4. Coreia do Sul

Raíssa estava estranha, fazia quatro dias que não falava do KB, da Coreia ou comigo em geral. Pensei que tivesse alguma prova ou apresentação na faculdade, mas Juliano disse que não e mudou de assunto quando perguntei o que estava acontecendo. Quando ela chegou em seis dias, quebrou o sigilo: entrou pulando no meu quarto com o celular na mão aberta no gmail.

— Eu sou um gênio! — gritou pulando na minha cama, sem se importar com o homem seminu ao meu lado.

Grunhindo, tentei tirá-la de lá, mas estava empolgada demais para me escutar. À minha direita, Bernardo reclamou da interrupção de seu sono.

— Bom dia, Bernardo. Não te vi aí. — mentiu descaradamente. O capacete de moto, os coturnos e sua jaqueta jeans personalizada com estampas de Mamonas Assassinas indicavam claramente quem estava comigo.

— Obviamente — murmurou sonolento. Alongando os braços e pernas, levantou-se preguiçosamente, sabendo que nunca poderia competir com a Raíssa, e perguntou: — Vou fazer o café da manhã, quer o que?

— Ovos mexidos seriam bem vindos — respondi e, com um estalo em meus lábios, nos deixou sozinhas.

— Ele não era gay? — questionou assim que Bernardo havia fechado a porta.

— Bi — respondi carrancuda.

— É o que todo estudante de letras diz.

— Raíssa?

— Sim.

— O que você quer?

— Ah, é. Uma coisa ótima aconteceu comigo hoje! — quicou na cama repetidamente enquanto batia as mãos e ria freneticamente.

— O que aconteceu? — com um suspiro alongado, levantei-me e busquei uma blusa no pequeno armário ao lado da minha cama. Os raios de sol que penetravam minha cortina ofuscavam minha visão, era meio dia.

— Sabe aquele programa de intercâmbio em que me inscrevi? — perguntou animadamente. Claro que eu me lembrava, era uma das únicas coisas que falava durante o ano inteiro.

— O da Coreia, claro — respondi. — Quando você vai?

Nós vamos em dezembro.

Levou cerca de trinta segundos para a ficha cair e meu humor transicionar de feliz para confusão, reconhecimento, confusão, raiva, confusão, remorso e traída. Com a blusa na mão, esperei atônita que Raíssa falasse que Juliano finalmente havia aceitado em ir com ela. Mas nada, ficou parada com um sorriso no rosto, que foi murchando enquanto meu silêncio foi se estendendo.

Trezentos cenários poderiam sair dessa situação, mas eu realizei o mais prudente: disse que ia comer e sai do quarto descontando meus sentimentos na coitada da porta. Entrei em pânico, como alguém reagiria se descobrisse que foi aceita em um programa de intercâmbio no outro lado do mundo sem sequer ser consultada?

Raíssa veio atrás de mim dizendo como seria bom ir para lá. De acordo com ela, seria uma experiência única.

— E o frio? — questionei. — Vai ser inverno.

— Sua mãe ainda tem os casacos de Nova York.

— Aquelas coisas tem dez anos.

— Decathlon.

— Eu não tenho dinheiro.

— Tem sim, você só trabalha.

— É pro futuro.

— Sua mãe concorda, ela me deu seus documentos.

— Ela tá velha, não fala coisa com coisa.

— Eu acho que você deveria ir — Bernardo disse servindo suco de laranja para mim, porém calou-se com meu olhar.

— Eu nem sei coreano — argumentei.

— É por isso que vamos — respondeu. — Você não queria fazer uma graduação sanduíche, é sua hora de experimentar. Eu já fiz até o orçamento.

Ela me mostrou uma planilha com os valores da bolsa e o quanto gastaríamos. Realmente, não esgotaria todas as minhas economias, mas ainda estava receosa.

— Nós só precisamos passar por uma entrevista — disse ela.

— Então, isso — apontei para a planilha. — não é definitivo?

— Mais ou menos.

De baixo da mesa, Bernardo tocou meus pés carinhosamente. Olhava-me atrás do copo de suco, seus anéis baratos do camelô da esquina tintilavam contra o vidro. Respirei fundo, olhei para Raíssa, que ainda tentava me convencer com aqueles olhares de cachorro abandonado, e disse:

— Te odeio.

Raíssa pulou da cadeira me abraçando e exclamando: "obrigado, obrigado, obrigado!"

Nós não vamos passar mesmo, pensei.


2 meses depois....

— Última chamada para o voo ET507 — anunciou a voz no auto-falante enquanto eu e Raíssa corríamos até o portão de embarque.

Quer evitar fila? Chegue no último momento.

As aeromoças estavam nitidamente aliviadas quando entramos arrastando as bolsas e sacolas de doces que a Raíssa fez questão de parar para comprar. Nos apressaram a achar nosso lugares logo, éramos as últimas e a porta foi fechada atrás de nós. Como também havíamos chegado atrasadas no check-in, nossos assentos eram duas fileiras afastadas. A ficha só caiu quando o avião começou a andar. Nós realmente estávamos indo para a Coreia do Sul. Pior: a Raíssa conseguiu conquistar os entrevistadores e fazer com que nos desse metade do dinheiro da passagem aérea além da bolsa do curso. Quando eu olhei para a mulher que me arrastou para essa viajem, já estava apagada com a cabeça caída no ombro do coitado que sentou ao seu lado.

Eu consegui dormir um total de uma hora antes que um bebê começasse a chorar. Foda-se animais de estimação, quem deveriam ser proibidos nos aviões são pessoas. Levantei-me para ir ao banheiro agradecendo por ter conseguido um local no corredor. A porta estava trancada, então esperei que desocupasse (eu deveria ter me sentado). Cinco minutos depois Byeong abriu a porta do banheiro e, atrás dele, Ba-rum arrumava o cabelo. Com os olhos arregalados, rapidamente fechou a porta do banheiro. Acho que ele me reconheceu.

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