CAPÍTULO 50 - SHAITAINI


                 CAPÍTULO 50

SHAITAINI

Fiquei ao seu lado até ele fechar seu machucado por completo. Tinha ficado muito bom para o estado que ele se encontrava. Eu jurava que ele ia precisar de uma plástica, mas não. Tinha ficado muito bom.

- Não mereço uma salva de palmas pela obra de arte? – perguntou ele se curvando para que eu pudesse ver melhor o curativo.

- Foi um excelente trabalho, senhor! – ironizei, me levantando e aplaudindo-o.

- Toma aqui seu presente – disse ele pegando seu dente e me entregando.

Depois ele tomou seu banho, comeu e foi "trabalhar". Todos, sem excessão, estavam tensos com a situação. O Arthur tratou logo de acertar o pagamento da chácara e decidiu ir com os meninos até a cidade tentar vender, a qualquer preço, o restante das carnes, pães e resto de comilança. Já que ainda faltavam 03 dias pra acabar o Carnaval. Já eu, não parava de pensar naquele homem que saira do sitio, dirigindo um BMW. Seria hoje a noite, o desfecho de tudo o que criei. Eu sentia meu coração acelerado e frio no estômago. Faltavam 06 horas para saber o que o Soares tinha dizer sobre o cara que fui apaixonado por 11 anos. O jeito, era ficar quieto, deitado, porque a noite vai render.

- Tá doendo? – perguntou o Bruno se deitando ao meu lado na cama.

- Só quando eu respiro!

Ele soltou sua risada gostosa.

- Alan Bortolozzo, você é o cara mais pacato que eu conheço, porém, é o cara que mais se ferra na vida. Desculpe, por favor, não se ofenda.

- Jamais!

- Gosto muito de você, muito mesmo, mas a impressão que você me passa, é de ser uma pessoa que não está feliz. Mesmo quando você estava com o Murilo, eu não via felicidade irradiando de você.

- Eu vivi meus vinte e poucos anos amando um pessoa que não me ama. Depositei minha felicidade no Biesso e sei que nunca vou tê-lo.

- Eu sei disso! Sei como você é apegado a ele. Como vocês construíram uma história juntos.

- E não serve pra nada!

- Nada? Tá louco? Porque vocês dois nunca se beijaram, não significa que não relacionaram. Relacionaram e muito. Muito mais que qualquer casal. Um beijo seria a cerejinha de todo esse seu sonho, mas não compensou nada? Reveja bem seu conceito e valoriza aquele homem que ficou com você todos esses anos. É muito mais que muitos namoros por ai.

Apenas consegui dar um sorriso frouxo.

- Descansa Bortolozzo. Você tá todo fodido- disse ele esticando as pernas para cima - Pode descansar. Vou ficar aqui com você. Vigiando!

- Obrigado pelo "todo fodido"!

Eu jurava por tudo que jamais pegaria no sono, mas, fui acordado com o Burro me chacoalhando. Mal dei a primeira respirada e senti todos os cortes dilacerando minha carne.

- O que houve? – perguntei enquanto esfregava os olhos na tentativa deles focarem o Burro.

- Preciso que vire e bunda pra mim – pediu ele com uma seringa na mão.

- O que ser isso?

- Remédio de dor e anti-inflamatório. Você vai viajar sentado, coisa que eu não queria.

- Burro, nós vamos, mesmo que eu tenha que sentar no gelo.

Entramos no carro e saímos rumo a Ribeirão Preto. Uma hora ou 90 kilômetros nos separavam da verdade. Mesmo colocando e cantando todas as minhas músicas favoritas, meu estômago estava fundo e meu coração estava apertado. O que dificultava até para respirar. O Burro, ao que me parecia, ele estava muito feliz. Ele não parava de falar um minuto se quer. Lembrava-me até o Burro do filme Shrek quando viajava pra "Tão Tão Distante!".

- Eu não pareço o Burro do Shrek! – disse ele rindo.

- Só está falando perguntar "se estamos chegando?" – disse, fazendo-o gargalhar e me dar um empurrão.

- Para Alan! – disse ele me dando um soco na perna boa– você está sob efeito de medicamentos hoje, sabia? – continuando a gargalhar.

- Por quê?

- Porque, se eu fico calado, você me torra a minha paciência até eu dizer o motivo do meu silêncio. Agora, se eu estou falante, você me chama de Burro do Shrek? É pra acabar, né? – disse ele rindo.

- É que fazia muito tempo que eu não saia contigo. Acho que não lembrava o tanto que você era chato! – disse fazendo o dar uma gargalhada gostosa.

Realmente fazia muito tempo que eu não passeava de carro pelas estradas. Tanto que eu nem lembrava mais como era agradável ter sua presença ao meu lado. O bom de tê-lo como meu amigo, era que éramos idênticos nos nossos gostos. Talvez, agora, o Bruno tivesse razão, não é porque não o beijo na boca que nós não relacionamos. Tudo, exatamente, tudo o que dizíamos, era assunto do meu interesse. Isso incluía: passeios, restaurantes, comidas, baladas, bebidas, pessoas, lugares, filmes, cinemas, praias, viagens, musicas, etc. Nem com o próprio Arthur eu tinha tantas coisas em comum. Esse lance de "Os opostos se atrai", para eu, era uma teoria "furada". Sim, admito agora que nossa amizade é muito similar a um bom relacionamento de grandes companheiros.

Outra teoria que eu achava "furada" era de "Ninguém muda por alguém!". Isso eu comprovei ser um dos ditados mais mentirosos que existiam. Pelo menos no meu caso não era uma verdade. Lembro quando eu conheci o Burro há anos atrás, de como ele era caipira, xucro, que não sabia atender um telefone, que nunca tinha lido um livro na sua vida, um verdadeiro "burro". Foi então que eu surgi na sua vida, o ensinando tudo o que poderia ser ensinado sobre a vida na cidade. E olha só como ele está hoje, completamente mudado. Bonito, falava bem, tem um bom emprego, português impecável, fluente em inglês (sem nunca ter entrado em um curso de inglês. Ou seja, aprendera apenas ouvindo músicas e assistindo a filmes), sem falar que era um verdadeiro gentleman. Sim, ele era o meu companheiro e isso me enchia de alegria.

- Alan, sabia que você me assusta quando fica em silêncio? – disse ele me dando um soquinho na perna e me tirando do tranze.

- Apenas estou lembrando a nossa juventude – disse arrancando aquele sorriso de lado que tanto me fascinava.

Ficamos papeando por um bom tempo sobre nossas vidas. De alguma forma - que eu não sabia o que era - ele estava feliz. Se eu pudesse, leria sua mente e tentava descobrir o que se passava naquela cabecinha risonha. Acho que era uma mistura da minha presença, com o sabor de vingança ao mostrar o verdadeiro Murilo. E esse novo Burro, estava me dando um pouco de medo, se é que eu posso dizer assim. O Murilo, até onde eu sei, não tem limites. E mexer em algo que ele estava escondendo de mim, com certeza, se ele soubesse, o faria ficar furioso.

