vivi bem? Eu sou um empresário de respeito! Eu vivo muito bem.
O cão apenas balançou as orelhas, olhando para outro corredor da caverna — mais estreito, um pouco menos iluminado; mas que Ana não havia notado antes.
— Fizeram suas escolhas — o cachorro disse. — Perambularão pela escuridão até retornarem, pois seus corações estão tão pesados quanto as rochas.
— Isso é injusto! — o homem batia os pés no chão, enfurecido. Apesar da indignação, ambos se dirigiram para o corredor; como se mais uma vez fossem atraídos para lá. Começaram a discutir novamente entre si, culpando um ao outro pelos seus destinos, até que suas vozes desapareceram escuridão adentro.
Quando tudo ficou em silêncio mais uma vez, Ana surgiu das sombras. O cão, ainda parado ao lado das chamas, olhava para ela.
— Estava aguardando a sua chegada — o animal disse, seus pequenos olhos castanhos ficando um pouco mais claros. Um som alto e estridente soou do interior da caverna, e Ana olhou para os lados um pouco assustada. — Não se preocupe. É apenas nosso companheiro fazendo o seu trabalho de sempre. Aproxime-se.
A menina se aproximou. O cão era realmente muito bonito.
— Oi — ela cumprimentou-o e, sem conter a curiosidade, apontou para o corredor que os humanos haviam passado. — Para onde eles foram?
— Para onde seus corações determinaram. — o cão respondeu. — Todos me acham injusto, chamando-me com nomes ofensivos, mas não compreendem que eu não determino nada.
— Ah. Eles pareciam nervosos. — ela observou. — Eles morreram mesmo?
— Arrisco dizer que já estavam mortos há tempos — ele balançou a cabeça, decepcionado. — Mas você não veio aqui para escutar seus lamentos.
— Não. Eu estou procurando o coração do prisioneiro.
O cão pareceu sorrir. Virou-se para as paredes cheias de potes de cerâmica e cheirou o ar, erguendo as narinas. Segundos depois, ele apontou o focinho para um deles. Então, era ali que estava o coração? Ana ficou feliz de não ter que enfrentar dragões — ou o que quer que seja — como nos contos de fadas. A menina se aproximou do pote, que estava acima de sua cabeça, mas bastava que Ana esticasse os braços para pegá-lo.
Antes que Ana pudesse tocá-lo, o cão advertiu:
— Se conseguir carregar, pode levá-lo a quem deseja.
A menina parou, olhando para o pote com desenhos estranhos. Em seguida, estendeu os braços e segurou-o sem muita dificuldade. Ainda assim, não estava tão leve quanto ela achava. Ela imaginou que um coração humano não podia pesar muito.
— Está só um pouco pesado. Mas acho que consigo levar — ela falou, colocando o pote aos seus pés. Ela não tinha muita certeza do que havia acabado de afirmar.
— Não sei como conseguiu tirá-lo lá de cima — o cachorro olhou para o pote. — Hum... Temos uma alternativa.
— Qual? — ela perguntou, pensando em como poderia carregá-lo até o destino final.
— Teremos que queimá-lo.
Ana arqueou as sobrancelhas, observando as chamas. A menina não achava que, naquelas circunstâncias, o cão estava sugerindo fazer um churrasco. O fogo flamejante e calmo sobre a pedra não parecia nada com uma churrasqueira.
— Hã... — relutante, ela olhou para o pote próximo aos seus pés. Abaixou-se um pouco e tirou a tampa, e viu um coração de verdade pulsando serenamente. Ela fechou o recipiente rapidamente, olhando espantada para o cachorro.
— O que esperava, garota? — perguntou o animal, achando engraçado a reação da criança. — Um coração de pelúcia?
— Oh... Parece um coração de galinha gigante — ela observou. — Desculpe, é que eu nunca vi um coração humano antes.
— Coração de galinha? — perguntou. — Nunca vi galinhas por aqui.
— É que os adultos gostam de comer coração de galinha. Eu não gosto muito... — ela coçou a cabeça, alternando o olhar para o cachorro, o pote e as chamas. — Na verdade, acho essa ilha muito estranha!
— Por quê? — indagou o cão.
— Todos os animais falam e nenhum está preso em uma jaula, como aquele homem. — ela refletiu. — Você, um cachorro, me devolveu um coração ao invés de comê-lo. Aposto que o homem comeria o coração de um cachorro sem pensar muito.
— Eu? Comer um coração humano? — ele farejou o ar mais uma vez. — Eu sou carnívoro, mas nenhum cheiro aqui me agrada. Apenas a criatura que fica no interior desta caverna se alimenta de carnes podres, como um abutre.
Ana fez uma careta, mas não sentiu nenhum cheiro ruim. Talvez o seu olfato não fosse tão bom quanto o do cachorro — e com certeza não era. Sem hesitar, ela abriu o pote novamente e pegou o coração. Não era tão nojento quanto ela havia imaginado. Então, ela pegou o órgão e colocou-o gentilmente ao lado das chamas, que envolveu-o quase que de imediato; o fogo subindo em direção ao teto da caverna.
A menina se afastou um pouco, torcendo para que o coração não fosse transformado em carvão. Por entre as labaredas, ela viu pequenos seres escamosos, como lagartos, surgirem conforme o fogo subia. Ana só conseguiu vê-los com mais clareza pois estava com toda a sua atenção voltada àquele elemento, que aquecia seu rosto e todo o salão da fria caverna.
As chamas se acalmaram subitamente, enxotando o coração dali. Antes que caísse no chão, Ana rapidamente segurou-o com ambas as mãos.
— Não está mais tão pesado — ela percebeu.
— Ótimo. Estava torcendo para isso. — disse o cão. — Sempre há esperança.
Ana devolveu o coração ao pote, que agora seria possível carregar. Finalmente ela havia conseguido! Não fora tão difícil quanto a menina havia imaginado. Com exceção dos fantasmas que a assustaram muito, fora bastante divertido. Com o pote em mãos, ela pensou se deveria ou não refazer todo o caminho de volta, mas o cão percebeu sua dúvida.
— Não é possível voltar atrás. — ele olhou para a parede à direita e soltou um latido grave. Abriu-se, então, outro corredor iluminado por tochas. O cão foi até o corredor e olhou para Ana. — Vamos, a guiarei até o outro lado. Chegaremos ao amanhecer. E segure bem isso!
Ana apertou o pote contra o peito, assentindo, e seguiu o guardião do coração corredor adentro.
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