Capítulo 30

Ian

     Desde que possuo a consciência de minha existência eu desejo pouco da vida, afinal, um bastardo é ensinado desde cedo a não sonhar com coisas que certamente nunca terá. Então, tudo o que eu queria de verdade eram as coisas mais simples: comida e abrigo. Apenas o essencial para se viver. Com o passar dos anos, acrescentei "prazeres da carne" à minha pequena lista, pois desde que provei minha primeira mulher, nunca mais consegui viver sem o calor feminino. Amor nunca esteve entre minhas ambições, mesmo em suas diversas formas. Aquele amor amigo e familiar me fora tirado com a morte de Jenny, minha meia irmã e melhor amiga, e depois de quase sucumbir em luto e pesar, decidi que o melhor era realmente viver sem esse sentimento que nos faz tão felizes apenas para nos esmagar em algum momento.

     Porém a vida não dá a mínima para nossos planos, e o deus do destino tem seu próprio propósito que nos enfia goela a baixo sem hesitar. Na maioria das vezes ele nos enfia em merda, claro, mas o deus do destino sorriu para mim diversas vezes nos últimos anos: como quando me deu a chance de descobrir a verdadeira identidade de minha mãe, ou quando Annelizy apareceu em nossas vidas e transformou dois brutamontes teimosos e com tanta dor em comum em dois irmãos, quando me deu uma família cheia de amor.

     Achei realmente que minha dose de sorte havia acabado por essa vida, afinal, o que mais um homem poderia querer? Eu tinha mais do que um dia sonhei, muito mais. Então, quando eu achei que já era o homem mais feliz do mundo o deus do destino me sorriu novamente. Certo dia ele me ajudou a ver uma garota magra, de olhar perdido e extremamente solitária, mesmo em meio àquela pequena multidão no centro de comércio. Ah, se eu soubesse na época o quanto minha vida mudaria a partir daquele momento que pareceu tão insignificante. Missy adentrou em minha vida tão sutilmente que, quando dei por mim, eu a amava. Tão simples e sem rodeios, tão fácil e descomplicado. 

      Mesmo que nunca tivesse sentido a necessidade de viver um grande amor, eu não hesitei ao me surgir essa oportunidade. Eu mergulhei de cabeça naquela mulher e, céus, foi a melhor decisão da minha vida. Como eu poderia ter imaginado que a vida era perfeita sem aquele perfume dela pelo ar? Sem seu sabor e seu calor? Sem sua voz doce e aquele olhar que promete o paraíso e o inferno? Agora sim, percebo, sou verdadeiramente o homem mais feliz do mundo.

     Foi difícil fazê-la admitir seus sentimentos em relação à mim, Missy é de natureza desconfiada e não posso julgá-la quanto à isso, com aquele monstro que fora seu pai. Então seguindo um plano arriscado que bolei junto de Jamie, a pressionei apenas um pouquinho, o que funcionou mais rápido do que imaginamos. Ela me ama e, assim que as reformas da fazenda estiverem prontas, eu farei dela minha mulher.

     E foi devido à essa pressa que na manhã seguinte a celebração ao aniversário de Nita, partimos às pressas para a propriedade Kedard. Missy não protestou, pareceu até grata pela minha ansiedade de ir embora, dizendo que era melhor assim pois poderíamos conversar assim que chegássemos e resolver tudo logo. Sem ter a mínima ideia do que "tudo" significava, apenas concordei e contive minha curiosidade por todo o caminho que, graças aos céus, já estava nos últimos quilômetros.

     Agnes decidira em viajar junto ao cocheiro, insistindo que estava precisando de ar livre, então Missy e eu estávamos sozinhos dentro da carruagem. A privacidade fornecida pelo cubículo não fora aproveitada como eu estava planejando pois, assim que os cavalos pegaram o ritmo do trote, senhorita Kedard adormeceu apoiada em meu ombro. A observo novamente, talvez pela milésima vez apenas nessa manhã, e a acaricio suavemente, saboreando cada detalhe daquela beleza que me encanta a ponto de doer meu coração. Não posso realmente culpá-la por estar cansada pois eu exigi muito dela noite passada, já que diversas vezes a fiz gemer, me arranhar e gritar meu nome. Sorrio orgulhoso com as lembranças me invadindo, a maneira como as pernas dela tremiam, a sensualidade que seus cabelos ruivos e selvagens dão a ela. Chega, Ian, pare de pensar nisso senão logo estará duro e não há maneira de se aliviar aqui. Porém, penso safado, haveria se faltassem mais meia hora de viagem, o que infelizmente não é o caso, pois já posso avistar o portão da fazenda se aproximando.