"Será que é só eu quem está com o coração na boca?" – pensei.

Passamos o Hospital das Clínicas que ficava na entrada da cidade e, pouco depois, entramos em Ribeirão Preto.

- O que faremos? – perguntei ansiosamente.

Meu coração já batia dentro da boca, mesmo sem saber o que viria pela frente. Sem falar que eu não parava de olhar para os lados, com medo de me deparar com o Murilo.

- Não se preocupe. Essa cidade tem mais de meio milhão de habitantes – disse ele ao perceber meu nervosismo.

- Não é fácil! Mas, diga-me, onde vamos?

Ele fitou as ruas da cidade por um tempo e depois me olhou.

- Vamos até a delegacia – disse ele dando um sorriso – acho que é um bom começo para quem procura algo.

- Posso te fazer uma pergunta?

- Lógico!

- Por que tu está rindo?

- Porque não quero desistir, dessa vez! – disse ele dando um sorriso confortante – sempre parei na metade do caminho quando queria lhe mostrar algo.

Era um sorriso tão calmo, como aqueles sorrisos que nossas avós nos dão.

"Como esse carinha poderia me transmitir tanta coisa boa, num dia tão turbulento quanto esse?"

- Sei que isso está te machucando e sei que vai machucar ainda mais. Por isso do sorriso. Um conforto.

- Agora você está lendo meus pensamentos? – perguntei a ele, fazendo-o soltar o sorriso gostoso.

- Já te disse que conheço cada milímetro do seu corpo? – perguntou freando o carro num semáforo.

- Já sim! – disse sem graça, olhando para meus joelhos que estavam balançando freneticamente.

- Então está respondido! – disse ele sorrindo e acelerando o carro após o sinal abrir.

Era difícil saber que aquele homem, que sabia tudo da minha vida, e mais, sabia de cada emoção que eu demonstrasse, fosse apenas meu amigo. Era injusto. Contentei apenas com aquele sorriso e, minutos depois, paramos em frente à delegacia. Era uma casa bem velha, com portão cinza na frente. A entrada da delegacia ficava ao fundo. Ele perguntou por várias vezes sobre se eu sentia dores, mas eu estava anestesiado, então continuávamos.

- Está pronto Alan? – perguntou ele colocando sua mão sobre minha coxa.

- Você sabe que, mesmo querendo saber da verdade, eu tenho um carinho imenso pelo Murilo, não sabe? – perguntei sentindo o coração pulsando forte contra meu peito – então, por mim, vá com calma.

Ele apenas levantou a sobrancelha frustrado. Mesmo ele sabendo da minha pessoa, da minha vida, ele tinha que ter noção de tudo o que o Murilo representava para mim.

- É exatamente esse o motivo para eu estar aqui – disse ele sério.

- Não entendi?

- Por saber que tu o ama. Assim, o seu tombo será gigantesco.

Engoli seco ao imaginar o tamanho da decepção, sendo lá o que for.

- E somente alguém a altura dele seria capaz de te segurar.

Fora, sem dúvidas, uma das mais belas declarações de amor que eu havia recebido na vida. Independente se veio de um amigo ou não. Aquelas palavras me fizeram sentir mais forte, corajoso e com vontade de saber da verdade. Era agora. Saímos do carro e entramos por um corredor estreito até chegar à delegacia que ficava aos fundos. Entramos e ficamos na fila de espera.

- É melhor sentarmos. Ainda mais você – disse o Burro, apontando os bancos de plástico que tinha na delegacia.

- Acredito que sim! Meu irmão chega em meia hora. Disse ele que teve outra idiea.

Fazia um calor muito forte. Mesmo com três ventiladores de teto, não davam conta do ambiente e do tanto de gente que tinha lá dentro. Por sorte, o tenente Soares,

- Tenente Soares? – chamei fazendo-o franzir a testa.

- Sim? – respondeu ele cerrando os olhos.

"Acredito que estava tentando lembrar de mim."

Ele nos cumprimentou com aquele mesmo olhar de duvida, talvez por não conhecer o Burro. Será que estava tentando lembrar quem eu era ou estava com aquela cara de "meu turno tá cheio"? Estava muito cheio e muito quente lá dentro, sem falar que não queria o pessoal ouvindo minha conversa. Ele saiu na frente e o seguimos até debaixo de uma árvore que ficava na mesma rua. Eu estava tenso e ver aquela cara de "zero amigos" do tenente, me deixava ainda pior.

- Queria saber umas informações sobre o Murilo?

- E, porque não esperou-me no posto de combustível!

- Apenas pelo fato de te facilitar.

- Me facilitaria ficar longe da delegacia. Não falamos mais de Murilo. A partir de agora, pode chama-lo de Shaitaini! Da mesma forma que tens amizade com o Murilo, eu também tenho! Não acho de boa índole vir saber da vida de um "amigo" pelas costas.

Senti uma pontada no estômago.

- O problema é que ele não é "apenas" meu amigo, senhor! – disse com a voz firme.

- Não precisa fazer isso Alan! – disse o Burro colocando a mão no meu ombro – Podemos ir a outro lugar.

O tenente apenas observava com aquele olhar de curioso.

- Preciso sim! – disse chegando mais perto do tenente – Senhor, ele é meu companheiro também! – disse

- Eu sei! – disse ele quase que imediatamente – Como eu te disse Bortolozzo, ele é meu amigo!

- Entendo! – disse soltando o ar – Então, o senhor pode me ajudar?

- Vá pro posto, apareço lá logo.

Paramos no posto e ficamos ouvindo as nossas músicas. Ele estava muito feliz. Tudo aqui deveria ser bem prazeroso a ele, mas, o que ele não sabia, era que eu estava – sem saber por que – triste. Ao fundo, sentado sozinho numa mesa, vejo um rosto de "esperança".

- Vem, acho que a sorte está ao nosso lado – disse saindo de cima do capô e puxando o Burro pelo braço.

Corremos até a mesa onde o rapaz ainda não tinha nos visto. Era o tenente Guazira que estava bebendo.

- Alan, você tá louco? Ele é amigão do Murilo.

- Sim, mas o que eu quero dele, é apenas a verdade. Simples. Dizemos que viemos buscar mais coisas pro churrasco e fazemos as perguntas.

- E como é que você sabe que ele vai te ajudar? Sem falar que o Soares já está chegando.

- Porque eu e ele somos confidentes de drogas. Usamos juntos. Sei como falar com ele. Ele, meio que vai falar comigo, algo dentro de mim disse que... sei lá, após eu fazer essa merda com drogas, sinto que fiquei meio que confidente, sei lá como explicar.

O Burro olhou pra mim com aquela cara de "Sabe falar?". Mas, depois de coçar muito sua nuca, confiou em mim e seguia ao meu lado até chegarmos a mesa que o policial estava.

