Capítulo 11 -


 Aquele garoto que no início eu achava bobo foi se tornando pertinente para minha vida. Quando ele estava perto, eu ficava bem, pois preenchia o buraco que o Murilo havia deixado. Aquelas lembranças que eu tinha do Murilo ao ouvir musicas, filmes ou conversas bobas, perto do Burro elas desapareciam. E como ele tinha o poder de "tapar esse buraco", eu não queria mais sair de perto dele. Quando percebi, já éramos fundamentais um para o outro.

 "Agora, eu poderia dizer de peito aberto que tinha encontrado meu melhor amigo, meu irmão e cada dia mais ficávamos mais íntimos, ou seja, ficamos inseparáveis."

 Para minha felicidade, ele tinha apenas os hábitos bons do Murilo. Ele era super companheiro, atencioso, carinhoso, adorava conversar até cansar e isso me deixava feliz. Eu era o cara do temperamento estourado e ele era o amigo que sempre "apaziguava" as coisas.

No caso do Murilo, se eu ficasse bravo com algo, ele logo queria ir lá e bater na pessoa que havia me deixado puto. Ele literalmente tomava minhas dores. Não apenas tomava, ele devorava minhas dores e se deixava dominar com a raiva junto a mim. Já o Burro era tão calmo que, às vezes, me dava nos nervos. Se acaso eu ficasse bravo, ele simplesmente me olhava e ficava soltando aquele sorriso bobo de sempre, até eu não aguentar mais e começar a rir junto. Ele não gostava de me ver bravo. Dizia que isso estragava nosso dia e ele não queria perder um dia inteiro de risadas por causa de besteira. Perguntava-me "Como alguém pode ser tão despreocupado com as coisas?". Eu juro que, às vezes, eu queria que ele gritando comigo quando eu brigasse com alguém. Queria que ele sentisse o que eu sentia quando estava com raiva, mas não, ele sempre passava a mão na cabeça e dizia que não queria me ver daquela maneira. Tratava-me como uma mãe trata o filho quando o vê nessas condições.

Como o Burro começou uma rotina intensa de treinamentos de futebol, logo eu precisei fazer algo para me ocupar, escolhi fazer Kung-Fu. Eu ia todos os dias à tarde no clube da cidade para treinar e, como o Burrão não conseguia ficar longe de mim, ele logo entrou na mesma turma que eu. Se destacando, sempre, no quesito agilidade. Dois anos mais tarde, o Burro com 14 anos e eu 16 anos, precisou sair do time de futebol de campo e passou para o society – a mesma categoria do meu irmão – e começou a trabalhar para conseguir as suas coisas.

- Tipo, você tem grana pra caralho, joga bem futebol, tem tempo suficiente para treinar, mas, ao invés disso, prefere trabalhar.

- É a cultura do meu povo trabalhar cedo Alan – disse o Burro com o português impecável.

Dois anos de aulas práticas comigo foram suficiente para ele aprender a falar português corretamente. Isso, sem falar no inglês impecável. Aquele Burro caipira, hoje se transformou numa máquina da cidade. O ano de 1998 foi o ano do filme "Titanic". O ápice de inglês do Burrão se deu quando todo mundo sabia cantar "My Heart Will Go On" da Celine Dion e ele não. Foi aí que, sozinho, ele aprendeu a cantar a música inteira, com a dicção perfeita, como um verdadeiro americano. Nos meus 16 anos eu poderia frequentar matinês nos clubes, porém, como meu melhor amigo ainda não tinha atingido a idade mínima para entrar, eu ficava no condomínio aos finais de semana com ele. Durante a semana ele entregava panfletos no semáforo ao lado do Shopping.

- Você poderia trabalhar comigo. Lá eles pagam R$ 10 reais por dia – disse ele com aquele sorriso.

- R$ 10 reais? – repeti sorrindo.

"Para vocês terem ideia, os R$ 10 reais da época, equivale a uns R$ 50 reais hoje."