-- Ei, dorminhoca, estamos chegando. -- sussurro enquanto faço mais carinhos em sua bochecha rosada.

     Leva alguns segundos para que Missy abra os olhos, que passam de confusos para envergonhados rapidamente.

-- Onde… ah, Ian, que companheira de viagem tediosa eu fui! Desculpe-me por isso! -- ela pede.

-- Eu a perdoarei se me recompensar mais tarde. -- digo e levo sua mão aos lábios, depositando ali um beijo demorado.

     A carruagem para no mesmo instante em que vejo o desejo iluminar aqueles olhos verdes, mas o lampejo é rapidamente substituído por hesitação e incerteza.

-- Precisamos conversar, Ian. Imediatamente.

-- Sim, sim, eu sei, querida. -- o lacaio abre a porta -- Venha, vamos resolver seja lá o que for agora mesmo.

     Com um suspiro resignado e um aceno de concordância, a ajudo a descer e rumamos até a casa principal. Sinto nervosismo irradiando de Missy e mais uma vez contenho fortemente a curiosidade, impedindo-me de perguntar a ela o que diabos está acontecendo. Antes de chegarmos à entrada da casa, uma gritaria começa vindo de todos os lugares da propriedade.

-- As galinhas fugiram! -- gritou uma mulher, acho que era Madalena.

-- Suas danadas! Andem, venham aqui…

-- As galinhas, não deixem que escapem!

     Com um revirar de olhos e sorrindo ao ver uma galinha correndo em nossa direção, decido auxiliar na caça às penosas.

-- Vou ajudá-los, meu bem. A encontrarei em alguns momentos, tudo bem?

-- Não demore, Mackenzie.

     Com a promessa de ser rápido e depois de um casto beijo em seus lábios macios, sigo numa frenética perseguição às malditas galinhas que se revelam um desafio inesperado. Apenas cerca de meia hora depois todas foram capturadas junto de seus pintinhos que também eram bem rapidinhos. Suando em bicas começo meu retorno à casa principal, mas sou impedido novamente por um empregado que chama minha atenção à alguns problemas e irregularidades do serviço.

-- Ei, você rapaz! Avise sua senhoria que vou me demorar aqui pelo menos uma hora. -- peço à um moleque magricela que passava por ali, que sai correndo para cumprir a ordem.

     Me dedico com afinco na resolução daquelas pendências, que levam mais tempo do que previ, já passava da hora do almoço quando tudo finalmente fora acertado. Cansado sigo à procura de Missy, o que não tem sucesso pois não a encontro em lugar algum da casa.

-- Agnes, onde está senhorita Kedard? -- pergunto à mulher que lê algum livro na biblioteca.

-- Ela não está no quarto? -- aceno negativamente -- Ah, então certamente está lá na beira do rio. Senhorita Missy acha aconchegante o barulho da correnteza. Basta o senhor seguir em linha reta nos fundos da propriedade, fica no fim da descida da segunda colina.

-- Obrigado, Agnes.

     Munido de dois pães e uma fruta para aplacar o rugido de fome em meu estômago, sigo as instruções. Em passadas largas não demora para que o barulho de água corrente se faça presente e, ainda no alto da segunda colina, meu olhar a encontra. Missy está deitada sob a sombra de uma árvore não muito grande, à alguns metros da margem do rio que é estreito, porém rápido e profundo. Ao chegar mais perto, comendo o último pedaço de meu simples almoço, percebo divertido que ela parece estar conversando sozinha, gesticulando com as mãos e… acariciando a barriga?

     Um gelo invade meu corpo e cesso meus passos com o susto. Seria isso que ela estava insistindo que precisava falar? Ela está grávida? Uma súbita felicidade faz com que o susto inicial desapareça. É claro que é isso, nós tomamos precauções mas não todas as vezes. Eu... terei um filho com a mulher que eu amo. Retomo meu caminhar e agora posso ouvir sua voz por sobre o barulho da correnteza.

-- … vai ser corrido, pois será época de uma nova safra, mas nada disso importa, não é? Apenas mais cinco meses e você estará aqui conosco, bebê. -- ela ri, deliciada.

