Capítulo 33

Diário de viagem - pertence à Ian Jacob Mackenzie

Proa do navio "Taranis",
14 de junho de 1715

    Annelizy, como sempre, mostrou-se muito inteligente e prestativa ao me presentear com um belo livro numa encadernação em couro marrom repleto de páginas em branco. "Certamente ficará entediado", ela disse empolgada. "Nesse caso não seria melhor me dar um livro já escrito?", escarneci e guardei o presente no fundo da mala. A resposta dela foi um suspiro enfadonho, um revirar de olhos e um dar de ombros. Tudo ao mesmo tempo. Apenas agora, em meu sexto dia à bordo entendo sua intenção. Eu já teria lido o tal livro à essa altura. Talvez duas vezes. Mas um livro em branco nos permite muitas oportunidades mais. Poderia usá-lo para desenhar, mas não possuo esse talento. Poderia compor uma canção mas os deuses sabem que só sairiam palavras obcenas, mas bem, talvez isso até fizesse sucesso. Mas eu escolhi escrever sobre meus dias aqui para, talvez, me compreender ao  registrar as palavras aqui, ou até mesmo ao lê-las em outro momento. Mas suspeito que, no fundo, eu esteja rabiscando meus garranchos aqui para lhe mostrar mais tarde. Pois eu sei que a verei novamente, sei disso. Só não sei as circunstâncias, não sei se conseguirei perdoá-la ou se conseguirei perdoar a mim mesmo por não perdoá-la. Entende minha confusão, Missy? Você me deu um sonho, me fez vislumbrar um futuro maravilhoso que, de repente, não teria mais a mínima chance de se tornar real. Eu perdi o chão e fiquei vagando em uma profusão de sentimentos interminável. Profusão. Quando me imaginei dizendo essa palavra, escrevendo essa palavra? Nunca. Só você mesmo para fazer com que eu faça algo assim. Só você, Missy.

    Numa carruagem-correio em algum lugar entre Londres e Greenville,
7 de julho de 1715

     A viagem até a Inglaterra durou mais do que o esperado. Céus, muito mais! Os ventos estavam soprando em direção totalmente contrária na maior parte do tempo e isso nos atrasou. Mas eu fiz um amigo. Brian é um soldado britânico que, depois de sobreviver à guerra e perder uma perna, foi dispensado e está voltando para casa. Mesmo sem o membro ele se meteu em diversas brigas, eu presenciei três, e as muletas se mostraram uma arma incrivelmente eficaz para se bater nas pessoas. Principalmente quando o apelido "Brian perneta" foi dito em voz alta no convés certo dia, e ele ficou furioso. Mas depois fez amizade com o responsável pela afronta e, após algumas rodadas de cerveja, vários brindes foram feitos ao grande Brian perneta. E por falar em cervejas, eu mantive minha promessa e não bebi uma única gota de álcool. Tive de aguentar diversas provocações diante de minhas constantes recusas, mas sempre via o rosto contorcido em genuína preocupação de Nita, então eu me mantive firme. Por isso, e devido ao cheiro de mijo da cerveja. Ou talvez aquele fosse apenas o perfume natural do navio já que absolutamente tudo ali cheirava a mijo velho. Perdão por dizer palavras tão baixas mas acho que você é capaz de ler isso sem corar ou perder o fôlego. Eu admiro tanto isso em você. Você diz mijo e palavras ainda piores com um sorriso zombeteiro no rosto e sem desviar o olhar. Você teve a bravura de fazer o que queria e o que era necessário. E o que eu fiz quando precisei enfrentar algo? Eu fugi. Num maldito barco fedorento, e agora numa carroça que chacoalha tanto que estou enjoado há horas. Na verdade, nem sei se minhas palavras estarão legíveis ao final, mas escrevi mesmo assim. Estamos chegando na próxima parada numa estalagem, alcançarei meu destino  amanhã, a vila de Richard Cooper. E tudo em que consigo pensar, agora que Brian perneta não está aqui matraqueando sem parar, é em como sinto sua falta.

