Capítulo 10 - Sonhando com carneirinhos

Após uma longa conversa dos meus pais com os pais de Sofia, eles concordaram em não prestar queixa. Sofia apagou o vídeo de seu celular, e meus pais tiveram que pagar para que eles deixassem o assunto de lado. Não foi tão difícil convencê-los, aparentemente, aquela não era a primeira vez que Sofia era agredida.

Não consigo imaginar o porquê.

Enquanto eu ouvia a conversa pelo outro lado da porta, Henrique veio até mim com uma sacola da farmácia.

— Seu cotovelo ainda está sangrando. — Ele aponta para meu braço e fico chocada ao ver a quantidade de sangue que escorre. — Deu sorte, não vai precisar de pontos, mas com certeza vai precisar de um curativo. — Henrique levanta a sacola da farmácia e Driquinha, que está há alguns metros de distância, faz corações no ar.

— Você sabe fazer curativos? — Ele abre um sorriso irresistível e eu quase caio para trás.

— Sei mais coisas do que você imagina. — Decido por não respondê-lo, constrangida demais para falar mais alguma coisa.

O levo para os fundos da lanchonete e sinto uma brisa fria característica da praia ricochetear meus cabelos levemente. Me sento em cima de uma cadeira velha e estendo o braço para ele. Tenho medo de que note como estou trêmula e nervosa, mas ao menos posso fingir que a tremedeira ainda é causada pela briga com Sofia.

Observo os produtos que Henrique tira da sacola com atenção, surpresa por ele ter se preocupado comigo ao ponto de ir até a farmácia comprar todo o material necessário para realizar um curativo em meu braço.

Ele molha o algodão com cuidado em Polvidine e passa em todo o local machucado. Sinto uma leve ardência, mas tudo muito suportável.

Noto que as mãos de Henrique são leves em meu braço, e eu gosto disso. Demonstra que ele é cuidadoso, e seu toque em minha pele é mais reconfortante do que gosto de admitir.

— Você não precisava ter feito isso. — digo, soando mais idiota do que pretendia. — Quero dizer, nem machucou tanto assim.

— Tem certeza? Seu braço está todo cortado. — Ele vira meu braço e me mostra outros cortes que eu ainda não tinha visto. Os sinto arder na mesma hora.

— Puxa vida. Obrigada. — Sinto meu rosto corar e tento não encarar Henrique, que permanece concentrado na tarefa de desinfetar os meus cortes. Lembro-me de que o beijei na outra noite, e sinto medo de que ele toque no assunto de forma embaraçosa e constrangedora.

— Como estão seus pais? — Me arrependo no instante em que a pergunta sai dos meus lábios, pois o fato de perguntar isso remete a lembrança do momento em que o beijei.

— Não sei, não tenho falado direito com eles desde que descobri que estão separados. Acho que devem estar bem. — Ele respira fundo. — Sei que preciso respeitar a decisão deles, mas ainda estou absorvendo o fato de que o casamento acabou. Sabe, para quem cresceu amando a relação dos pais, é meio difícil conceber o fato de que eles realmente vão se separar.

— Acho que te entendo. Não sei o que eu faria se meus pais se divorciassem. — Faço uma pausa ao notar que Henrique permanece alisando meu braço com o algodão. — Mas as coisas vão se ajeitar, você vai ver.

Henrique me encara nos olhos e apesar do meu constrangimento, não consigo deixar de retribuir seu olhar. Ele abre a boca e eu fico com medo do que ele pretende dizer, mas minha mãe escolhe aquele momento para aparecer e estragar todo o clima.

— Julia, até que enfim eu te encontrei! A Sofia e a mãe foram embora agora. — O semblante bravo se desfaz ao ver Henrique cuidando de mim. — Nossa, que atencioso! — Mamãe poderia flutuar a qualquer momento ao olhar para nós dois. Acho que ela shippa demais a gente. — Terminem aí, depois eu falo com você. — Ela sai me dando uma piscadela maliciosa que me faz corar ainda mais de vergonha.

— O que você ia me dizer?

— Ah, já esqueci. — Sinto que ele não tinha esquecido coisa nenhuma, mas também não quero insistir no assunto. — Eu tenho que ir, preciso planejar uma apresentação de projeto para um cliente que vou encontrar amanhã.

— Ta bom, obrigada pelos curativos.

Henrique joga fora os algodões utilizados no lixo e sai correndo como o diabo fugindo da cruz.

Fico sem entender, mas não questiono.

Talvez Henrique seja tão tímido quanto eu.

Ou só não goste de mim da mesma maneira.

[...]

A ansiedade que está em meu corpo pré-anuncia a chegada do dia do sarau de dança. Essa é a minha última semana de preparativos e ensaios, o que me faz sentir um nervosismo e uma ansiedade descomunal.

Me concentro em ensaios, figurinos e em absorver todo o conhecimento do meu professor durante as aulas. Ele é uma pessoa incrível e muito generosa, que está sempre nos motivando a dar o nosso melhor.

Tenho pesquisado faculdades de dança para me inscrever, e trabalhado bastante na lanchonete e empurrando com a barriga a faculdade de Administração. O meu respirar está sempre nos movimentos que eu faço quando estou dançando, pois dançar é terapêutico e me ajuda a me acalmar.

Durante os dias que se passaram, foi fácil não pensar muito em Henrique. Usei toda a minha força mental para impedi-lo de se infiltrar na minha mente. Porém, toda a vez que eu me via sozinha em meus pensamentos ou deitada para dormir, seu rosto me vinha a mente.