Comecei a trabalhar com ele entregando panfleto. Não era nada que eu pudesse me orgulhar. Sempre que aparecia alguém conhecido, eu tratava logo de sumir.

- Você deveria parar de besteira! Maioria dessas pessoas que você se esconde, mal sabe o que é serviço.

- É que não queria ser conhecido com Alan "O Panfleteiro de semáforo" – disse fungando alto.

- É um trabalho como qualquer outro! – disse ele me fitando, buscando seus olhos.

- É que não me contento com pouco, sabe Burro? Quero ser um cara conhecido, poderoso, digno de virar história – disse fazendo-o me dar um sorriso torto – E você, deveria ser um jogador de futebol, daqueles que vão para Europa e andam de Ferrari.

- É que meus sonhos não são iguais ao seu Alan. Hoje eu jogo bola por prazer e não por profissão.

- Queria eu fazer do meu prazer uma profissão.

- Se eu quisesse ser jogador de futebol Alan, eu teria que morar longe de tudo. Inclusive de ti. O único irmão que a vida meu deu – disse ele ficando cabisbaixo.

- Se fosse para seu bem?

- Meu bem está bem mais perto Alan – disse ele ficando em pé e rodeando o nosso banco – E se você estivesse no meu lugar?

- Eu seguiria meu sonho – respondi quase que imediato.

Ele me fitou sério por uns segundos, talvez esperando que eu retribuísse o gesto fraterno de ficar ao meu lado, mas não. Eu seguiria realmente o que eu tivesse no coração e eu queria isso dele também. Não que eu quisesse dizer aquelas palavras duras a ele, mas talvez ele precisasse de um empurrão.

- Por isso eu acho que está na hora de voltarmos a trabalhar. Ainda faltam uns 500 panfletos iguais a esse para entregarmos – disse ele jogando um panfleto em meu colo.

- Você quem manda senhor! – disse seguindo-o até a rua.

Ficamos nessa vida de entregar estudar de manhã, entregar panfletos à tarde, praticar Kung-Fu à noite. Nas horas vagas o Burro jogava futebol e eu ficava em casa atoa. Às vezes, ia com o Arthur e o Breno ver um filme ou, às vezes, ia ao sitio da minha avó dormir com ela.

Mais dois anos se passaram e chegamos ao ano 2000. Eu tinha recém completado 18 anos e o Burro 16. Agora sim poderíamos frequentar algumas festas juntos. Foi o ano das nossas primeiras viagens sozinho. Primeiro lugar que escolhemos fora o Rio de Janeiro. Fizemos um "mochilão" escondido de nossos pais.

"Sinceramente, esse lance de viajar escondido, hoje, parece ser irresponsabilidade, mas na época foi à melhor coisa que eu tinha feito na minha vida."

Ganhei de presente de aniversário do Burrão, minha Habilitação. Minha família não tinha condições de me dar uma, então, a dona Neusa conversou com minha mãe e eles decidiram que eu precisava dirigir. Dizia ela que eu dirigindo facilitaria as nossas coisas. Inclusive, como ela trabalhava o dia todo, ela deixava o carro para nós irmos à escola, irmos ao Kung Fu, levar o Burro aos treinos de futebol e para usarmos com nós mesmos. O Arthur que não fizera uma faculdade, conseguiu emprego dos sonhos com o pai dos gêmeos. Era uma daquelas empresas que emprestam dinheiro e trocam cheques para as grandes empresas, as Factoyns. São um tipo de "agiotas" com CNPJ. Ele trabalhava de terno e gravata, tinha motorista particular, um celular só para ele (No ano 2000, a pessoa que tinha celular era considerada uma pessoa rica), em contrapartida, ele precisaria para de jogar bola. Entre futebol e um emprego ótimo, ele preferiu ficar com o emprego ótimo que lhe dava estabilidade, já que o pai dos gêmeos tinha o Arthur como um terceiro filho. Ele precisou juntar apenas seis meses de salário para comprar seu primeiro carro, o "Intocável Golf Preto". Intocável, pois ele jamais permitia que qualquer ser humano, tirando o Breno, relasse no carro.