     Residência Cooper,
Greenville - Inglaterra,
23 de julho de 1715

     Fui tão bem recebido nesse lugar que nos primeiros dias quase não pude acreditar. Richard me recebeu com um abraço forte e caloroso mesmo que nosso contato no passado tenha sido breve. O tempo fora muito gentil com ele, que permanecia belo e forte, mas os sinais da passagem dos anos se faz presente nos fios grisalhos que surgiram entre os negros e nas rugas nos cantos dos olhos dele, que sempre se acentuam quando sorri. E o que esse homem mais faz, é sorrir. Seus lábios estavam numa curva feliz ao me receber, ao me apresentar à esposa Marie, e à pequenina Marcelle, que é alguns poucos meses mais velha que Clarissa. Quando mencionei tal fato, Richard se emocionou ao saber que Lizy e Jamie batizaram sua filha com o nome da enfermeira que dera a vida para protegê-la anos atrás. Mesmo nesse momento ele sorria, em saudade e respeito. E no hospital, sorria ao cuidar e acalmar seus pacientes. Nas primeiras semanas eu me perguntava se as bochechas dele não doíam, mas agora eu compreendo que Richard Cooper é absolutamente feliz e realizado então, porque segurar o riso? Quando percebi isso, me peguei pensando que gostaria de vê-la assim, sempre com um sorriso curvando seus lábios e iluminando seus olhos. Constatei que não abandonei o sonho de uma vida com você, querida. Eu a amo e nada poderá tirar esse sentimento de mim. Eu amo essa criança que você carrega, que eu rezo para que esteja forte e saudável, simplesmente porque ela é sua e absolutamente tudo que é importante para você também o é para mim. Eu a amo porque em meu âmago sinto que ela também é minha. "Então que diabos você está fazendo na Inglaterra ainda, Mackenzie seu imbecil?", quase posso ouvir você me perguntar, irritada. A resposta, meu amor, é que sinto vergonha de ter sido tão fraco, estou mortificado por ter demorado tanto para perceber que não há Ian sem Missy. Não há Ian sem a família que iniciaremos nós três. Sinto muito. Me perdoe por ser um idiota. Espero que estejam bem. Espero que me espere.

      Casa de caridade Cooper,
Greenville - Inglaterra,
16 de agosto de 1715

      Já faz mais de um mês que estou aqui e certamente não fazia parte de meus planos estender essa viagem por tanto tempo. Mas, entenda, eu estou encantado. Ficou enciumada, não foi? Deixe-me explicar melhor. Estou encantado com esse hospital. "Casa de caridade" é como eles chamam aqui, pois Richard Cooper é bondoso demais para cobrar de quem não tem condições de pagar por um atendimento decente. Então, todos que necessitam são bem vindos sempre, sem excessões. Aqui há velhos sem família, há desabrigados, sobreviventes mutilados da guerra, órfãos. Os contagiosos ficam numa casa isolada, não tive permissão para ir até lá, mas o que eu pude ver, querida, foi a maior demonstração de amor ao próximo que já presenciei. Richard fez algo grandioso aqui e eu o admiro por isso. Com ele você pode fazer qualquer negócio, algumas moedas lhe bastam, ou então um saco de grãos ou temperos, um rolo de tecido, uma jarra de leite, uma galinha ou um porco. Ele agradece o pagamento e cuida das pessoas com aquele sorriso de quem ama aquilo que faz. E eu estive ajudando em todo esse tempo. Bem, não ajudando realmente, pondo a mão na massa. Mas eu estive aqui, conversando com eles, apertando suas mãos, dando comida e água a quem não conseguia se alimentar, distribuindo algumas moedas. Contei histórias às crianças sobre donzelas, guerreiros e dragões, e não pude deixar de pensar: "um dia contarei as mesmas histórias à uma certa criança". Se você me aceitar, é claro. Sei que não mereço uma segunda chance depois de abandoná-la de forma tão terrível e traumática, mas eu vou lutar por nós, Missy. Assim como venho lutando nesses dois meses em que estou fora, abandonando meu orgulho e preconceitos arraigados. O que são essas coisas em comparação à tudo que podemos ter? Nada, meu amor. Eu abriria mão do meu sangue e do ar nos meus pulmões por você. Só não renunciaria ao meu coração pois este já lhe pertence há tempos. Enviei um criado para comprar uma passagem no próximo navio para a Escócia. Eu estou indo, querida.

    Numa carruagem alugada em algum lugar entre o porto e a propriedade Mackenzie,
Escócia, 7 de setembro de 1715.

     Imagino que os cavalos que puxam essa geringonça cambaleante tenham mais inteligência do que eu. Deuses, eu fui um completo idiota por deixá-la, ainda mais por tanto tempo. Pelos meus cálculos você já deve estar chegando à sétima lua da gravidez, deve estar com um barrigão enquanto cuida de uma propriedade produtora, criados e se prepara para dar à luz. Como sempre, você é uma muralha de força e estabilidade e eu um pobre tolo que fugiu para lamber as feridas. Um tolo que está ainda mais apaixonado do que a última vez que a vi, chorando e trêmula. Mas o que me conforta, amor, é que sei que logo você sacudiu a poeira e secou as lágrimas e seguiu adiante. Eu levei um tempo maior para me entender, para aceitar, para entender você. Vou compensá-la pela minha ausência pelo resto de nossos dias, eu prometo. Parece que já posso ver, ao longe, a propriedade Mackenzie. Pararei por aqui esse diário de viagem e minhas próximas palavras à você serão ditas pessoalmente, enquanto imploro de joelhos o seu perdão. Estou chegando, querida Missy.    

    

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