40 - SANGUE RUIM (LAYSLA)

Móveis revirados e quebrados, uma armadura caída no canto perto da janela e uma cama sem colchão, foi o que encontrei no quarto de Madelen.

O chão, ao redor do dossel, o piso de madeira parecia apodrecido. Com certeza contribuía para o odor azedo e abafado entranhado naquele lugar.

- Foi aqui... - Flidais me acompanhava. Olhei para trás. Ela já estava em sua versão humana.

- A mãe dele morreu aqui? - perguntei com dificuldade, tapando o nariz.

Ela assentiu e se aproximou.

Reparei em ramos secos de arruda, alecrim e verbena cobrindo as brechas da porta e das janelas. Lastros de sal também nos mesmos lugares, ingredientes usados para afastar maus espíritos.

- Isso não faz sentido... Se fosse para impedir que o espírito da rainha entrasse no castelo, isso deveria estar do lado de fora...

- Mas o rei não queria afastá-la. Pelo contrário, ele desejava mantê-la aqui, aprisionada, como punição. Luigi não queria que o espírito dela se libertasse...

Fitei Flidais, assustada, mas compreendia o ódio do vampiro por Madelen. Tirei a mão do rosto, o cheiro não mais me incomodava. Estava imersa na história.

- Não sinto ninguém aqui... Eu saberia se estivesse... Minha conexão com a Travessia me avisaria, mesmo que eu não a visse.

- Está certa, ela se foi. A antiga rainha não era uma pessoa ruim, mas suas últimas palavras a transformaram em um monstro.

Respirei fundo, julgando Flidais uma deusa ingênua.

Caminhei até a armadura e me agachei para observá-la. Provavelmente era do antigo rei.

- Luigi estava exatamente aí onde você está, Laysla... Quando sua mãe gritou por ajuda...

Meu coração apertou ao me lembrar da idade que ele tinha durante a tragédia.

- Ele viu a sua morte? Ele só tinha 13 anos...

- Ele viu muito mais do que isso - suspirou Flidais, pensativa, tocando uma das colunas robustas do dossel de madeira escura. - Por trás da imagem bela e poderosa, havia uma mulher depressiva. Não dá para culpá-la...

- Como não?

- Laysla, é muito mais profundo do que pensa. Começou antes dos avós paternos de Luigi se apaixonarem. Eles eram de povos distintos, inimigos um do outro. A avó Ethlinn vinha de uma linhagem de guerreiros de grande estatura, fortes, extremamente cruéis e violentos. Vivia como prisioneira no próprio reino, porque seu pai, Balor, temia que uma profecia se cumprisse: ele teria um neto que o mataria.

- O bisavô de Luigi...

- Sim, o rei guerreiro de um olho só... Ethlinn foi visitada por Cian. Então engravidou. Tentou esconder do seu pai, mas foi impossível, ela carregava trigêmeos.

- E o que ele fez? - Minha voz, coberta de apreensão, ansiosa para não encontrar familiaridade no desfecho.

- Ele mandou matar os recém-nascidos.

Faltou-me ar. O vampiro agiu comigo como seu bisavô agiu com o seu pai.

- Luigi sabe disso? - perguntei, imaginando se a ideia perversa que teve veio das histórias que ouviu do seu bisavô.

- Não... Ele nem sabe que o pai dele não era um homem comum...

- Então o que ele era?

- O povo de Balor eram seres que povoaram o mundo com caos. Agiam como animais, apenas por instinto. Deles nasceram várias criaturas monstruosas. Eles eram monstruosos. Mas Ethlinn, apesar de ter o seu sangue, era doce e bela... Eles eram raça de semi-deuses.

- Luigi tem esse sangue... Sangue ruim... - A frase ficou suspensa no ar. Eu a repeti mentalmente, tentando entender o peso do significado.

- Ele também tem o sangue de Cian. O avô dele lutava ao nosso favor. Concedemos o poder a ele.

- Não estou acreditando... Vocês usaram os avós de Luigi, como fazem sempre. Queriam que Lugh nascesse para executar a missão que devia ser de vocês...

- Laysla, você não entende...

- Não diga que não entendo... Vocês salvaram os outros dois bebês? - perguntei, com repulsa, prevendo que negaria. E ela ficou calada. - Droga! Vocês são deuses, se esqueceram? Vocês é que deviam salvar o mundo, não nós!