- Tudo bem, tenente? – disse assustando o rapaz!

Ele me olhou com o mesmo ar de dúvida do tenente Soares, mas, segundos depois, ele me abriu um sorriso.

- Fala Bortolozzo e... amigo do Bortolozzo! Dessa vez sem simulação de brigas, por favor – disse ele se levantando e cumprimentando a gente - Está a passeio pela cidade? – perguntou ele se sentando novamente – pode sentar rapazes, eu estou sozinho.

Mais que depressa puxamos as cadeiras e sentamos perto dele. Antes mesmo de continuar, o carro que tinha meu irmão e os gêmeos estava entrando no pátio de abastecimento. Os três rapazes desceram, colocaram uma camiseta e fingiram estar nos encontrando em um de nossos passeios. Foi então que entraram na conveniência e compraram bebidas para todos na mesa, para continuar no clima de todos amigos.

- Belos cortes Bortolozzo! – disse o policial dando um longo gole na cerveja que meu irmão comprara.

Ficamos papeando sobre o nosso carnaval, até o silêncio predominar o lugar.

- Esse "01 minuto de silêncio" é pra quem? – perguntou o policial gargalhando.

- Guazira, preciso saber algo sobre o Murilo – eu disse na cara dura.

Dessa vez, prontifiquei a falar.

- Não diga que aquele tonto aprontou de novo? – disse ele dando uma gargalhada – Ele é um encrenqueiro mesmo!

- Não, não aprontou nada. Ele está ótimo!

- Que bom! Porque tratando de Murilo, sempre tem alguma coisa interessante por trás - disse ele dando um longo gole de cerveja – e... também não quero que você venha dizer nada daquilo que "gostamos"?

- Quero saber sobre o Shaitaini? – disse arrancando outro sorriso do tenente.

- Meu Deus, Bortolozzo! Olha só, que conversa "quente"? – disse ele com sorriso de lado.

- Como assim? – perguntou meu irmão, pois não entendia nada.

- Sabe o que significa a palavra Shaitaini? – perguntou ele com sotaque inglês.

- Não! – respondeu eu e os demais.

- E sobre os Leões de Tsavo? – perguntou ele abrindo um sorriso imenso – Acho que é esse o nome deles por aqui?

- Não! – respondi dando de ombros.

- Como assim, NÃO? – perguntou o Guazira, espantado – eles estão fazendo festa aqui no interior de Sampa.

- Nossa pessoal, a história sobre os Leões de Tsavo é tão famosa quanto o Titanic – disse o Burro com ar de deboche.

- Não sabendo, gente! – disse impacientemente – E estou pouco me importando em saber sobre Leões.

- Sem problemas Bortolozzo. Não é todos que sabem mexer no Google! – disse ele debochando.

- Sou um Bortolozzo também e pouco sei sobre esses leões.

- Pra entender sobre o Leões do Interior, precisam entender sobro os Shaitaini – completou o Guazira e levantou sua cerveja, indicando que era pra nós "encher o tanque" dele.

Mais uma vez os gêmeos, como estavam sobrando na roda, foram até lá pagar outra rodada pra nós. O Breno tentou até fazer uma piada com uma meninas que chegaram, mas o clima tenso estava dominando a mesa.

- Preciso dar uma aula de história pro rapaz aqui.

- Nossa, hoje o pessoal me pegou pra "Cristo" – disse me levantando da cadeira.

- Não garoto, sente-se ai. Esse assunto é fácil de resolver – disse ele dando um outro gole na cerveja.

- Que bom!

- Havia uma construção de uma ferrovia, no Quênia, no final do século XIX. Onde centenas de homens trabalhavam lá, todos os dias. Misteriosamente, os homens começaram a desaparecer e, depois, descobriram que seus homens estavam sendo devorados, por uma gigante leoa. Não uma leoa qualquer, era uma leoa gigante. Fora dos padrões. Um dos engenheiros que estavam construindo a ponte, que também era coronel, descobriu dias mais tarde, que não era apenas uma leoa, e sim, duas leoas que atacavam em conjunto.

O Burro apenas o fitava com os olhos apertados. Se aquela história fosse real ou não, o tenente Guazira, narrava de um jeito que me deixava nervoso.

- E com o passar dos dias, mais homens iam morrendo e mais medo o povo tinha. Outro mistério que muitos não entendiam, é que depois de um tempo, o coronel descobrira que as, então, leoas, na verdade, eram Leões.

Eu tentava formular na minha cabeça a imagem desses leões, mas estava difícil.

- De uma natureza muito rara, esses leões não tinham jubas. Pareciam dois tigres imensos, mas sem as listras. O comportamento de caça desses leões não condizia com os padrões "normais" da espécie. Leões machos, geralmente, não caçam. Esse é o papel das fêmeas. E, as raras vezes que machos caçam, nunca agem em dupla.

"Sentia um certo arrepio na espinha em saber o que estava por vir".

- Sem falar que os leões estavam articulando seus ataques. Durante a madrugada, um dos leões entrava nas tendas e acabava assustando os homens e, quando menos se esperava, o outro leão - que você nem o tinha visto - aparecia e te capturava os homens que fugiam desesperados pelo amapamento.

- Caralho! – disse espantado.

- E o ultimo detalhe sobre o comportamento anormal desses leões, eles comiam suas prezas, vivas, começando pelos pés. Ou seja, eles gostavam de ver suas vítimas agonizando. Por causa dessa natureza tão anormal e hostil, é que os nativos os batizaram com o nome de Shaitaini, ou, Demônios da Noite, ou, se você preferir, A Sombra e a Escuridão.

- Nossa! Isso existiu de verdade? – perguntei engolindo seco.

- Não só existiu como é um fato registrado em livros, fotos em museus, senhor Bortolozzo! – disse ele "matando" o ultimo gole de cerveja – 140 foram mortes pelos Shaitainis.

"Sentia-me um ignorante perante essas "jogadas" de conhecimento que ele fazia."

- Os leões acabaram mortos depois de meses de caça. O Primeiro leão, levou um tiro na parte traseira, mas acabou fugindo. Mas, como o eles eram espíritos de mau encarnados, o leoao que fora alvejado voltou na noite seguinte, atrás do caçador. Assustador, não? – disse ele com sorriso malicioso.

- Bastante!

- Tem mais. Esse leão que voltou na noite seguinte para caçar o coronel, precisou levar 05 tiros para morrer e, mesmo assim, ele fugiu pela savana, sendo encontrado apenas no dia seguinte.

- Uou! – dizemos eu e o Burro ao mesmo tempo– Agora entendi porque chamam eles de "demônios".

- O segundo Leão morreu semanas depois, o mesmo precisou levar os mesmos 05 tiros no peito. Mesmo baleado, perseguiu o caçador até uma árvore e, de cima dela, ele deu mais 02 tiros em sua cabeça. Incrivelmente, o leão continuou a morder o tronco da árvore, de raiva, tentando captura-lo, mesmo após 07 tiros.