Foi no ano 2000 que saímos do serviço de entregador de panfletos e fomos conquistar nosso segundo emprego, Mc Donald's. Por ter um porte físico acima da média, eu fui contratado logo na primeira entrevista com a função de "Fechador". Fechador era o cara que entrava por último, às 19 horas e trabalhava até de madrugada. Era a função mais respeitada dentro da lanchonete. O Burro precisou passar por quatro seletivas até ser contratado. Ele trabalhava das 18 horas até às 22 horas. Ele precisava trabalhar apenas 04 horas para ganhar no máximo R$ 400. Como eu trabalhava até de madrugada, meu salário sempre era mais gordo. Por mais que eu tivesse completado o ensino médio, decidi esperar até o Burrão concluir para nós tentarmos algo junto. Queria ao menos uma vez na vida ter o prazer de entrar na mesma classe que eu. Outro prazer que eu descobri que eu e o Burro tínhamos em comum, era o fato de amar a natureza. Lembro-me especificamente de um fim de tarde de inverno. Fazia um dia completamente limpo, sem uma única núvem no céu, mas o frio e o vento era tanto, que queimava a pele e rachava os lábios.

- Vamos Alan, você vai adorar? – disse ele me puxando até o elevador do meu prédio.

- Nós vamos tomar uma multa, isso sim!

- Não é você que sempre diz para eu viver com um pouco de emoção?

- Quando a emoção não implica em sua mãe e meu irmão arrancar meus dentes, de boa?

- Você vai adorar – disse ele colocando o gorro da jaqueta de frio.

Subimos de elevador até o sexto andar. Do sexto andar até a cobertura, precisaríamos subir de escada.

- Como você conseguiu abrir essa porta? – perguntei quando ele abriu a porta da casa de maquinas do elevador.

- Eles esquecem essa aqui sempre aberta. Há muito tempo eu subo aqui – disse ele entrando numa salinha escura e abafada – Feche a porta.

Lá dentro fazia muito barulho. Ele tateou a parede até achar uma luz que havia lá dentro. Quando ascendeu, eu levei um baita de um susto. Todo o maquinário do elevador, como o contrapeso, motor e roldanas ficavam ali em cima. Não que eu não soubesse como funciona um elevador, isso eu sabia. É que eu nunca tinha vista um de tão perto. Quando o elevador se movimentava, lá dentro fazia um barulho infernal.

- NÃO LIGA PRA ESSE BARULHO – gritou ele tapando os ouvidos com as mãos – TEMOS QUE CONTINUAR.

- PRA ONDE?

- TÁ VENDO AQUELA ESCADA MARINHEIRO?

- SIM!

- TEMOS QUE SUBIR POR ELA – disse ele indo até a escada que dava acesso a um alçapão.

- VOCÊ ESTÁ MALUCO? – perguntei dando de ombros.

- SIM! POR FAVOR, VAMOS? VOCÊ VAI ADORAR – disse ele sorrindo.

Concordei com aquela ideia maluca e subi com ele pela escada marinheiro. Ele abriu a tampa o alçapão e pude ver pelo buraco a luz alaranjada do sol.

- A PARTIR DE AGORA VOCÊ TEM QUE FECHAR OS OLHOS – gritou ele.

- O QUÊ? VOCÊ ENTENDEU BEM QUE EU PERGUNTEI SE VOCÊ ESTAVA MALUCO? – gritei para ele.

- JÁ DISSE QUE VOCÊ VAI ADORAR – gritou ele dando um sorriso – FECHE BEM OS OLHOS E ME DÊ A MÃO – gritou ele estendendo a mão para mim.

"Isso é loucura!" – pensei.

Segurei a sua mão gelada e fechei os olhos. Passei pela porta do alçapão e senti o vento gelado batendo no meu rosto.