     Cinco meses, cinco meses, cinco meses… essas duas palavras se repetem em minha cabeça incessantemente. Não sou nenhum entendido no assunto, mas qualquer idiota sabe que uma gravidez dura nove meses. Alguma coisa se parte em meu peito e minhas mãos tremem quando percebo que aquele filho não é meu. Não é meu… não é meu. Lágrimas turvam minha visão quando a dor da decepção me sobrepuja. Esse momento, percebo, é um daqueles em que o deus do destino não se importa com seus planos e apenas te enfia em um monte de merda, e é nisso que eu sinto estar me afogando agora. Não posso respirar. Ela mentiu para mim por todo esse tempo!

-- Suponho que eu deva parabenizá-la. -- digo numa voz sem emoção.

     Missy se levanta e sua expressão de alegria desaparece imediatamente, sendo substituída por medo e uma palidez preocupante lhe toma a cor. Mas… ela mentiu para mim. Em que mais ela mentiu? Será que disse alguma verdade?

     "Ian", vejo os lábios dela dizerem meu nome, sem o som de sua voz. Nos encaramos por alguns momentos e sinto-me tão perdido, com tanto ódio dela que percebo que o melhor a fazer é sair dali. Viro-me para refazer o caminho até a casa mas logo uma pequena mão me puxa de volta.

-- Não, espere! -- ela grita -- Você precisa ouvir o que eu tenho a dizer.

-- O que eu preciso é sumir daqui. -- digo e me desvencilho bruscamente de seu aperto.

     Consigo dar alguns passos, mas Missy corre e para à minha frente impedindo minha passagem.

-- Pare! -- pede com um berro de doer a garganta e eu realmente paro -- Me escute, droga! Eu ia… ia te contar. Por favor, só… só ouça.

-- E que diferença fará, Missy? -- pergunto sorrindo sarcástico, abrindo os braços -- Não percebe que eu não conseguirei acreditar em mais nada que sai dessa sua boca?

-- O quê? -- pergunta, confusa.

-- Você mentiu para mim! -- grito e pássaros voam, assustados, fugindo da árvore onde estavam empoleirados -- Você me enganou!

-- Não, Ian, você... não entende, me deixe explicar, por favor. Por favor… só...

     Vê-la claramente desesperada apenas me dá uma cruel satisfação em ver que tenho o poder de fazer com que ela sofra também. Mas sou incapaz de fazer isso. Tão completamente incapaz de odiá-la de verdade, decido engolir meu próprio desespero e dor para ouvir o que ela tem a dizer. Ao notar meu silêncio, ela continua.

-- Eu demorei a descobrir, estava tão focada em tentar sobreviver e reerguer esse lugar que não notei os sinais.

-- Quando foi? -- pergunto, sombrio.

-- Poucos dias antes de lhe procurar pedindo ajuda. Você e Jamie eram minha última esperança. A única esperança, na verdade.

     Aquilo me dói como uma facada, a dura verdade de que em todo esse tempo, mais de dois meses depois daquilo e depois de tudo o que aconteceu, em momento algum ela foi digna comigo.

-- Então... eu temi dizer e perder o seu apoio. Sem você Jamie jamais aceitaria sequer me receber na casa dele.

-- E depois, Missy? O que a impediu de me dizer? Estou na sua casa, dormindo à alguns quartos de distância há semanas! Porra, por que você fez isso?

-- Eu não sei, tá legal! -- ela sussurra com lágrimas escorrendo pelos olhos, e acaricia a barriga, atraindo para lá minha atenção. Observo o toque maternal com pesar e rancor -- No começo eu nunca imaginei que teríamos mais do que algumas noites divertidas, então porque eu contaria algo tão pessoal? E depois… e eu me impedi de contar por ter medo de que você não o aceitasse, de que mesmo que ficássemos juntos você odiasse meu filho por não ser seu.

     Isso faz com que meu olhar saia da barriga dela, que apenas agora percebo estar começando a inchar, e a olho com repulsa.

-- Você acha que sou baixo a esse ponto? -- pergunto baixo e cheio de raiva.

-- Não! Foi só um pensamento passageiro, assim que o conheci melhor eu percebi o homem maravilhoso que você é, Ian! Depois… droga, eu achei que seria injusto com você. Eu pretendia aproveitar nosso relacionamento de forma breve e deixá-lo partir.

-- Então depois de me considerar um ser desprezível como seu pai, tomou decisões por mim. -- ironizo e cruzo os braços.