- Meu Deus! – disse completamente pasmo.

O que me deixava com mais medo sobre o apelido do Muca.

- A lendária historia do Murilo, ou, Shaitaini, ou, Escuridão, começa há 04 anos. Ele estava cansado dos casos de polícia, onde os policiais pegavam os bandidos, marginais, traficantes, etc... e, menos de algumas horas, esse bandido estavam soltos. Ele ficava puto da vida, inconformado. Foi então que ele começara a fazer justiça com as próprias mãos. Mesmo ouvindo a história que me deixava curioso, não deixava de aparecer um minha cabeça, flashbacks da primeira vez que eu vi o Guazira. Isso foi anos atrás.

"- Prazer, Tenente Guazira – disse o policial mais novo estendendo a mão para me cumprimentar – somos irmãos eu e o Garcia.

- Alan Bortolozzo – disse quase sem voz."

Uma batida forte na mesa me fez voltar à realidade.

- Mas o Murilo é da aeronáutica. O que ele tem haver com a Policia Militar? – perguntou o Burro assustado.

- Você está dizendo que aquela história de pit Boys matando mendigos, matando gays era o Murilo...

- Uns acreditam que sim, outros acreditam que não! – respondeu o Guazira passando o dedo no gargalo – uns dizem que ele é um dos leões, outros dizem que ele apenas se animou com a ideia e deu umas porradas por ai. Há coisas da vida que não precisamos ter nascido ou feito parte para nos indignarmos.

- Mesmo assim ele foi botar o bedelho num assunto que não diz respeito a ele – eu disse ainda sem entender nada.

- É por homens que botaram o bedelho onde não é chamado que o nosso país mudara tanto. Graças a esses homens que botaram bedelho onde não é chamado que somos um país livre – disse ele com raiva em sua voz.

- Há uma certa razão no que você fala tenente, mas deixemos política de lado e voltamos ao Murilo. Prometo não interferir mais – disse eu respondendo da mesma arrogância que ele falava comigo.

- O Murilo pegava esses bandidos, traficantes, assassinos, estupradores e os faziam se entregar – disse ele dando um longo suspiro.

E o que há de mal nisso? – perguntou o Bruno.

- Na maneira como ele abordava suas vitimas!

- Vitimas? – perguntou o Burro.

- A mídia deu o nome de "vitimas" para aqueles criminosos. Diziam que o Murilo era algo "maior" que eles.

- Tá, beleza! Continua, por favor! – eu disse.

Ele me olhou com cara de deboche. No mínimo, estava com vontade de me dar uma surra por estar falando com ele daquela maneira. E mais uma vez me veio um flashback daquela noite.

Não fica assim não Ursão. Os caras aqui são meus Brothers – disse ele dando um abraço no Tenente Guazira.

O Tenente Guazira era um cara alto, forte, de porte hostil. Parecia o Murilo na versão 02 metros de altura.

- Fala ai Bortolozzo, o Garcia é foda! Se ele mata o moleque, ai sim ia feder – disse ele dando um soco no ombro do Muca.

E os dois começaram a se atracar numa luta de rua. "Confesso que estava ficando com ciúmes desse agarra-agarra".

- Alan? Disse o Burro passando a mão pelos meus olhos.

- Como eu estava dizendo, a maneira com que ele fazia os "criminosos" confessarem seus crimes que era errado! Sempre acompanhado por um comparsa...

- A Sombra? – interrompeu o Burro.

- Isso mesmo – disse ele dando um sorriso - sempre acompanhado pela Sombra, a Escuridão ficava a espreita, esperando que suas vitimas aparecessem. A Sombra ia de "isca" enquanto a Escuridão – por ter inteligência e treinamento do exército – os capturavam. Após capturados, a Escuridão os torturavam até confessar. Isso tudo perante um policial ou uma câmera de vídeo normal, mesmo. E depois entregava para policia que os prendiam.

- E isso não é bom? – perguntou o meu irmão olhando pra nós.

- É ótimo! Ainda mais para mim que sou policial. Que prendo inúmeros bandidos, diariamente e, minutos depois, são soltos, podendo vir atrás de vingança. Mas ainda sim há pessoas que os protegem.

- Os Direitos Humanos? – perguntei.

- Também! Mas fiquemos apenas com o pessoal dos Direitos Humanos, por hoje – disse ele com ar de nojo.

"- Aliviar eu alivio, mas que não faça mais isso Garcia. Estou cansado de te aliviar – disse ele sério, olhando para prancheta que estava em sua mão.

- Prometo ser a ultima – disse o Murilo.

O Tenente Guazira deu uma risada de deboche. Com certeza essa não deveria ser a ultima vez que o Murilo prometera algo daquela importância.

"O que será que o Murilo aprontara na vida, para esse cara dizer que estava cansado de "Aliviá-lo"?"

Dessa vez, o som alto de uma pick-up me fizera sair de outro flashback. Com certeza o pessoal percebera que eu – por uns segundos – me ausentava daquela importante conversa. Acho até que ele estava ficando puto comigo.

- Sabe, a policia fica tão agradecida quando um cara desses é capturado, que raras vezes elas os deixa vazar pela mídia e, quando vaza alguma informação, a policia com certeza apresenta apenas a parte que lhe interessa. São pessoas que o mundo, às vezes, nem sente falta. É meio frio falar isso, mas é verdade rapazes!

- Eu imagino mesmo que seja – disse o Burro dando um sorriso de canto, talvez fosse para confortar o policial.

- Eu ainda dou meu apoio ao Murilo – disse meu irmão arrancando olhares de reprovação.

- Tudo ia muito bem, até o Murilo ou a Escuridão, começar a ter problemas com o I.T.A. Ainda não era problemas decorrentes as coisas erradas que ele fazia. Eram problemas que eram causados pela exaustão dos seus "serviços" noturnos. Porque, cada dia mais, ele se apresentava no I.T.A muito cansado, com o corpo quebrado e vários machucados. Então, infelizmente, ele apelou para algo que pode ser sido seu erro. Algo que poderia dar o ânimo que ele precisava. Ele apelara para as drogas.

- Aff, nunca o vi usando nada, muito menos que ele estivesse alterado com algo que demonstrasse o uso de drogas – disse meu irmão inconformado.

"lembrando que o Arthur era o único na mesa que não sabia que o Murilo, eu, o Breno e o Burro, haviam usado drogas na festa."

- Não acredito que ele use drogas ainda. Ele disse que seu "namorado", o inspira demais para que ele não recaia – mentiu o policial.

Agora, aos poucos, eu ia começando a me chatear com o Muca. Drogas era algo que eu não poderia conviver.

- Ao descobrir o poder que as drogas tinham...

- Pensei que fosse apenas destruição? – interrompeu o Burro.