- Está quase Alan. Agora fique de pé e venha andando comigo – disse ele com uma voz de extrema felicidade.

Sentia meu estômago gelado. E não era pelo frio, mas sim, pelo fato de estar de mãos dadas com aquele garoto que mexia tanto comigo. Continuei a andar com passos lerdos, tateando o chão enquanto pisava.

- É só continuar reto – disse ele apertando bem a minha mão.

Dava para sentir minha mão suando em contato a dele.

"Ele vai perceber!" – pensei comigo antes que ele pudesse achar estranho o fato de estar congelando e nossas mãos suadas.

- Temos que andar de mãos dadas? – perguntei e ele parou na hora.

- O que há de errado? – disse ele com a voz triste.

- Nada não! Me desculpe? – disse sem graça.

- Sim! E respondendo a sua pergunta, é essencial andarmos de mãos dadas – disse ele voltando a me puxar rumo à rodovia.

Sabia que era rumo à rodovia, pois conseguia ouvir o barulho dos caminhões na estrada bem à frente.

- Mais uns três passos – disse ele me puxando.

- Assim? – perguntei ao final dos três passos, sentindo meu pé batendo num degrau.

- Agora, apoie suas mãos no parapeito e sinta esse vento maravilhoso.

Ainda de olhos fechados, tentando ignorar o barulho vindo da rodovia, sentia aquele vento congelante batendo no meu rosto, entrando através das fendas da minha blusa, chegando até o meu peito, me dando calafrios. Senti a mão do Burro sobre meu pescoço. Estava, sem duvidas, muito mais gelada que a minha.

- Frio, não? – disse ele quebrando o silêncio – Meu Deus! Você está inteiro arrepiado. Quer usar a minha blusa?

- Burro, se você não percebeu, eu ainda estou de olhos fechados – disse fazendo-o gargalhar.

- Me perdoe! Consegue sentir o vento gelado percorrendo todo o pasto a frente? – perguntou ele se referindo ao som que o vento fazia a relar nos galhos e nas folhas das arvores.

- Consigo! – respondi com o queixo começando a tremer – Eu quero dizer, todos o ventos em todas as árvores, como cada árvore produz um tipo de som.

Fiquei parado por uns minutos, nunca havia, na vida, dado importância a tudo aquilo. Sempre ouvi sons do vento, mas nunca eles fizeram sentido.

- Agora, abra os olhos – disse ele dando um apertão na minha nuca – E veja meu presente a você.

Ao abrir os olhos, me deparei com uma das mais belas imagens que eu já tinha visto na vida. Era um pôr-do-sol de inverno. Daqueles que o sol fica ao fundo bem alaranjado, com as nuvens multicoloridas e, as árvores bem ao fundo, completamente negras a sombra do astro Rei. Meus olhos se encheram de lágrimas ao sentir a intensidade daquele momento.

- Você gostou? – perguntou ele sorrindo ao ver minha emoção.

- É esplendido! – disse sentindo as lágrimas correr pelo meu rosto – É divino!

- Logo que você disse que curtia temporais, pensei comigo "Por que não apresenta-lo a outro belo espetáculo da natureza?", foi então que decidi lhe trazer. E saiba de uma coisa. É bem mais legal ver um pôr-do-sol do seu lado ao ver sozinho.

Meu coração deu um solavanco que quase saiu pela boca.

"O que ele quer dizer com isso?"

- Quero dizer... – continuou ele – Ver essas coisas maravilhosas e não ter alguém para dividir, às vezes, é muito chato.

"Você agora anda ouvindo meus pensamentos ou será que "pensei alto demais"?" – pensei indignado.

- Você tem toda razão! – respondi fitando ele por uns segundos.

- E quando vier o primeiro temporal, você vem até aqui me mostrar – disse ele me dando um sorriso.

