11. Fantasmas e corvos
🌻 Capítulo 11 🌻
Do outro lado havia muita escuridão, mas Ana pôde ver as árvores sem folhas e seus galhos retorcidos bloqueando o caminho. Desviando-se deles o máximo que conseguia — seu corpo ágil e pequeno fora-lhe bastante útil — ela atravessou o primeiro emaranhado de árvores. Folhas alaranjadas forravam o chão; e todas as árvores ao redor pareciam mortas, mas Ana sabia que era apenas uma questão de tempo para que elas ganhassem novas folhagens. O céu acima delas estava escuro e sem estrelas — o que era estranho, pois a menina tinha certeza que a minutos atrás havia uma Lua cheia e muitas estrelas no céu.
Ela parou, percebendo o silêncio quase que absoluto do lugar. Não havia vento, não havia folhas caindo e nenhum animal noturno entoava seus sons. Ana nunca havia presenciado uma noite tão silenciosa. A única coisa que conseguia escutar, mesmo ali parada, era o som de sua respiração e as batidas do seu coração. Ela seguiu em frente, pisando nas folhas e desviando-se de galhos quebrados. Mas, a cada passo, tudo ficava ainda mais escuro. As nuvens no céu passava de cinza-escuro para o breu total. Ana não sabia como ainda estava conseguindo enxergar as coisas ao redor — o que não era muito, apenas árvores esqueléticas — mas depois ficou surpresa quando percebeu que o seu próprio corpo brilhava. Era um brilho tênue, quase imperceptível; mas que ficava cada vez mais evidente conforme a escuridão a envolvia. Entretanto, aquela luz não iluminava seu caminho o bastante, e pela primeira sentiu-se verdadeiramente perdida. Para onde ela deveria ir? Ela perguntou ao seu coração, mas ele nada dizia. Olhou ao redor, procurando pelas flores do campo, mas não havia nada além de galhos retorcidos e folhas mortas. Nenhuma das árvores falava. Sua estrela favorita estava oculta pelas densas nuvens escuras, e nenhum animal estava por ali.
E então, ela sentiu algo passando acima de sua cabeça, quase derrubando-a violentamente no chão. A menina sentiu todo o seu corpo gelar, como se uma rajada de vento muito fria houvesse passado por ali. Ana queria mesmo que fosse apenas o vento, mas os ventos não falavam — e, caso falassem, não teriam aquelas vozes tão horripilantes.
— Uma criancinha! — disse uma voz que a menina não gostou nenhum pouco. Não era suave como a voz da cisne, gentil como a do leão ou alegre como a do elefante. Ana sentiu seu corpo tremer e olhou para os lados, tentando identificar de onde vinha aquele som.
Algo passou novamente sobre a cabeça de Ana, e ela se abaixou de imediato. Correu até a árvore mais próxima, apalpando o tronco em busca de apoio.
— Está com medo, mocinha? — outra voz, mais grave, perguntou acima dos galhos. Ana olhou para cima, trêmula, e pela primeira vez viu o rosto. Era um rosto humano, mas muito feio. Seu corpo era tomado por sombras, e seus olhos eram totalmente escuros e sem vida. Para ela, era como um fantasma.
Ana não respondeu. Correu rapidamente para o outro lado, escutando as risadas malígnas. Seu coração começou a bater muito rápido; as pernas pesadas quase não obedecendo aos seus comandos. Seus olhos pareciam estar fechados de tão escuro que estava ao redor. As sombras gélidas passavam acima e ao lado dela repetidamente, mas a menina continuou insistindo que suas pernas prosseguissem. Porém, quanto mais tentava fugir, mais gelado e barulhento o lugar ficava. A ausência de vento deu lugar ao movimento das sombras, e o silêncio fora tomado pelas suas vozes estridentes.
— São onze da noite! São onze da noite! — uma das vozes gritou — Serão para sempre onze da noite!
— Cale a boca! Pegue a criança! — gritou a outra.
— Não! Ela está perturbando meus olhos — disse a mesma voz chorosa.
— Seu covarde! — respondeu a outra sombra, investindo contra Ana e quase derrubando-a novamente. Ela continuou correndo, as pernas bambas e a boca seca. Queria gritar por ajuda, mas nada saía. A menina não gostava do frio que aqueles fantasmas lhe causavam, pois a sensação que tinha era que sua pele queimava e toda sua energia se esvaía.
— Volte, volte! — um fantasma dizia. — Volte para o ouro, menina estúpida!
