FERAS

" algo no chão", diz ela enquanto as árvores ao nosso redor se tornam um borrão de tão rápido que estamos, quase que como uma só. Nosso campo de visão é mais amplo que o dos humanos, temos 3 quadros perfeitos. Dois focos em cada olho e um foco central resultado da junção deles. O zoom absurdo faz a gente ver nosso Lucas ao longe, ele parece vacilar pra direita e para, ao lado de algo perigoso no chão, como se o mesmo tivesse sido alertado. E então, sem zoom nenhum avistamos ele e ele nos vê. E então raiva me domina por sentir um mal estar horrível ao ver o relógio de prata em seu pulso reluzir forte, como os raios do sol, o que faz meu estômago revirar. Há algo no chão, Lucas irá pisar nele e se machucar. Em frações de segundo um cheiro podre apaga, momentaneamente, tudo ao meu redor. O perigo está perto. A irracionalidade domina e os instintos predominam. Mas há um cheiro ótimo em meio a tudo aquilo — um cheiro maravilho, prazeroso, cheiro de sangue. Paramos e como se um rio flutuante passasse por nós, somos atingidos por um odor que nos faz recuar, a fera sabe o que é e rosna alto. Perigo, perigo, perigo. De repente 100 bombas atômicas explodem de uma vez, e mais cem. E mais cem. Estourando a cada sacudidela que Lucas dá com a latinha onde sei ter cem parafusos pequenos — os mesmos encontrando o revestimento da lata, eles se chocando entre si, tudo lentamente, preciso, torturante. BUM! BUM! BUM milhares de vezes. Vejo Lucas andar para frente, ele vai se machucar, só assim a compreensão de que o dito cujo corre um risco me faz focar nele e não no perigo real que está perto e tão pouco no som estridente que faz nossa cabeça vibrar a ponto de querer ser arrancada por nossas próprias garras; tudo isso fica em segundo plano, disparo e salto sobre Lucas, paro na sua frente e lhe acerto, com as costas do braço, a barriga fazendo ele voar uns centímetros. Paro onde ele iria pisar e algo duro se fecha em torno da minha pata esquerda, quebrando alguns ossos. A lata cai próxima a mim e eu solto um ganido. É uma armadilha posta pra pegar algo maior, urso talvez — mas por essas bandas não há ursos. Algo brilhoso me faz querer fugir e nos faz perder as forças.

"Essa lata está nos deixando desorientados" reclama a fera. Olhar pro prateado é tanto pior quanto ouvir o som dos metais se chocando. Tudo ao nosso redor é distorcido e parece pender de um lado pro outro.

"Eu sei... Ai", a dor na perna se intensifica, mas não podemos fazer nada e nem dá tempo para fazer porque assim que Lucas atinge o chão onde o lancei, o mesmo sobe uns 5 metros e fica lá, me olhando apreensivo.

*

Entro numa pequena clareira com as árvores ao redor criando uma espécie de círculo e vou andando em linha reta até um ponto em que a luz do luar se torna escassa o suficiente para eu ligar a lanterna. Ao ligar, a luz foca em uma mancha de sangue num tronco ao meu lado... Me aproximo para verificar desviando assim da minha trajetória reta. E então vejo um dedo humano. Sem pensar, pego a lata e uivo baixinho. Petros me dissera uma vez que a audição da fera era 100 vezes mais aguçada que a dos humanos ou qualquer outro animal. Recuo uns passos e sinto um arrepio no meu lado o que me fez parar o passo no momento que ao longe, muito mesmo, algo lampeja, duas bolotas amarelas com fendas vermelhas no meio se aproximam, mais e mais até eu ter certeza que é a fera vindo em minha direção. E então ela para, olha pra um lado e rosna feroz, sei que ela quer atacar algum humano. Com firmeza, ando em direção a ela e balanço a lata freneticamente. Tenho a atenção do bicho que solta um ganido baixo, mas ao contrário de se retrair, ela salta e pousa na minha frente. E então me acerta na barriga e eu sou lançando para longe deixando assim a lata cair. Ao atingir o solo, olho pras copas das árvores e vejo a lua brilhar majestosa, ouço um estalo metálico e outro ganido da fera, mas dessa vez é de dor.

Quando raciocino o suficiente para querer levantar, sou sugado para cima e algo vindo de todos os lados me prende. Primeiro a desorientação na gravidade, o vento vindo de cima para baixo e logo depois a pressão me fazendo ficar encolhido. Estou prensado. Preso. Há uns 3 metros de altura. Por conta da pancada no peito e a confusão instaurada devido aos eventos estarem indo rápido demais, demoro a entender que caí numa armadilha. É uma rede para capturar animais, eu estou numa armadilha encolhido, e com a floresta balançando abaixo de mim.

*

Tudo ao nosso redor é caos, o brilho da lata é estonteante a ponto de fazer com que quase cegue os nossos olhos. A dor no nosso calcanhar esquerdo é atroz e soltamos um ganido baixinho de dor. É uma armadilha, caímos numa armadilha, eu deixei que a gente caísse.

"Isso mesmo, espertalhão", resmunga a fera.

"Lucas iria se machucar", me defendo.

"Não ia não. A sorte dele sempre o ajuda. Pelo visto ele tomou a nossa", rosna seca.

