Capítulo 35

     A vida é uma infinita sucessão de surpresas e tragédias e, se em algum momento você pensar que finalmente está tudo bem, ela se encarregará de lhe lançar um novo desafio. E eu fui desafiada novamente nesta madrugada, quando um maldito infeliz decidiu que seria meu marido. Tempos atrás eu teria lutado o enfrentando numa disputa de vida ou morte, se fosse necessário, para manter a minha liberdade. Mas a realidade aqui é outra pois, na situação em que me encontro, uma outra vida depende de mim e eu jurei proteger o meu bebê e é isso que farei, mesmo que tenha que me casar com Patrik Lavin. Além do mais há outras maneiras de se matar um homem e eu as enumerava cuidadosamente enquanto fechava meu vestido marfim: 1° uma dose de veneno no seu chá matinal; 2° sufocá-lo com pano embebido em clorofórmio durante o banho na banheira, o que o fará morrer afogado em alguns minutos; 3° um tiro acidental com a pistola de pólvora que está escondida no quarto de papai, e ao vê-lo arregalando os olhos com o susto e a dor, eu diria: "oh, como sou desastrada", sorrindo. Eu estaria sorrindo quando matasse Patrik Lavin.

      Assim que Agnes me disse o que estava acontecendo e que Madalena estava morta, eu soube que seria necessário esperar o momento certo para reagir. Então, com demasiado esforço, consegui controlar o medo e o ódio e mandá-la embora. Claro que não foi fácil, já que aqueles homens estavam decididos a não tirar os olhos de nós até que o plano deles estivesse concluído, mas enfim consegui convencê-los de que precisava urgente de uma ida à casinha, apenas um deles nos acompanhou e aí começou meu plano: quando estávamos longe o suficiente para não sermos vistos, ainda encobertos pelos últimos resquícios da escuridão da noite que já chegava ao fim, me joguei nos braços do homem, que me agarrou prontamente, estribuchando, gritando e revirando os olhos simulando um ataque ou algo do tipo. O idiota, obviamente, ficou paralisado enquanto pensava o que diabos deveria fazer e esses segundos deram a Agnes a chance de escapar. O troglodita só percebeu o que aconteceu quando o som dos cascos de cavalos denunciaram a fuga dela e eu me recuperei milagrosamente de meu súbito mal estar. Isso me rendeu um olhar mortal e ele veio para cima de mim, pronto para me agredir, mas o lembrei de que precisavam de mim viva e ilesa para conseguirem o que queriam.

     Fecho o último botão do vestido e me olho no espelho, vendo meu rosto ainda avermelhado, já que ao ser informado sobre o ocorrido Patrik não controlou sua raiva e me deu um belo soco de direita. "Comporte-se, ou da próxima não manterei meus carinhos longe desse bastardo que você carrega", ameaçou. Em minha mente, eu já o havia matado dezenas de vezes, em diversas maneiras espetacularmente criativas. Incapaz de prolongar mais o que viria a seguir, coloco o delicado colar de pérolas brancas de minha mãe e me encaminho para fora, onde todos me esperam. Segundo Lavin eu deveria parecer uma noiva encantadoramente apaixonada para assim convencer o vigário e os empregados sobre a validade daquela união, na intenção de fornecer à ele de forma pacífica, a autoridade sobre a fazenda. Eu temia não ser tão boa atriz assim, então tudo que pude fazer foi caminhar pelo corredor de pessoas com suavidade e a graciosidade limitada de uma mulher em sua sétima lua de gravidez, e munida de um sorriso que eu realmente tinha esperanças que ocultasse a sensação de que eu estava, na verdade, indo para a forca.

     "Não tire os olhos de mim", ele ordenou momentos antes. "Convença-me que me deseja, faça isso ser bom para mim, que farei o mesmo por você". Portanto para cumprir o meu papel, encaro aqueles olhos castanhos e frios e sorrio ainda pensando em formas de fazê-lo sofrer. Talvez esses pensamentos não me deixassem com a expressão mais adequada para o momento, por um segundo eu cogitei a possibilidade de imaginar que outro homem esperava por mim no fim daquele corredor de pessoas enfileiradas, mas aquilo me causou uma dor tão grande que fez meus joelhos quase cederem sob o peso da saudade e tristeza, então esses pensamentos homicidas teriam que servir.