Ele tinha um afeto pelas pessoas, em especial a mim, que era fora de base. Parecia que ele tinha a necessidade de tocar as pessoas. Como se elas precisassem ser tocadas para sentir o que ele sentia. Afeto que e carinho fraternal que poderia ser confundido facilmente com afeto entre dois namorados.

"Mas o que eu poderia fazer se aquele momento estava tão bom? Simples! Fique em silêncio e continue a contemplar aquilo que precisa ser contemplado."

Ficamos lá no terraço até escurecer.

- Tá vendo aquela estrela grande, bem perto dos últimos raios de sol? – perguntei fazendo-o espremer o olhos.

- Sim!

- Aquela estrela lá é um planeta – disse fazendo-o ficar boquiaberto.

- Como é que você pode saber...

- Se há bilhões delas no céu? – o cortei antes que ele pudesse responder a pergunta.

- Exato! – disse ele rindo.

Adorava ver a maneira que ele ria quando eu premeditava alguma de suas perguntas.

- Ela é conhecida como estrela Dalva ou estrela da manhã. Pois é a primeira e a última estrela a surgir no céu todos os dias, sabia? – perguntei fazendo-o ficar sem respostas – Pois é meu amigo. De estrelas eu entendo.

Naquela hora, uma estrela cadente cortou o céu de fora-a-fora.

- Faça um pedido? – disse a ele.

Ele contemplou a estrela que no início era bem amarela e foi ficando esverdeada enquanto ela ia desaparecendo no céu. Ele ficou me olhando sorrindo.

- Já fiz! – disse ele se voltando para o céu.

- E...? – perguntei fazendo-o rir.

- E o quê? – perguntou ele já sabendo a resposta.

- E... o que você desejou? – perguntei impacientemente.

- Não posso falar! – disse ele se voltando para rodovia.

- Lógico que pode!

- Lógico que não! Assim não realizaria – disse ele rindo da minha cara de bravo – não fique bravo.

- Mas não dizer os "desejos" é válido somente para quando assopramos velas em aniversários – disse fazendo-o gargalhar.

- Ok! Até posso entender o que dissestes, mas eu prometi, enquanto eu fazia o meu pedido, de não dizer nada a ninguém.

- Afff! Nem para seu melhor amigo? – perguntei incrédulo.

- Nem uma palavra. Desculpe-me Alan! – disse ele dando um sorriso torto.

- Então tá!

- Já podemos ir, não acha? Ou vamos congelar.

- Eu não ligo para o frio. Por mim, ficaria aqui a noite toda, mas... prefiro ir embora já que o "Senhor Segredo" está agindo sozinho.

- Não fale assim! Tu sabes tudo da minha vida.

- Menos um pedido besta a uma estrela cadente – disse fazendo-o me olhar triste.

- Pra mim não foi nada besta – disse ele se voltando para rodovia.

- Ok Burro! Me desculpe? – disse virando ele de frente para mim – É a primeira vez na vida que você não responde algo.

- Então tá! Prometo que um dia eu te contarei. Pode ser?

- Quando? – perguntei imediatamente.

- Um dia. Quando eu tiver afim.

- E que dia você vai estar afim?

- Você saberá Alan. Agora, vamos descer? – chamou ele.

Apenas concordei com a cabeça e o segui para fora dali, não contente com sua reação.

"Aposto que se fosse com o Murilo eu ficaria sabendo." – pensei comigo.

Era nessas horas que eu me perguntava "Onde será que anda o Murilo? Por que ele nunca voltou? Por que ele nunca mandou uma carta ou sinal que estava vivo? Se é que ele estava vivo.". Era ruim ter aquela sensação dentro de ti. Sensação de uma resposta que eu nunca consegui achar. "Será que eu fiz algo para que ele pudesse se afastar?". Mas como jamais eu tive um sinal de vida dele, resolvi de vez me apoiar naquilo que, de longe, mais me confortava, o Burrão.