Ana não conseguia responder; por mais que se esforçasse. Sentiu-se frustrada consigo mesma. Achava ser uma criança corajosa até se deparar com aqueles fantasmas, que tornavam-se ainda mais assustadores naquela escuridão. Ela sentiu falta das estrelas, das noites acolhedoras — mesmo que frias — e sem fantasmas. As criaturas falavam sem parar, deixando-a desorientada. Não sabia se estava andando em círculos ou se seguia em frente. Por um instante, Ana desejou voltar para o elefante, para todo aquele ouro — tal como um dos fantasmas dizia — pois ali, pelo menos, não era tão assustador. Mas algo a fez continuar, tremendo dos pés à cabeça; as vozes estridentes abafando o som de seus passos.
— Sinto cheiro de medo. Você está com medo! — disse um deles. O outro gargalhou, passando por Ana repetidas vezes. — Eu sabia que não era tão corajosa quanto falavam.
— Ela fede! — disse o fantasma com voz de choro. — E machuca meus olhos.
— Já disse, você é um covarde — respondeu o outro. Ana correu o mais rápido que seus membros inferiores permitiam. — Não adianta correr, menininha! Somos mais rápidos do que você. Poderíamos pegá-la agora mesmo se quiséssemos.
— Mas ela brilha! — reclamou o outro.
— Cala a boca!
— Não vá por aí, criança! — disse o terceiro fantasma — Volte para o ouro.
— Não! Não volte para o ouro, fique aí mesmo. — disse um outro. — Você não merece ouro.
Naquele momento, Ana tropeçou e caiu com as mãos sobre os galhos, e, mesmo exausta, rastejou sobre eles e sobre outros objetos nada macios. Escutando as vozes confusas, ela continuou se arrastando, o corpo cada vez mais trêmulo e com um nó na garganta. Ela estava com medo. Sentiu aquelas sombras se aproximarem dela cada vez mais — ela não sabia dizer exatamente quantas eram, mas ouvira quatro vozes distintas. A menina estava começando a sentir toda a sua pele arder quando um som alto e grave penetrou o bosque sombrio e afastou todas as sombras. Grandes asas negras surgiram à sua frente (Ana não sabia como conseguiu vê-las), voando em direção aos fantasmas, que gritaram em desespero. Ela conhecia o som que aquela ave emitia — croac, croac — e logo identificou o grande corvo, mesmo em meio à escuridão. Logo depois vieram outros: muitos corvos surgindo de todos os lados, em um emaranhado de asas negras que logo desapareceram bosque adentro.
— Levante-se, levante-se! Não seja covarde como estas sombras! — ela ouviu o maior deles dizer. A ave grasnava sem parar. A menina se levantou rapidamente, as pernas já mais firmes, e voltou a correr. Mas, dessa vez, ela conseguia ver mais nitidamente uma trilha à sua frente. Continuou escutando o alarido dos fantasmas e dos corvos ao longe, porém, também pôde sentir as asas do grande corvo que, mesmo não a tocando, envolviam-na de modo protetor.
Ana corria cada vez mais rápido e, quanto mais avançava — ao contrário do que havia acontecido antes — mais forte e vigorosa ela se sentia. As vozes das sombras já estavam muito distantes, e, à sua frente, um campo de relva baixa surgiu, deixando o bosque sombrio para trás. As nuvens escuras no céu se dispersaram, conduzindo-se em direção ao alto da montanha. O corvo passou por ela, indicando-lhe a direção.
A Lua cheia, reaparecendo no céu, iluminou todo o campo. Em meio àquela planície, a luz prateada revelou várias pedras cinza-claro espalhadas, formando um círculo. O corvo voou na direção delas — que eram enormes, tal como os elefantes de pedra — e a menina o seguiu, só parando de correr quando estava bem no meio do círculo. As pedras eram muito bonitas. Ela ficou observando-as, e o corvo pousou no topo de uma delas. Os outros corvos aos poucos voltavam, descansando sobre as rochas. Ana não tinha certeza, mas eram mais de vinte aves.
Cansada após correr tanto, Ana sentiu novamente as ardências em sua pele, notando vários arranhões em seus braços e pernas — e também em seu rosto, que latejava. Sangravam um pouco, mas nada que a assustasse. Ana estava acostumada com arranhões e machucados, principalmente em seus joelhos, pois brincava muito de correr e andar de bicicleta (e, secretamente, subir em árvores).
Ela olhou rapidamente para trás quando ouviu os fantasmas se aproximarem, e dessa vez a menina conseguiu vê-los melhor. Eram realmente sombras enormes, com pernas e braços humanos, mas rostos estranhos e assustadores. No entanto, agora pareciam hesitantes, e mal conseguiam ultrapassar as pedras.