     Rápido demais cheguei ao meu lugar ao lado de Patrik e o vigário uniu nossas mãos com uma corda. Enquanto ele recitava seus votos e promessas vazias eu sentia uma súbita vertigem me atingir, embaçando minha visão daquele rosto maldito, e novamente me peguei pensando nele. Oh, senhor Mackenzie, deveria ser você aqui… Um forte aperto em minha mão me lembra de que já é hora de eu dizer minhas palavras e, a seguir, seríamos marido e mulher. Então, Patrik me beijaria e depois me arrastaria para meu quarto e consumaria o casamento. "Todos já sabem a sem vergonha que você é…", apontou minha barriga inchada, "...mas eu preciso e vou consumar esse casamento e eu espero que você grite fingindo que está gostando, ouviu?", lembro-me de suas palavras. Um bolo começa a se formar em minha garganta e lágrimas não derramadas começam a arder em meus olhos. Isso tudo é tão errado, tão injusto, tudo uma grande…. merda! O aperto em minha mão se intensifica e, depois de engolir em seco algumas vezes, finalmente abro minha boca para selar de uma vez meu destino.

-- Eu… -- começo, mas um barulho ensurdecedor me impede de continuar.

     Abaixo-me instintivamente ao ouvir o disparo e Patrik solta minha mão. Assustados, os empregados começam a circular de um lado para o outro, correndo, gritando e trombando entre si como ratos flagrados e encurralados numa despensa. Mesmo assim eu o vejo, montado em seu cavalo marrom, com os cabelos castanho avermelhados totalmente desgrenhado pelo vento da corrida e com aqueles olhos azuis… aqueles olhos azuis estão prometendo destruição. Ele veio por mim, penso sentindo profundo alívio e, pelos deuses, meu amor por Ian, que ocultei no fundo do coração por esses meses, volta para a superfície com força total. Mas esses momentos são breves e logo um ferrete se prende em meu braço e me puxa violentamente para dentro de casa. Em alguns segundos, meu cérebro capta algumas coisas acontecendo ao redor: agora que os empregados já se dispersaram, o som de metal batendo em metal pode ser ouvido e vejo os capangas de Patrik numa luta de espadas com um punhado de homens, que imagino, vieram junto de Ian. Vejo lorde Jamie entre eles, atacando com ferocidade e derrubando o homem que enganei para que Agnes pudesse fugir. Oh, Agnes... agradeço mentalmente a ajuda de minha fiel amiga enquanto entramos na casa e não posso mais ver o desenrolar das lutas.

-- Eu não consigo ir tão rápido assim, me solte! -- grito, tentando puxar meu braço do aperto malvado daquele homem.

-- Você orquestrou isso! -- ele me puxa ainda mais rápido enquanto subimos as escadas -- Sua vadia maldita, quando tudo acabar você vai pagar pelo que fez!

     Aos tropeços esforço-me para acompanhá-lo e já estou totalmente sem fôlego quando chegamos ao segundo andar.

-- Missy! -- ouço uma voz familiar carregada de ameaça e temor -- Solte-a imediatamente, seu desgraçado!

     Ian adentra o salão principal numa corrida desenfreada enquanto Patrik continua a me arrastar e, desorientado, adentra no quarto de papai, onde tudo começou. "De uma forma mórbida e sinistra, isso até que é poético!", minha mente cínica pensa lá no fundo. Ele abre a porta e, depois que entramos, me joga no chão com uma força descomunal e caio de barriga. Meu primeiro instinto seria, obviamente, gritar. Mas a dor e a falta de ar absurdas que me invadiram não permitiram que qualquer ruído saísse de meus lábios. Uma escuridão assustadora me tomou os sentidos e tudo que houve por algum tempo foi apenas o breu e uma pontada lancinante em meu ventre. Acho que ouvi alguém chamar meu nome e outros barulhos começaram a perfurar aquela névoa de sofrimento, logo minha visão foi retornando. Ian estava ali, desferindo socos em Patrik que sorria e revidava, mas eu conhecia de luta o suficiente para saber que ele estava se contendo.