- Sim cara! Mas a destruição acontece apenas no final de muito tempo de uso. No começo, a droga causa sensação de prazer ao extremo. Tira aquele animal feroz que vive dentro de você. Ela é capaz de tirar suas dores, seu sono, sua fome, te transformando numa máquina. E a pessoa vive somente de prazer causado por ela. É colossal o prazer que é causado no início. Te faz sentir como um Super-Homem. Ai, ao descobrir o poder da cocaína, nada mais parava a Sombra e a Escuridão. Como os leões, um a um eles iam prendendo bandidos, traficantes, ladrõezinhos baratos, policiais corruptos, tudo sem deixar rastros. Era o que mais enfurecia a policia civil.

- Mas tudo tem um rastro! – disse o Burro com os olhos fixos no tenente.

- Com certeza, senhor! – disse ele respirando fundo – Mas, se sua vida estivesse em perigo – no caso a vida dos policiais – você prenderia os "justiceiros" ou ajudaria eles no serviço?

- Entendi!

- A polícia estava do lado deles – disse ficando abismado.

Eu estava muito confuso com toda essa história. Até parece que não era o mesmo Murilo que conhecia.

- Tudo ia perfeitamente. Em um ano, os dois ajudaram a limpar 50 pessoas das ruas. Sabe o que é para nós policiais não termos mais 50 pessoas que nos odeiam passeando livremente pela cidade? É uma benção!

- Percebi que você deve dar muito trabalho para polícia – dizia fazendo balançar a cabeça positivamente – Percebi que um deles adora isso...

- Positivo! – disse imitando um policial – O Guazira era meu parceiro de rua. Nós dois sempre aprontávamos muito, até ele virar policial.

- Pelo menos um de vocês dois tinha que ser ajuizado! – disse fazendo-o soltar uma gargalhada gostosa.

- Pois é! Mas, mesmo o Guazira sendo boina, não boto minha mão no fogo por ele. Acredito que ele ainda anda fazendo justiça com as próprias mãos – disse pondo sua mão na minha coxa.

- Alan, que cara é essa? – disse o meu irmão me chacoalhando para me tirar do transe.

Meus olhos encheram d'água e me voltei para o tenente.

- Continuando... Eles estavam indo bem, até a droga começar a dominá-los. As drogas os transformavam em animais, que viviam a base de fúria, alegria, prazer, raiva, etc. Esses sentimentos deixavam o poder das drogas ainda mais forte. Aos poucos, eles começaram a fazer justiça com tudo àquilo que "eles" achavam que precisava ser punido. Eles pegavam molecada que fumava crack e os espancavam, eles pegavam homossexuais na rua e os espancavam, travestis , batedores de carteira, lésbicas, bêbados na rua e, por ultimo, talvez quando chegaram ao fundo do poço, queimavam mendigos.

- Queimavam? – perguntou todos em coro.

Senti um gosto amargo na garganta. Agora eu sentia exatamente o que as pessoas que "tentaram" me dizer, sentiam. Decepção, nojo, repugnância, com a confiança traída.

- Sim, é o que dizem. Prefiro acreditar que não, até porque nada fora provado. Mas... se for ele sim, eles as queimaram. Impressionante o que a sede por prazer das drogas não faz ao ser humano.

- Não vai me dizer que eles eram "assim" por causa das drogas? – perguntou o Burro com uma certa ironia.

- Sabia que as drogas se associam a algo do seu cotidiano? Há pessoas que a droga se associa a música (balada), outras se associam ao álcool, outras ao sexo, outras usam quando estão tristes ou muito felizes. Se você sempre usar as drogas em casos de tristeza profunda e solidão, espontaneamente, todas as vezes que sentir-se triste, disparará o gatilho para o uso.

- Fissura – completou o Burro.

- Exato! No caso da Sombra e a Escuridão, esse gatilho era disparado sempre que eles saiam nas ruas para procurar pessoas para ambos fazerem justiça. No caso, era a euforia.

Fiquei boquiaberto com a explicação e mais boquiaberto pelo conhecimento do Guazira. Tenho certeza que nem o ruivo sabia de tudo isso.

- Até mais Bortolozzo! – disse o Guazira, apenas fazendo um sinal de joia.

- Até!

O Tenente Guazira fora até o Murilo e deu um forte abraço. Daqueles de fazer ciúmes em qualquer pessoa.

- Até mais, meu grande Shaitaini! – disse ele dando um grande sorriso.

"Shaitaini?" pensei comigo.

"Então era isso! Só juntar as palavras: Guazira; brother; hostil; muito trabalho para polícia; parceiro de rua; justiça com as próprias mãos..."

Meu estômago estava congelado. Minhas pernas tremiam e, na minha frente, estava o outro Leão de Tsavo. A Sombra.

- O que aconteceu Alan? – perguntou o Burro ao ver-me em pânico.

- Você é a Sombra! – disse sentindo uma imensa vontade de ir embora.

- Do que você está falando? – perguntou meu irmão ficando em pé, num pulo.

- Concluiu isso tudo nessa conversa, senhor Bortolozzo? – perguntou ele ainda rodando seu dedo indicador no gargalo da garrafa.

- Não! Pelos comentários que o Muca sempre fizera de ti! sempre havia muito carinho fraternal entre vocês – disse me levantando e começando a sair.

- E por que a pressa Bortolozzo? Não sabe que isso foi algo do passado? – perguntou ele agora girando a garrafa.

- Acho que foi a meia hora mais tensa que eu tive Guazira! – disse rindo amarelo.

Minha tensão toda não era por causa do Guazira ser um Shaitaini. Afinal, estávamos em um posto de combustível, cheio de pessoas e ele era um policial. Jamais botaria a cara pra bater ali. Isso lhe renderia uma prisão ou expulsão. Meu pavor era saber que - não sei ao certo onde – o Murilo estava nos observando. E lembrando-se das palavras ditas agora pouco pelo tenente:

" - ... O comportamento de caça desses leões, não condizia com os padrões "normais" da espécie... Sem falar que os leões enganavam as pessoas na hora da caça. Eles armavam emboscada que assustavam os homens. Durante a madrugada, um dos leões entrava nas tendas e acabava assustando os homens e, quando menos se esperava, o outro leão que você nem o tinha visto, aparecia e te capturava."

"Ou seja, o Guazira serviu apenas para nos distrair (isca) até o Murilo chegar!"

Meu coração estava na boca. Primeiro, pelo fato de ele ser o que ele é. Segundo, por ele ser meu namorado e saber que estou em sua cidade, com a pessoa que ele mais detesta na vida.

- Vamos galera! – perguntei batendo no ombro do Burro.

- E o aconteceu com o Murilo? – perguntou o Burro com uma cara séria.

- Vamos pessoal, eu já disse que temos que ir! – disse com veemência.

- O que aconteceu comigo, Biesso? – perguntou a voz grave do Murilo bem atrás de nós – Eu fui pego após uma denúncia de um policial!

Era tarde demais. A merda já estava feita. O pouco que me consolava, era estar num posto de gasolina bem grande, com meus amgios. Ao fundo, policiais lavavam suas viaturas.