Mais dois anos se passaram e logo chegamos ao ano 2002. Eu estava com 20 anos e o Burrão com 18 anos. Pouca coisa aconteceu nesses dois anos. Quer dizer, para mim, pois para o Burro foi um ano de várias conquistas. A primeira delas, seu carro Zero Kilômetro que o próprio Burrão, com o dinheiro desses anos todos de trabalho, próprio comprara. Ele começou a fazer a autoescola no dia seguinte do seu aniversário e, dois meses depois já estava com a habilitação.

- Primeiro você deve aperfeiçoar melhor sua prática. Além do que, eu não tenho mais a "Provisória", posso levar quantas multas eu quiser que não perco. Já você, qualquer multa que levar, logo fica sem a Habilitação.

- Sim, professor Alan! – disse ele dando as chaves do Astra Prata, quatro portas, direção hidráulica, banco de couro e Zero Kilômetro, para mim.

- Na verdade, é você quem deveria dar a primeira volta – disse jogando as chaves para ele.

- Para mim não tem problema algum Alan. Você sabe que eu adoro andar contigo – disse devolvendo as chaves.

- Já que é assim? Então vamos lá – disse entrando no carro e dando partida.

- Pelo menos agora podemos dizer que o carro é "nosso" – disse ele dando um sorriso.

Fiquei tão feliz ao ver aquele gesto de carinho. Acho que ele sabia que eu não tinha condições alguma de comprar meu carro e logo agiu daquela maneira. Achava tudo aquilo maravilhoso. E logo meu melhor amigo, meu companheiro, meu confidente, acabou virando "O Amor da Minha Vida". Pelo menos platônico. Já não conseguia mais imaginar meu mundo sem ele. Sem aquele sorriso, sem aqueles cabelos ruivos e espetados, sem aquele par de coxas de e sem aquele corpo sarado de jogador de futebol, sem aquela bunda linda e marcada do sol pelos treinos e jogos.

"Ei, ei, ei, ei, O Burrão é o meu melhor amigo e não posso ter esse tipo de desejo com ele!" – pensei ao acelerar o carro na rodovia – Mas cá entre nós Alan, aquela marquinha de sunga que ele tinha, te deixava louco? Já chega, já chega, já chega!" – retruqueis meus pensamentos que as últimas palavras saíram da minha boca.

- Já chega do quê? – perguntou Burro assustado com meus pensamentos.

- Nada! Só estou pensando alto.

De moleque magricela a um grande jogador de futebol. Hoje, ostentando seus 01 metro e 80 centímetros de altura, 80 kilos muito bem distribuídos, coxas e bunda de jogador de futebol e aquela maravilhosa marca de sunga, esculpiam o corpo do Burrão versão 18 aninhos. A maior preocupação da dona Neusa, era que ele, até uns tempos atrás, continuava com aquele corpo de moleque. Mas, como um passe de mágicas, ele se transformou num homenzarrão e ruivo. Não era daqueles ruivos, sardentos, olhos claros e com cabelo estranho. Ele era um ruivo, de olhos negros, cabelos espetados ao invés de encaracolados e poucas sardas.  Cabelo e sardas que antes era motivo de gozação, hoje era motivo de disputa pelas gurias do prédio.

"O que eu poderia fazer se o cara tinha um corpo que me deixava louco? Se tem uma coisa que me deixa louco em homens, é a bunda deles. Tenho uma tara por bundas que nem sei ao certo por quê? E a bunda do Burro era, exageradamente gostosa. Talvez pelo fato dela ser masculina que me dava calafrios. Além de ter "aquela" lordose."

Eu quase tinha um infarto quando nós acabávamos de jogar futsal e íamos direto para ducha que havia ao lado da quadra. Ele sempre tirava a camiseta, o short e tomava banho apenas sunga. Ainda molhado, sentava-se ao meu lado para secar, exalando uma combinação de cheiros como, perfume, homem, gel de cabelo, pele molhada. Tinha vez que me sentia culpado por ter tesão por ele, de desejar estar abraçado com ele, sentir o conforto e carinho que um homem pode dar ao outro. Ao mesmo tempo em que eu tinha amor de irmão por ele, eu também tinha certa paixão. Mas entre amor de amigo e paixão, eu preferia mesmo era que ele fosse meu amigo. Principalmente depois do que senti pelo Murilo. Entre investir numa paixão e uma amizade, o que certamente irá prevalecer será a amizade.