-- Não foi o que eu disse, Ian! -- ela avança sobre mim para me abraçar.

-- Se afaste de mim! -- me desvencilho novamente de seu toque -- Continue.

     Não posso deixar de perceber sua tristeza, mas não sou capaz de fazer algo a respeito no momento.

-- E então eu me apaixonei por você. Eu sei que errei, e sinto muito por isso. -- lágrimas escorrem, grossas e em abundância -- Eu gostaria de poder voltar atrás, eu lhe contaria naquele dia em que pedi sua ajuda. Mas tudo o que eu posso fazer agora é pedir seu perdão. Por favor, Ian, me perdoe.

     Seu pedido é tão triste e emocionado que me tiram as palavras por alguns segundos. Penso em tudo o que ela me disse e sinto meus sentimentos entorpecidos e bagunçados.

-- Eu te dei tudo o que pude. -- sussurro novamente naquele tom sem emoção -- Enfrentei minha família,  reconstruí sua propriedade, eu… -- paro por um momento e engulo o bolo de lágrimas que estão se formando em minha garganta -- eu te dei meu coração. E ganhei apenas ilusões e mentiras.

-- Ian… -- sussurra entre soluços de choro.

-- Você é uma covarde! -- grito e Missy pula de susto -- Uma puta covarde! Deitou-se com criados e agora carrega um bastardo, e pensou que outro bastardo seria sua salvação.

-- Você não está sendo justo! -- ela grita de volta.

-- E você foi justa comigo? -- silêncio, ela apenas me encara tristemente -- Adeus, Missy.

     Preciso sair daqui, preciso sair… dou alguns passos e a voz dela soa novamente agora tão irada quanto a minha.

-- Eu não terminei, senhor Mackenzie.

-- Mas eu terminei, eu não quero saber de mais nada. -- digo ainda caminhando.

-- Eu o matei.

     Isso faz com que eu pare, surpreso, e viro-me para fitá-la, vendo-a de olhar profundamente vazio enquanto me encara e continua com voz raivosa.

-- Meu pai. Eu não contei o restante da história sobre a morte de Paul, Mackenzie. O senhor pensou que para meu querido pai seria castigo suficiente me fazer presenciar aquilo? Oh, não seja inocente… -- sorri amarga -- Eu perdi a utilidade para ele no mesmo instante que perdi minha virgindade. Então, ele encontrou outro propósito para mim, e ele começaria a partir daquela noite.

     Um novo tipo de horror me toma ao ouvir aquelas palavras, e o entorpecimento que sentia desaparece, dando lugar ao ódio antigo e latente que sempre senti por Edmund Kedard.

-- Ele ordenou que eu fosse até seu quarto naquela noite, usando minha mais bela camisola para… bem, você deve imaginar. E então quando a lua estava alta e todos estavam dormindo, eu fui. Ele sorriu quando eu entrei, ele olhou meu corpo de cima a baixo, ele se aproximou…

-- Pare, Missy. -- peço, sentindo-me enojado.

-- … e quando ia me tocar eu enfiei a faca naquele coração negro. Ele gritou e eu enfiei de novo, e de novo. Sabe, é necessário muita força para esfaquear o peito de alguém, o osso aqui é muito duro -- ela dá dois socos no peito -- Mas com a motivação necessária, até mesmo uma jovenzinha frágil como eu consegue fazê-lo.

     Lágrimas voltam aos olhos dela, que me olha enraivecida.

-- Então, Mackenzie, nunca mais me chame de covarde.

     Eu gostaria de ter forças para abraçá-la, deuses eu gostaria de conseguir perdoá-la, mas não sou capaz, não sou… há tanta mágoa, raiva e ressentimento agora dentro de mim, que não há espaço para sentimentos bons, não há maneira de ser o homem que ela merece e precisa. Aproximo-me dela relutante.

-- Eu gostaria que as coisas tivessem sido diferentes. -- sussurro e agora não mais consigo conter minhas lágrimas -- Gostaria de poder tê-la feito feliz. Eu… -- suspiro -- não posso fazê-la feliz agora, simplesmente não conseguirei. Adeus, Missy.

     Incapaz de resistir à uma última despedida, dou-lhe um beijo na testa, demorado e salgado pelas minhas lágrimas. Depois, sem olhar para trás, saio dali e rapidamente encontro meu cavalo. A cada galope a dor em meu peito cresce e, com um grito do mais profundo desespero, me despeço do meu coração que está ficando para trás.

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