- Fui denunciado e pego pela policia. A mesma policia que eu tanto ajudei. Fui traído – disse ele tão calmo que chegava até arrepiar a nuca.

- Você estava sem controle! – disse o Burro friamente.

- Você ouviu isso, Muca? – perguntou o Guazira rindo – Você estava sem controle – disse batendo as duas mãos na mesa.

- Confesso Biesso, que nunca tive muito controle de nada. Muito menos de mim – disse o Muca olhando com ar de felicidade

- Jura? – disse o Burro debochando.

De algum modo, eu reprovava aquele comportamento de homem corajoso do Burro. O Murilo era um homem sem "freios" e se precisasse usar sua força em frente a policia, ele não hesitaria duas vezes. Meu irmão tentou puxa-lo para o carro, mas o teimoso queria provocar o Murilo.

- Você sabe na pele que sim! – disse o Murilo abrindo um sorriso de triunfo.

Ele estava referindo das cicatrizes que o Burro tinha após a queda na quadra, quando éramos adolescentes.

- Na verdade, ambos sabemos na pele – disse ele passando o dedo na bochecha, onde o Murilo levara um ponto após o ruivo jogar uma bacia em sua cara – parece que... tá faltando até um dente aí.

- Cala a boca idiota – disse o Breno cabreiro com o Burro.

Ele estava com o seu rosto colado ao rosto do Muca que mudara de expressão na hora.

- Eu te derrubei na quadra quando moleque. Depois joguei numa piscina de gelo. Apenas com minha força – disse ele enrijecendo os músculos.

- Eu, com pouca força, mas com um pouco de inteligência, fiz um corte que parece um buceta na sua cara – disse ele amarrando a cara para o Muca – e tirei um dente.

- Sem falar que inteligência é meu forte. Naquela noite que joguei você na piscina, enquanto estava sendo paparicado pelos seus amigos maricas, eu botei fogo na lixeira do prédio, incendiando as árvores e queimando meu carro. Por mais que tú não tenhas levado a culpa diretamente, sempre fora a primeira escolha entre os pais no condomínio. Tanto que sua mãe nunca mais fora chamada para nada.

- Foi você que fez aquilo, seu louco? – indaguei.

- Alan, meu Deus, você está aqui? – perguntou ele se levantando e me dando um abraço forte – Guazira, esse é o Grande Amor da Minha Vida! Você já tinha o conhecido, não tinha?

O Guazira apenas ria. Ria não, ele gargalhava. Lembrava-me até as hienas do Rei Leão.

- Já fomos apresentados, Murilo – disse ele acenando para mim.

Agora o Murilo se voltava para mim.

- Estranho, não é? O meu namorado, esse que chamei de "Amor da Minha Vida", na minha cidade, com o melhor amigo dele, seu irmão e amigos, especulando sobre minha vida e sem me avisar? – disse ironicamente.

- Eu precisava ver de perto quem era você! – disse com a raiva pegando fogo em meu peito.

- É uma pena! Pois eu viajei o ano todo para te ver e nunca dei motivos para você mentir pra mim! – disse ele ficando com raiva.

- Mas descobri coisas horríveis ao seu respeito! – respondi na mesma ferocidade.

- Tudo isso foi antes de ti! Você não sabe para que eu te namoro?

- Porque sou "Amor da Sua Vida"? – disse friamente.

O Burro virara a cara para não ouvir aquilo. Deveria ser humilhante ver seu melhor amigo sendo xavecado por seu inimigo.

- Além de te amar, era para ser um cara diferente do que fui! – disse ele cuspindo ao falar.

- Nossa conversa não será aqui! Sem falar que ninguém tem nada a ver com isso! – disse apontando o dedo na cara dele – Vamos embora pessoal.

O Burro ficou parado encarando o Murilo.

- VAMOS EMBORA BURRO! – gritei com o ruivo que estava com a pele roxa de raiva, fazendo-o vir ao meu encontro.

Ele apenas assentiu. Saímos rumo ao nosso carro e vi que as viaturas não estavam mais lá. Isso era um péssimo sinal, pois seriam as únicas pessoas que poderiam parar o Murilo.

- Não acredito que eles no deixaram ir embora, assim, sem dar "barraco"! – disse o Burro abrindo a porta do carro.

Foi tudo muito rápido. Apenas lembro-me de ouvir passos pesados atrás de mim e depois, ser arremessado no gramado. Era como se eu acabasse de ser atropelado por um carro. Atingido bem na boca do estômago. Minha visão ficou turva, minha cabeça girava e meu copo doía. Segundos depois, comecei a vomitar.

- Alan? – perguntou a voz distante.

Mas meus ouvidos estavam entupidos. Era como se tivesse água dentro deles.

- Saia de perto dele – disse outra voz masculina que não conseguia reconhecer.

Apenas via flashes de dois homens se atracando no estacionamento. Minha cabeça girava e eu estava lavado de vômito. Vi um vulto se aproximando de mim e me virando para cima.

- Murilo só fez isso para te proteger do seu amigo – disse o vulto que eu reconhecia. Era o Guazira.

"O Murilo me socou?!"

Eu vomitei mais uma vez. Tentei tossir para tirar tudo de dentro de mim, mas ainda me sentia enjoado. Os homens que estavam a poucos metros de mim, ainda rolavam pelo chão. Aos poucos, minha visão ia se recuperando e pude ver o Burro, sentado sobre a barriga do Murilo e socando-o na cara, meu irmão em pé, puxando-o rapaz. O Breno estava no chão, se levantando com dificuldade. Por alguma sorte do destino, o Burro estava batendo no Muca. Tentei levantar, mas o Guazira colocara sua mão no meu peito, fazendo eu deita novamente.

- Você fica aqui! – disse ele – Seu amigo é muito forte, mas Murilo está apenas aplicando seu golpe favorito.

Eu não estava com condições alguma de pensar, quiçá saber sobre golpes.

- Do que você está falando?

- É o golpe que o Murilo aplica em adversários astutos e fortes. O cara pensa que está na melhor, mas não está. Está perdendo toda sua energia batendo em alguém que aprendeu a vida toda a apanhar. Porque ele aprendeu apanhar no exército. E quando seu amigo cansar, ai o grande começará agir – disse ele sorrindo.

"Isso jamais poderia estar acontecendo comigo!"

- Burro? – chamei com a pouca voz que tinha.

Mas ele não ouvira.

- Fica quieto, meu amigo! Já vai acabar – disse ele olhando para os dois.

Dito e feito. Ao perceber a exaustão do Burro o Murilo levantara mais rápido que um gato, colocando-o no chão.

- Eu te disse! Eu te disse – gargalhava o Guazira.

- Diga-me Biesso, como pretende sair de cima de um cara que pesa 120 kilos de puro músculo? – disse o Murilo com a boca sangrando.

Sem falar da sua camiseta que estava ensopada. Meu irmão agarrou o Murilo pelo pescoço, mas seus braços estavam livres. Era como se meu irmão nem existissse.