- E eles eram semi-deuses! E em grande quantidade! Não havia muitos de nós quando a batalha começou. Antes dela, tentávamos ser justos, apaziguando a humanidade e acabamos eliminando os nossos deuses perversos. Mas no final das contas, precisávamos do poder deles... Da frieza deles, mas estavam mortos...

Soltei uma lufada sarcástica: - Você fala como se os que sobraram fossem maravilhosos. Olha o que Luigi, Kairon e eu passamos na outra vida por causa de vocês... Vai me dizer que Dagda e Morrigan são bons deuses?

- Os três não sabem nem um terço do que aconteceu antes da vida que se recordam...

Semicerrei os olhos com a sua provocação.

- Está falando do fruto da discórdia? - indaguei, sentindo que estava certa.

- É, Laysla... O fruto da discórdia...

- Se ele existiu na minha primeira vida, você sabe quem é o pai dele.

- Engano seu... Vivia na floresta agarrada aos dois homens..

- Com os dois? - espantei-me. Isso explicava os nossos sentimentos. Eles se repetiam por causa da primeira vida.

Enquanto eu refletia sobre a ligação que Kairon, Luigi e eu tínhamos, a deusa se dispersava. Caminhou até a porta e encostou o ouvido na madeira. Então a segui, como alguém suplicando por esmola.

- Me diga tudo o que aconteceu... Por favor, Flidais.

- O vampiro já está aqui, Laysla... Tente-o fazer se lembrar do dia que sua mãe faleceu... Leve-o ao esconderijo - pediu, andando de um lado para o outro.

- Mas eu não posso fazer isso. Ele... Ele sofre só por cogitar...

A divindade se aproximou, segurou a minha mão e me deu as instruções:
- O esconderijo dele está atrás da pequena porta. É todo rabiscado... Eu não consigo entender o que ele desenhou e escreveu ali. Você precisa levá-lo até ele. Existem muitos mistérios revelados lá. Deve ter alguma pista de quem esteve aqui naquele dia e roubou o olho de Balor..

- E por que guardariam um olho? - Estranhei. Mas antes que Flidais me respondesse, ouvi um grave rosnado e em seguida o meu nome. - Merda! - Era o vampiro se aproximando.

- Vá, Laysla... Você tem que ir.

- Luigi nunca vai aceitar. Talvez eu posso decifrar contigo...

Flidais chegou perto da portinhola, me fitou e soltou um longo suspiro:
- Não terá tempo, nem disposição, estará grávida em breve... E o seu filho, Laysla, precisa desse olho.

- Ah, não... Não... O que estão querendo com ele?

De repente, o novo rosnado nos interrompeu. Luigi parecia estar a apenas dez metros de distância.

- Tente convencê-lo... - Ela disse, subindo pela portinhola. - Dagda, está trazendo Balor de volta...

Fiquei sem reação por alguns segundos, sentindo minhas pernas fraquejando pelo pavor. Os deuses colocariam o nosso filho como um peão numa batalha contra um monstro. Jamais permitiria essa injustiça.

Corri, tentando alcançá-la. No entanto, quando entrei na passagem secreta, não havia nenhum sinal de Flidais.

Eu tinha muitas perguntas não respondidas, que me colocavam numa posição de uma difícil escolha. Talvez eu não devesse ter filho. Talvez o mundo devesse sucumbir.

- Laysla! Cadê você? - O grito de Luigi fez gelar o meu sangue. O rei estava muito perto. Muito perto.

Não tinha para onde fugir, nem me esconder, o meu cheiro e as batidas do meu coração me dedurariam. E ainda um enorme obstáculo estava diante de mim. Como escalaria até o forro? Como eu consertaria os degraus daquela escada a tempo?

Já aceitava o fato de ser pega no lugar indevido. Mas, covarde, pensei em deturpar por um momento a história.

Em um nível de desespero exacerbado, acabei criando a desculpa mais tosca, a qual não enganaria nem uma criança.

Engoli em seco, me deitei no chão e fechei meus olhos. Minhas pálpebras e supercílios sofriam com espasmos.

Não demorou mais que alguns segundos para eu sentir o impacto da sua chegada. O piso estremeceu com o impacto da aterrissagem dele.

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