-- Você bate como uma mariquinha, Mackenzie! -- riu e cuspiu sangue no chão -- Agora vou lhe mostrar como é que se faz.

     Patrik preparou um soco e atingiu Ian tão rápido que ele mal percebeu de onde veio o golpe. Visivelmente atordoado, Ian demorou para revidar, o que permitiu que Patrik continuasse sua violência, agora com uma forte joelhada no estômago que lhe tomou o ar dos pulmões. Ele ia matá-lo, percebi tardiamente. Se alguém não fizesse alguma coisa, Patrik mataria Ian apenas com suas próprias mãos. Onde estava Jamie? Onde estava a pistola que Ian disparou momentos antes? Ao me lembrar da arma, lembrei-me que naquele cômodo da casa estava a pistola de papai e, por alguma benção dos deuses, eu caíra ao lado da cama. Rapidamente, enfio a mão debaixo do móvel e encontro a caixa de madeira. Para poupar tempo, papai sempre guardava sua pistola de pólvora já carregada, então tudo o que faço é pegar a arma e, ignorando a dor, levanto-me e sigo até a luta.

-- Você parece ainda ter todos os dentes na boca, vamos cuidar disso? -- Patrik zomba enquanto Ian tenta se levantar do chão.

     Mas ele para no meio do movimento, percebendo o que estou prestes a fazer, e vejo naqueles lindos olhos azuis um brilho de orgulho e admiração.

-- E você parece ainda ter o coração batendo, vamos cuidar disso? -- digo no mesmo tom sarcástico e, sem esperar a reação dele, aperto o gatilho.

    Devido ao ambiente fechado o som do disparo é ensurdecedor, e com um zumbido no ouvido percebo que a bala o perfurou bem na parte esquerda das costas. Vejo o sangue enegrecido manchar seu casaco puído e escorrer até o chão e, como se estivesse se esforçando para retardar o inevitável, Patrik se esfoça para se manter de pé. Ian, por sua vez, se levanta e como se fosse incapaz de evitar de chutar um cachorro morto, desfere-lhe um soco nas costelas. Arfando o homem finalmente caí ao chão, com olhar perdido e raivoso, e ambos observamos a poça de seu sangue crescer, hipnotizados, até que uma pontada me atinge novamente.

-- Ian… -- derrubo a pistola ao mesmo tempo em que me curvo em dor.

     Rapidamente sou amparada por braços fortes e quentes, que me levantam do chão e me carregam para longe daquele quarto amaldiçoado.

-- Você vai ficar bem, vai ficar tudo bem… -- ele me assegura, em voz suave, enquanto deposita um beijo em meus cabelos.

     Com um chute Ian abre a porta de meu quarto e carinhosamente me deposita sobre a cama, quando ameaça sair eu agarro seu braço com força.

-- Você voltou… voltou para mim -- sussurro sentindo o salgado das lágrimas que molham meu rosto.

     Ele se abaixa e cola sua testa na minha. Sinto cheiro de sangue e suor mas não me importo, pois são o sangue e suor do homem que eu amo.

-- Eu nunca fui embora, Missy, não totalmente. -- me garante, emocionado -- Meu coração esteve esse tempo todo com aqui, junto de você.

-- Eu sinto tanto, Ian, tanto… -- soluço.

-- Shh.. não diga mais nada, conversaremos depois que o médico te examinar, está bem? -- diz, ansioso, e se levanta.

     Ao mesmo tempo, um homem alto e ruivo adentra o quarto furiosamente, portando uma espada suja de sangue na mão. Ao ver o irmão vivo, porém não tão ileso, Jamie entra no quarto e o puxa para um abraço com a mão livre.

-- Eu ouvi um disparo, e vi que derrubou a pistola enquanto corria, então eu pensei... -- suspira e bate nas costas dele -- fico aliviado que esteja bem.

-- Apesar de não estar tão belo agora, eu sei que esse rostinho aqui vai se recuperar. -- zomba Ian, se afastando do irmão -- Graças à Missy, que salvou minha vida!