"Olá de novo meus leitores, acho que a maioria de vocês já devem ter passado por uma situação igual ou parecida a essa. Situação de ter um melhor amigo, um primo, um tio, alguém cuja relação deveria ser impossível de acontecer devido o amor diferente que sentimos por essas pessoas? Pois é! Toda vez que penso no Burro, me vem um sentimento de culpa. Gosto demais dele e sei que ele também gosta demais de mim e não queria que esse sentimento mudasse. É o que eu penso."

Bom, já que ter qualquer desejo sexual pelo Burro era proibido, tinha que me conter ou procurar alguma alternativa para suprir esse desejo que sentia por ele. Na época em que se passava a história, teve a chegada da internet (pelo menos na minha casa).

"E detalhe, era internet discada, daquelas que você precisava esperar chegar meia noite para "comer" um pulso telefônico apenas."

 Descobri na internet outros mundos e maneiras de me "aliviar". Era mágico eu ver dois homens se beijando e se pegando a um simples click do mouse. E depois de descobrir como fazer downloads, comecei a me viciar em filmes completos. Viciei tanto que em 01 ano, eu já tinha baixado mais de mil filmes, sem falar na coleção de fotos que eu armazenava numa pasta bem escondido do meu irmão. Considerava-me um verdadeiro "Rei da Punheta". Ainda mais vendo sites gays e coisas que nunca na vida tive acesso. Então por um bom tempo eu me contive.

 Sem falar que comecei a frequentar festas de verdade. Aquelas baladas caras com as mulheres mais Tops da cidade. Eu e o Burro éramos tão tarados, que se não pegássemos nenhuma mina na festa, nós íamos à zona para poder transar, só para garantir que transaríamos todas às noites que saíssemos. Noite boa para nós, era noite com sexo. Ter carros, minas e um bom trabalho, era tudo que eu precisava para passar a vida, sem falar no Burro. Desde que eu o conheci, há 06 anos, nunca fiquei um dia sequer longe dele. Nem com meu irmão de sangue, eu ficava tanto tempo grudado. Nós andávamos tão juntos e nos gostávamos tanto, que ficava explícito para nossa família a quão importante era a nossa amizade. Nossos pais, nem ligavam mais se ele entrasse a qualquer hora em casa ou vice-versa, se abrisse a geladeira, tomasse banho, às vezes, até atender ao telefone de casa, minha mãe estava pedindo para ele fazer.

O Burro, para mim, era a pessoa mais perfeita que eu havia conhecido na vida.

"Que eu já havia conhecido? Será que foi a pessoa perfeita mesmo, ou será que se o Murilo não tivesse se mudado e parado de falar comigo, não teria sido outro amigo perfeito?" – pensava sempre que eu me via admirando um pôr-do-sol.

Aquela dorzinha que sentia no peito sempre que algo me lembrasse a ele, eu nunca mais havia sentido.

"É leitores, nem me lembrava mais de como tinha sido minha vida sem o Murilo. Só mesmo escrevendo aqui, eu pude fazer uma autópsia na minha adolescência. Em seis anos, eu fui apaixonado por dois homens. Dois homens que me encantavam e que eram totalmente diferentes."

Mas hoje, eu estava quase feliz e em paz. Se alguém era importante para mim, esse alguém era: minha família e o Burro. Só não estava completamente feliz, porque não estava fazendo aquilo que eu nasci para ser, um homem que gosta de homens.