- FINALIZA MURILO – gritou o Guazira.

- Você não tem ideia de como eu quis esse momento? – disse ele gargalhando.

Fiz todas as forças que pude para me levantar, mas o Guazira era bem mais pesado e forte que eu. De repente, senti um grande empurrão. Na verdade, alguém estava empurrando o Guazira de cima de mim. Aproveitei a chance e me levantei. Era o Soares. O Guazira estava caído ao lado, paralisado de medo. Mas não tirava os olhos do Murilo que estava com os braços estivados para o alto, em punho. Ele ia apunhalar o Burro. Não sei se poderia matar, mas que poderia machuca-lo bastante.

- PARADO AI MURILO! – gritou o Soares, dando um tiro com sua arma para o alto.

Ouvi o tiro ecoando por um bom momento pela cidade. Era impressionante como era forte aquele som. O Murilo abaixara os braços e meu irmão caira de lado. O ruivo ainda estava com os olhos abertos. O tiro tinha dado certo. O Murilo parara.

- SAIA DE CIMA DELE. AGORA! – gritou o Soares com a arma apontada para o Murilo.

- O que vai fazer? Bater-me com um machado na cabeça, como fizestes da última vez? – perguntou o Murilo com a cara furiosa.

"Então aquela marca na sua nuca fora uma machadada? Meu Deus!"

- Eu nem piscaria Murilo– disse o Soares com a voz mais branda, porém, grave – Você sabe disso!

- Você é como um pai para mim, não teria coragem de atirar em MIM? – disse o Murilo com lágrimas nos olhos.

- Eu não vou repetir mais. Sai de cima dele – disse o Soares pausadamente.

Ele se levantou calmamente, sem apoiar suas mãos em lugar algum. Isso faria que seu peso esmagasse, mesmo que por um curto prazo, o Burro. O rapaz respondera imediatamente àquele ato de covardia, urrando de dor.

- Murilo, é a ultima vez que falo – disse o Soares chegando a poucos passos do Muca.

O Murilo, sem olhar na cara do Soares, saiu de cima do Biesso e parou ao seu lado. O tenente, imediatamente, algemou o Murilo.

- Precisa mesmo disso? – perguntou o Murilo chorando.

O Soares não respondera. Olhei em volta para tentar achar o tenente Guazira, mas ele se fora.

"Filha da puta!"

O Murilo babava sangue. Alguma coisa muito forte deve ter o atingido sua boca e feito algum corte profundo. As pessoas em volta iam se aglomerando. O Tenente Soares estava ao celular, mas ao mesmo tempo, seu olhar estava sobre o Murilo. Meu imrão veio ao meu encontro, junto com os gêmeos. O Burro, aos poucos, ia se mexendo. Ele se virara de lado e depois se apoiara no chão, de quatro, como um cachorro, para poder se levantar. Acredito que o peso do Muca realmente deva ter te o machucado. Enquanto ele tomava forças para se levantar, olhei para o Murilo que me encarava com a maior cara de nojo do mundo. Era como se eu estivesse fedendo a carniça. E voltei meus olhares para o Biesso que respirava ofegante. Ao ver que eu prestava mais atenção no rapaz que fazia forças para se levantar, o Murilo deu um grito de fúria e meteu o pontapé nas costelas do Burro, jogando-o longe. O Soares imediatamente jogou spray de pimenta em seus olhos e eu corri até o corpo do amo da minha vida. Ele estava lá, jogado no chão com o rosto cheio de pedregulhos, chorando, com o queixo cortado. Sentei-me ao seu lado e virei-o de barriga para cima. Ele chorava, fazendo um som abafado..

- Eu odeio ele – disse o Burro soluçando.

- Não existe mais ele – disse pressionando o corte em seu queixo para fazer parar de sangrar – Vamos dar um jeito nesse corte e vamos embora dessa cidade?

- Vamos embora daqui, pelo amor de Deus! – disse o Bruno ao meu irmão que concordou mais que depressa.

- Ele nunca vai nos deixar em paz! – disse o corpo do Burro estirado no chão, seus olhos encheram d'água e tranbordavam.

- Podemos mudar tudo isso Biesso! Vamos todos mudar isso. Consegui falar com os pais dele.

- Ele precisa ser contido Alan! Você não viu as atrocidades que ele fez? – perguntou ele amarrando a cara para mim quando apertei o corte com mais força – Mesmo fazendo aquelas atrocidades, ele nunca fora preso.

Olhei para o Murilo que estava algemado, sentado ao lado do meu carro, chorando feito criança. O tenente Soares se aproximou de nós após fazer mais algumas ligações.

- Chamei uma viatura para leva-lo – disse ele me olhando – mandei chamar os pais dele também! Ele precisa parar. Sem falar que ele está sobre efeito de drogas.

- Ele está drogado? – perguntei espantado.

- Totalmente! Está visível no seu rosto como ele está – disse o tenente olhando nele – Mas pelo o chororô, acredito que já está passando o efeito. Ele tá de "bad".

- Entendi!

- Eu o avisei, há 03 anos atrás, que estava na hora de ele parar de ser o Shaitaini, mas ele não me ouviu.

- Ele, antes desse rolo todo, disse algo do tipo "que estava me namorando e que isso estava afastando-o das encrencas".

- Realmente estava. Até te disse que éramos grandes amigos. Pois achei que ele tivesse mudado. Eu fui um dos amigos que o incentivei a te namorar. Não sei se tu sabe, mas ter um namorado "careta" ajudar a sair das drogas – disse ele abrindo um sorriso - e ele estava saindo-se muito bem. Nem acredito que poderia vê-lo assim novamente.

- Entendi!

- Mas ele não vai parar – disse o Burro no chão, com a voz trêmula – está estampado e escrito nos olhos dele.

- Não acredito que vá! – disse o Soares me olhando com ar de triste – Por isso peço eu procure auxilio quando chegarem a Rio Preto.

- Queria te perguntar outra coisa tenente? – eu disse.

- Pode falar!

- Ele disse, antes do senhor agir, que o senhor já o bateu nele com um machado? – perguntei com medo de ouvir a resposta.

- Exato! – disse ele olhando para suas mãos – A polícia estava "aceitando" os seus atos enquanto ele entregava apenas pessoas que estavam ligadas a algum crime. Pra nós era ótimo ter a cidade limpa. Mas eu precisei para-lo quando ele perdeu o controle e começou a agir por impulso.

- Ele foi capaz de tudo isso? – perguntei engolindo seco.

Eu olhava meu namorado, um homem extremamente carinhoso, sentado no chão, chorando feito criança e imaginava, como ele poderia ter feito todas aquela coisas? Como ele poderia ter matado alguém?

- Eu não sei ao certo o quanto o Murilo estava presente nesses atos. Era como se ele tivesse uma dupla personalidade, liberada ao usa drogas. Por isso dizemos que o Murilo é uma pessoa e o Shaitaini é outra.