Ele nunca foi de postar muito, então eu ficava ávida por migalhas de atualização de sua vida e as vezes eu tinha a sorte de ser agraciada com algum storie seu. Henrique sempre foi mais discreto, mas gostava de postar coisas relacionadas ao seu trabalho ou aos seus infinitos hobbys que se resumiam a jogar videogame, ouvir músicas, ir para a praia, acampar e fazer trilhas.

Fiquei na expectativa esperando que ele aparecesse na lanchonete ou na Motirô, mas ele não deu as caras. Também desejei que ele me chamasse para alguma tarefa idiota, no entanto, seu silêncio era tão palpável quanto a sua rejeição, e desde então eu venho tentando me convencer de que era melhor assim.

Eu sei que me enganei a respeito de Henrique, mas isso não quer dizer que temos que ficar juntos, e tampouco que ele sinta algo por mim. Eu também não sei direito o que sentir, apesar de saber que eu sinto alguma coisa.

Talvez eu goste do Henrique mais do que um dia achei que iria gostar, mas isso não quer dizer que eu vá ser correspondida, então, coloquei na minha cabeça de que Henrique está no mesmo patamar que os galãs dos livros que eu leio: inalcançáveis e irresistíveis.

Utópicos.

Solto um gemido de frustração e me jogo na cama.

Mamãe bate na porta do quarto e a abre sem esperar que eu permita sua entrada, e isso me irrita.

— Sua prima Patrícia está vindo passar alguns dias aqui em casa. — Mamãe anuncia, com um sorriso empolgado. Meu mau humor aumenta.

Patrícia e eu sempre tivemos as nossas desavenças. Desde pequenas, somos competitivas uma com a outra. Nos gabamos de quem tem o melhor estilo, os melhores amigos, quem tem se dado melhor na vida e etc. Nós nunca nos demos bem, mas meus pais acham que nós somos unha e carne.

— Mas porquê? — indago sem me importar em disfarçar o meu desânimo e insatisfação.

Minha mãe franze a testa, confusa.

— Achei que você ficaria feliz em ver a sua prima.

— Pois achou errado. — digo, me sentando na cama, sentindo-me agitada com tanta informação.

— Vocês sempre foram muito amigas.

— Só na sua cabeça e na do papai. A gente não se suporta. Nem sei o que ela está vindo fazer aqui, nem de férias estamos.

Patrícia sempre se lembra de que precisa vir para Itaipuaçu me infernizar pelo menos uma vez ao ano. Ela está concluindo o quinto período de Administração e não se cansa de me encher a paciência ao se gabar de sua incrível faculdade.

Ela mora em Realengo, na zona oeste do Rio de Janeiro, bem longe daqui. E mesmo com todos os seus afazeres, nem mesmo duas horas de distância são capazes de afasta-la de mim.

Para piorar, Patrícia também dança. E muito! Ela faz aulas de ballet desde pequena, e faz questão de jogar na minha cara que a perna dela sobe até a cabeça e que ela sabe dar mais piruetas do que sou capaz de contar.

Tenho certeza de que Patrícia só dança até hoje para fazer questão de esfregar na minha cara de que é muito melhor do que eu. Sei que as pessoas podem ter gostos e hobbys parecidos, mas Patrícia sempre reclamou das aulas de ballet para mim até ela descobrir o quanto eu gostava de dançar. Quando ela soube que eu estava no contemporâneo também, fez questão de frisar que já tinha feito algumas aulas e que a professora elogiava o modo como ela dançava. Um horror!

— A faculdade dela é online e ela está de férias no estágio. — Minha mãe me lança um olhar cheio de censura. — De qualquer forma, espero que você a trate bem, não quero ouvir reclamações da sua tia sobre o modo como tratamos os hóspedes nessa casa.

— Que ótimo! — reviro os olhos, irritada.

Ter que aturar Patrícia iria sugar toda a energia mental que eu tinha.

— A mãe dela disse que Patrícia está se dando super bem no estágio e que as chances de que ela seja efetivada são enormes.

Só porque a vida acadêmica de Patrícia é mais definida do que a minha, não quer dizer que eu não vá ser bem sucedida também. Cada um tem seu tempo, esse é o dela, amanhã pode ser o meu tempo e assim por diante.

— Bom para ela.

— Patrícia chega no domingo pela manhã. Pedi para que viesse para o sarau, mas ela já tem um compromisso. — Ainda bem. Imagina ter que aturar Patrícia me secando no palco. A energia dela ia contaminar tudo e eu ia acabar caindo.

— Poxa, que pena. — debocho, aliviada por saber que Patrícia tem um compromisso que não seja me sabotar. — Quando que Patrícia vai embora?

Mamãe faz cara feia para mim.

— No dia que ela quiser ir. Eu quero que ela seja muito bem tratada aqui. Estamos entendidas?

— Claro. — Faço a minha melhor expressão angelical.

— Acho bom. Vê se dorme, seu grande dia está chegando. — Ela fecha a porta e eu me jogo mais uma vez na cama, mas o sono não vem.

Os pensamentos estão embaralhados em minha mente, e a ansiedade começa a dominar meus sentidos. A vinda de minha prima, a data do sarau se aproximando e meus sentimentos por Henrique se misturando cada vez na minha mente.

Cerro os olhos, conto carneirinhos, e acabo sonhando com Henrique e minha prima em forma de carneiros correndo atrás de mim.

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