 Tinha dias que o desejo era tão forte que eu chegava a me estressar quando assistia a filmes pornôs. Vendo aqueles homens belos e felizes, namorando e transando. Mesmo que aquela não fosse à verdadeira realidade, era algo que eu queria para mim e, a cada dia, estava ficando pior. Parecia que um leão iria sair pelo meu peito. Não dava mais para, apenas, pegar mulheres, eu tinha que começar a ter relações de novo com homens. Ainda mais agora que eu tinha quase vinte anos, estava ficando insuportável.

"Precisava urgente de um homem, mas onde?"

Foi com 20 anos que tive a minha segunda decepção comigo mesmo. A primeira foi não juntar grana como o Burro para comprar um carro e, segundo, ele conseguiu passar no vestibular em Biologia na Universidade Federal daqui.

- Por que você está triste enquanto todos estão felizes? – perguntava ele na sua festa surpresa após o anúncio dos colocados.

- Não liga pra mim, não! – disse indo até a sacada para ficarmos a sós.

- Você está triste porque eu passei no vestibular? – perguntou ele dando uma golada grande de cerveja – Você há meses sabia que eu ia prestar!

- É que eu não "botava fé" nessas coisas de vestibular – disse dando um golão também.

- Você não "botava fé" no vestibular ou em mim? – perguntou ele buscando meus olhos – Por que você não me encara? Quem foi o cara que sempre me disse que jamais deveríamos desviar o olhar enquanto estamos conversando? Para com isso Alan, poxa?

- É isso mesmo Burrão. Eu não esperava que você passasse logo de cara nesse vestibular! – disse o fazendo abrir um sorrisão.

- É só isso? – perguntou ele vindo para um abraço.

- Por que do abraço? – disse espantando.

- Se for por isso eu me matriculo e espero você passar, o que acha? – disse ele com aquele sorriso torto.

- Acho que você bebeu demais! Vamos você tem uma festa pela frente – disse indo de volta para sala.

Antes que eu pudesse dar mais um passo, ele me agarrou pelos braços e me colocou de volta onde eu estava.

- Eu estou falando muito sério. Se o problema é te esperar, não me custa nada – disse ele ainda sorrindo.

- Imagina que eu pediria algo desse "tamanho" – disse rindo de sem graça.

- Você até agora não me deu uma posição séria. Eu estou falando de homem para homem e você não!

- É porque não tem cabimento você fazer algo desse tipo – disse dando outra golada.

- Alan, você quer ou não que eu te espere? – perguntou ele dando uma risada gostosa enquanto me chacoalhava.

"Como ele estava lindo, todo feliz daquele jeito!"

- Você faria isso? – perguntei com medo da resposta.

- Com maior prazer do mundo!

- Então eu quero! Eu quero que você me espere - disse soltando uma risada alta.

- Então me de um abraço? – disse ele abrindo os braços para me receber.

"Lógico que sim, meu anjo!"

Fui até ele e o abracei com toda força que tinha no meu corpo naquele momento e, espontaneamente, dei um beijo na sua bochecha. Ele retribuíra o beijo.

- Uou! Como tu tá forte rapaz! – disse ele perdendo o equilíbrio.

- Vamos antes que ache que nós somos um casal – disse soltando dele.

- Para com isso! Você deveria se preocupar com seu amigo aqui ao invés dos outros – disse ele ficando com cara triste.

- Desculpa Burrão, não quis ofender! Você é meu melhor amigo, eu te amo de verdade, mesmo você sendo ruivo – disse ele me puxando para outro abraço.

- Eu também te amo, mesmo você sendo sem definição alguma de raça – disse ele caindo na gargalhada.

"Eu te amo com todas as minhas forças, rapaz do sorriso torto!" – pensei comigo mesmo.

- Agora vamos? – disse apontando para sala.

- Vamos!

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GALERA, GOSTARIA DE AGRADECER A LEITURA DE HOJE E, SE PUDER, DÊ UMA FORÇA VOTANDO E COMENTANDO MEU POST. O LIVRO DEVE SAIR ATÉ O FINAL DO ANO. AGRADEÇO A GENTILEZA!


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