— Saia! Saia! — o da frente gritou. — Você não pode ficar aí!
Ana percebeu a estratégia do fantasma e conseguiu responder:
— Não. Saia você.
Ele soltou um som estridente ao tentar ultrapassar as pedras, mas mal conseguiu se aproximar. Os outros fantasmas pareciam com medo, o que Ana achou engraçado. Após algumas tentativas vãs, o corvo mais uma vez interviu. Dessa vez, apenas ele bastou. Abrindo as asas, a ave grasnou tão alto que ecoou por todo o campo, fazendo com que as sombras fugissem de imediato.
Ana virou-se para o corvo, seu brado poderoso ainda ressoando em seus ouvidos. Ele voou até a menina, pousando em uma rocha mais baixa e próxima à Ana, ao centro. Encostou o bico nas feridas da menina, curando-as de imediato. Fez o mesmo em seu rosto, nas pernas, braços e mãos. A ardência desapareceu, e a criança sentiu novamente o vigor tomar conta de seu corpo. Sentiu-se capaz e corajosa o suficiente para correr por aquele campo, enfrentando fantasmas e monstros.
— Obrigada, senhor corvo. — ela agradeceu. — Eu quase me perdi, estava muito escuro. Fiquei com medo dos fantasmas, mas acho que um deles estava com medo de mim.
— Senhora — corrigiu a ave, encarando-a com seus olhos escuros e inteligentes. Então, era uma corvo-menina. — Temeu aquelas sombras, garotinha? Culpe aquele homem, que não consegue controlar os pensamentos insolentes!
— Sim. Eu não gostei delas — Ana falou. — Você não gosta do homem também?
— Humpf... — a corvo balançou a cabeça. — Se ele fosse um pouco mais corajoso, talvez. Sua ociosidade me é inútil. Mas você se saiu bem, não se rendendo ao que aqueles fantasmas diziam.
— Eles me assustaram — ela admitiu, observando a Lua no céu. — Mas agora não estou com medo.
— As sombras gostam de assustar pois estão sempre amedrontadas — a ave falou, levantando a cabeça em seguida. — Escute só o brandir das espadas! Você está quase lá. Mas não se distraia, menina, ou se perderá na escuridão novamente.
Ela tentou ouvir as espadas, mas nada escutou além do vento e alguns grilos.
— Não estou ouvindo as espadas. Eu não gosto muito de guerras — a menina admitiu.
— Não gostar das guerras não significa que não irá enfrentá-las. — a corvo disse. — Não vê que confronta com aquele homem, do qual todos aqui falam?
— Acho que sim. Eu enganei ele, dizendo que ele ficaria rico. Não gosto de enganar as pessoas, mas o homem-cervo disse que só assim eu iria conseguir ajudar ele — Ana sentou-se ao lado do corvo, que passava o bico nas asas. — Mas acho que eu já disse isso muitas vezes hoje. Você sabe onde está o coração?
— Eu não digo onde está o coração. Eu ajudo a enfrentar os fantasmas que a impedem de encontrá-lo. Poucos conseguem passar por eles. Não percebem que eles estão tão perdidos quanto aqueles que por ali passam... E aí, quando a batalha já está quase ganha, desistem. Não viu os ossos espalhados pelo bosque?
Ana arregalou os olhos.
— Achei que fossem só galhos! — exclamou. — Coitados.
— Quanta inocência... — a corvo disse. — A maioria desiste, entregando-se à morte. Eu tento ajudá-los, mas poucos conseguem me ouvir. Minhas asas são grandes, mas é impossível alcançar aqueles que não as buscam. — ela continuou limpando suas preciosas asas.
— Isso é triste.
— Muito triste... — ela não parecia achar nada triste. Alguns corvos começaram a gralhar, chamando a atenção de Ana. Quando ela olhou ao redor, viu que mais corvos se aproximavam; todos sobre o topo das pedras. — Ah, está na hora de ir. Ou ainda tem medo dos fantasmas?
— Não. — Ana balançou a cabeça. — Eu tenho pena deles.
— Eu também tenho pena — a corvo agitou as asas, alçando o voo.
Ana segurou o riso, sem êxito. A corvo aterrissou na relva de repente, virando-se para ela. Depois disse, muito séria:
— Qual é a graça, mocinha? Se apresse! O inverno se aproxima. Você tem muito o que caminhar ainda!
— Muita pena! — Ana apressou os passos, seguindo a ave. Os outros corvos as acompanharam com o olhar, silenciosos. — Você é engraçada, senhora corvo.
— Muito engraçadinha — a ave murmurou, voando para além das pedras e em direção à montanha.
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