— Pe-pe-tros — ouvimos a voz de Lucas vir do alto. Ele está numa rede para pegar animais, noto que há uma luz brilhando num ponto exato da corda, ao alto, logo acima de Lucas, parece um dispositivo que pisca de forma calma. Em meio a tudo distorcido, como se estivéssemos em alto mar no meio de uma tempestade, foco a visão no rosto do meu amado.

"Temos que tirar ele daí", digo urgente.

"Errado, temos que nos tirar daqui", corrige a fera.

Mas quando olhamos para a boca de lobo fechada em torno da nossa perna, tudo fica complexo. É simples, abrir a boca de lobo com as garras e nos soltar. Porém ao olhar praquele instrumento proibido na caça estadual, ela se torna algo que vai além da minha compreensão. Se torna a máquina mais intrigante para nós, além de proporcionar uma terrível dor. Não sabemos abrir, não sabemos o que é abrir. Eu não sei abrir. A fera não sabe.

"O quê é isso? Por quê não consigo pensar direito", indago desesperado.

"Estamos em perigo. Estamos machucados. Os instintos estão mais altos que a razão. Somos feras. Somos animais. Não sabemos nada sobre abrir ou fechar", retruca a fera.

"Eu sei ab... Abri... rr", não consigo completar. Não consigo terminar o pensamento sem que esse se torne uma integral a ser resolvida por alguém que cursa o berçário.

"É nosso ser querendo apenas se livrar da armadilha. Só que sem saber como", grune a fera. "E a droga dessa lata está nos deixando nauseados e sem forças".

Não dá de nos salvar. E, ao olhar para a lata novamente, um nausente uivo sai da nossa garganta quase que automático e então tombamos.

*

Ouço abaixo de mim a fera gemer em dor e ganir ao olhar algo no chão que não consigo ver por conta da distância e da pouca luz, a lanterna caiu em algum ponto quando fui lançado para longe, o que me impede de entender o que se passa. Mas ela não se move, está no mesmo lugar. O que há? Por que me atacou? Por alguma magia, a lua parece iluminar mais a clareira e eu consigo ter um vislumbre do que se passa; a fera parece está presa em alguma coisa no chão. Oh, ela me salvou de ser preso em alguma espécie de armadilha. Mas então o que a impede de se soltar? Vejo ela olhar pra algo no chão e então noto que a lata a está deixando nauseada. Droga!

Percebo uma coisa: estamos presos. E se há armadilhas aqui, com certeza haverá caçadores em breve para ver qual presa fora capturada. Tento me mover na rede a qual estou preso mas não consigo de forma satisfatória. Como irei me soltar? Não tenho faca alguma para cortar nada, ou um objeto que proporcione uma fuga daquela arapuca. Ouço mais um ganido vindo de baixo e sei que isso é um choramingo.

— Pe-pe-tros — o chamo mais como se me lamentasse.

Como pude ser tão tapado? Me pus em perigo e agora a fera e meu namorado correm perigo. Bom, talvez sim ou não, ou quem estará em perigo será a pessoa que virá checar as armadilhas. Contudo estamos em alerta vermelho, ameaçados à sermos expostos, uma foto e tudo estará acabado — adeus nossa casa, adeus nossa clandestinidade. Eu teria que agir. Sinto o relógio de prata no pulso, tiro ele e quebro sua pulseira, talvez eu o friccionando nas cordas da rede a mesma se rasgue.

Só que levo um susto quando um uivo sofrido enche toda a floresta e o relógio escorrega entre meus dedos e cai no chão. Olho assustado para a fera e vejo ela tombar. O desespero toma conta de mim. A lata! A droga da lata. A prata o deixa desorientado, o deixa ruim. "Parece que sou envenenado pelos olhos", disse ele uma vez.

Tenho que nos salvar. O irônico de tudo é eu, um mero humano, ter que salvar um monstro quase indestrutível que está frágil a um objeto pequeno e inofensivo. E então, ao longe, ouço vozes e um brilho de lanterna... Não, espere, são lanternas. Umas 4. Ouço uma gargalhada alta acompanhada de mais outras e sei que são os caçadores. Meu coração acelera mais em pânico e sei que tudo estará perdido em menos de 2 minutos. Estou preso numa armadilha tola de caça e... Espere. Os animais predominantes dessa região são corças, coelhos, alguns poucos javalis. Essa armadilha é pra alguma corça que pesa pouco menos que eu. Preso desajeitado na rede eu tento me balançar, tento apoiar os pés nas extremidades afim de levantar minha cintura e depois soltar ela ao fundo para que isso cause um desgaste na corda ou no galho que a mesma está amarrada. Ouço um estalo de madeira e isso é bom. Faço mais duas vezes. Que minha sorte me livre daquela situação.

Estou a três metros de distância do solo, e irei cair de costas só penso nisso quando algum galho estala anunciando que quebrou e quando sinto a gravidade reivindicar meu corpo. O ar me deixa quando toco o solo em um baque surdo e dolorido. Quebrei alguma costela, isso é claro. O ar dessa vez me deixa por completo e sinto minha visão escurecer um pouco. É difícil respirar. É atroz respirar. Ouço as vozes vindo, eles estão perto. Não consigo me mover, não consigo recuperar o funcionamento natural dos meus pulmões. Estou preso no chão. Vão nos pegar.

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