     Lorde Jamie arrasta o olhar até mim, feliz e confuso.

-- Mas não deveria ser o contrário? -- pergunta sorrindo.

-- Não quando se trata dessa mulher, Jamie. -- dá de ombros -- Agora, por favor, faça alguém arrastar um médico até aqui o quanto antes.

     Com um aceno afirmativo, Jamie se retira nos deixando à sós e o silêncio reina enquanto Ian e eu nos encaramos, até que sinto alguém se contorser dentro de mim.

-- Ai! -- coloco a mão na barriga.

-- O que foi? O que houve? -- Ian se ajoelha ao meu lado e seu olhar desesperado delata seu medo.

-- Ele está se mexendo, apenas... brincando com meus órgãos, provavelmente. Esse menino é tão ativo, Ian... -- acaricio a barriga, tentando acalmar o bebê agitado -- Mas, é bom sinal que esteja se mexendo, certo? Quer dizer que ele está bem. -- percebo a esperança nítida em minha voz.

-- Imagino que sim. -- ele encara minha barriga protuberante -- Será... -- tosse, nervoso -- será que eu posso sentir?

     Concordo sem emitir palavra e, hesitante, Ian coloca as duas mãos sobre mim, aquelas mãos enormes quase envolvem a circunferência completamente e, ao sentir o movimento seus olhos se arregalam em surpresa.

-- Pelos deuses! -- exclama, surpreso -- Veja só isso!

-- É, eu estou sentindo. -- sorrio, sentindo um calor delicioso de felicidade se espalhar pelo meu peito enquanto sinto seu toque e vejo aquele rosto ferido com expressão maravilhada.

-- Isso… isso é mágico, Missy! -- ele se vira para mim e acaricia meu rosto -- Eu fui tão tolo, querida, tão precipitado em deixá-la. Em deixá-los. Eu imploro seu perdão.

     Seguro sua mão dele em meu rosto e me aninho ainda mais no seu calor.

-- Você está aqui agora. -- digo, o perdoando.

     Ele se aproxima mais e junta seus lábios nos meus, num sussurro de beijo.

-- E se você permitir, querida senhorita Kedard -- ele busca algo em seu bolso e em suas mãos vejo um brilho prateado -- eu nunca mais sairei do seu lado.

     Algo frio toca minha mão e o que vejo ali faz com que meu coração erre uma batida.

-- Você o guardou! -- digo emocionada, enquanto observo o broche de estrela de prata salpicado de pequeninos diamantes que Ian comprara de mim, naquele centro de comércio, tantos meses antes.

-- Eu prometi que o daria a alguém especial, e para mim, não há ninguém mais especial que a senhorita. E… -- ele pausa por um momento, engolindo as lágrimas que vejo se formar em seus olhos -- e prometo que irei me esforçar para nunca mais magoá-la. Dedicarei meus dias para protegê-la e fazer de você a mulher mais feliz desse mundo.

-- Com esse presente, e vendo você ajoelhado aí -- sorrio -- eu já sou essa mulher.

     Como se quisesse participar do momento, o bebê chuta com toda a força que aquela criaturinha possui.

-- Oh, filho, eu o protegerei e o farei feliz também, é claro! -- ele beija carinhosamente minha barriga e imediatamente a criança se acalma -- Apesar de que eu acho que teremos uma filha.

     Abismada ao presenciar aquilo, o carinho e o amor presentes tanto em sua voz, quanto em seu olhar e seu sorriso feliz, levo alguns segundos para me recuperar.

-- Ian… você não precisa fazer isso. Está tudo bem, eu não espero que você seja o pai dessa criança.

-- Mas é isso que eu sou, querida. Nesses meses fora eu pude claramente perceber que, no meu coração, esse bebê é meu filho e eu o amo. E eu amo você.

-- Ah, meu querido senhor Mackenzie! Eu o amo muito mais! -- rindo e chorando de absoluta felicidade, o puxo para um abraço e Ian se deita ao meu lado, onde em silêncio declaramos repetidamente nosso amor, apenas com carinhos e suspiros apaixonados.

    

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