- Não existe isso! Eles sempre sabem das coisas – disse o Arthur e o Burro.

- Então você não entende nada sobre drogas, rapazes! – disse ele descontente com aquela conversa – Você seria capaz de matar sua mãe, se precisasse. Acredite em mim. Já vi isso centenas de vezes.

Eles não respondera. Era nítido como eles não entendia sobre drogas. Cada vez mais eu me decepcionava com aquela noite.

- E, após ele viver somente como Shaitaini - ou prazer e fúria em fazer pessoas sofrerem - é que eu tive que agir. Um dia, os persegui dois pela cidade. Eu estava à paisana e me disfarcei de pessoas normais. Depois de horas de caminhada, pelos centros, bairros da zona norte, morros é que eles encontraram a quem torturar. Era um casal homossexual que estava sentado num banco de uma praça. Esperei até que os dois começassem agir e liguei para polícia. Mas a polícia estava demorando demais, então, tentei para-los com minhas próprias mãos. Vocês sabiam que eles trabalhavam enganando as vitimas, não sabem? – perguntou ele arqueando as sobrancelhas.

- Ficamos sabendo! – disse.

- Então, me aproximei dos dois com a arma em punho, mas o Murilo fora mais rápido. Jogou minha arma num bueiro e depois me esmurrou. Acredito que ele só me deixou escapar, pois pouco de Murilo que havia dentro dele, me reconhecera. Sai correndo pelo bairro a procura de ajuda e foi quando um padeiro, que ouvia a gritaria, apareceu com um machado nas mãos.

- Os gritos de socorro iam aumentando a cada segundo, então, saí em disparada até o Murilo e o acertei com um machado na cabeça.

- E você não o matou? – perguntei atônito.

Porque um machado arrancaria a cabeça com uma facilidade imensa.

- Não! Eu bati com o outro lado do machado. Com a "cabeça". Mas foi com força suficiente para mata-lo.

- E você quis mata-lo? – perguntou o Burro.

- Não o Murilo. Esse homem forte, inteligente, amigo para todas às horas – disse ele olhando para o Muca que estava com a cabeça baixa e chorando – Quis matar "A Sombra" ou Shaitaini.

- E depois disso?

- Depois disso ele foi preso, por apenas uns dias e depois expulso do I.T.A.

- E o Guazira, como ele virou polícia após tudo isso? – perguntou o Breno.

- O Muca assumiu todos os atos.

- Mas todos sabiam que eles agiam em dupla? – perguntou meu irmão se irritando.

- Foi aí que eu entrei rapaz! Eu testemunhei tudo para o Murilo. Como eu disse, eu adoro os dois meninos, hoje são meus amigos de sangue. Meus filhos, como eles costumam se chamar. Eu não gostava era dos demônios que eles se tornaram.

- Querendo ou não, você também se tornou um deles ao protege-los – disse o Burro ficando cada vez com mais raiva – se tivesse agido antes, eles não teriam feito isso.

- Você abandonaria seu amigo se ele chegasse ao fundo do poço? – perguntou ele chegando mais perto do rosto do ruivo.

- Jamais!

- Então eu não te devo explicações. Vou deixa-los a sós – disse o tenente se levantando e indo perto do Murilo que parecia estar dormindo.

- Vamos embora Burro? – perguntei limpando suas lagrimas – Precisamos costurar isso! – disse tirando meu dedo de cima do machucado.

Ainda escorria um pouco de sangue, mas nada que parecesse grave. Eu e os rapazes ajudamos o levantar e o colocamos no carro. Eu tomei de contra própria outra medicação. Quando o Bruno dava partida no carro, o tenente Soares bateu no vidro para falar comigo:

- Só uma coisa – disse ele me olhando sério – preciso do seu telefone, seus dados pessoais.

- Por quê?

- Porque vamos abrir um boletim de ocorrência e você precisará comparecer a delegacia.

Senti um frio na barriga.

- Precisa de tudo isso? – perguntei.

- De cada detalhe – disse ele sério.

Concordei com ele e fiz uma pequena ficha e, depois, fomos até o Hospital das Clinicas com o Burro para dar pontos no seu queixo. Ele estava encostado no banco do passageiro, meio choroso. Era lindo demais vê-lo manhoso daquele jeito. Dava uma imensa vontade de abraça-lo e confortá-lo. Ele era um homenzarrão com atitudes de menino. E essas atitudes de menino, era algo que me encantava. Chegamos ao hospital que não estava muito cheio. Os enfermeiros disseram para esperarmos dentro de um box, com uma maca branca e limpa. Ele se deitou e esperamos a médica chegar. Não dissemos a verdade. Apenas que ele caíra de bicicleta. Ele ficou intacto ao enquanto a médica fazia a assepsia, mas fez caretas ao levar anestesia dentro do corte. Logo me recordei de quando ele me costurou na chácara.

- Vai Burro, eu disse que doía – disse fazendo-o rir.

- Burro? – perguntou a médica dando uma gargalhada.

- Não é o adjetivo "burro", de falta de conhecimento, é Burro do Shrek. Sabe aquele Burro falante? – perguntei arrancando um sorriso gostoso dele.

- Lógico que sei! "Estamos chegando?" – imitou ela.

Todos riram. Após levar os pontos, ele precisou ficar em observação por meia hora e depois fomos liberados para voltar a Rio Preto.

- E ai Burro, você quer dormir aqui ou voltar pra Rio Preto? – perguntei ao ruivo.

- Então eu serei o Burro do Shrek agora? – perguntou ele segurando minha cabeça e balançando-a.

- Sim, meu Burro! – disse tirando um sorriso de canto dele.

"Quando eu percebi, já tinha dito. Não sei se ele ficou constrangido. Mas como sempre, ele apenas sorria."

- Ainda são 09 da noite, quer passar em algum lugar? – perguntei.

- Não! Quero sair logo dessa cidade. Peguei um trauma desse lugar que você não tem ideia.

- Eu acho mais que louvável aacabar com esse dia Alan – disse meu irmão – Vai o Bruno dirigindo e vocês de co-piloto.

- Pode deixar Arthur! – respondeu o Bruno.

Meu irmão veio até o carro e me deu um daqueles abraços de irmão carente e um beijo. Até beijou o Burro, tranquilizando que eles estaria logo atrás de nós. Pegamos o Breu da estrada rumo nossa casa. Logo, aos poucos, as conversas iam diminuindo. Todos ali estava digerindo o que estava acontecendo.

- Que silêncio! – quebrou o silencio o gêmeo – podem dormir rapazes. Tomei 03 energéticos e, logo a frente meu irmão esta dirigindo. Descansam.

- Esses remédios estão me dando sono danado. Você se importa se eu dormir? – disse ele todo manhoso, passando a mão no meu ombro.

"Que vontade de pegar no colo que me dava!"

- Sem problemas! – disse passando a mão nos seus cabelos.

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