37- QUEM É A GRÁVIDA ENTÃO? (KAIRON)


Assim que cheguei na vila, fui direcionado para a tenda do líder. A mesa dele estava farta com carnes, pães e frutas frescas e um copo cheio de vinho. De baixo dela, um pequeno caldeirão de ouro, por onde imaginei que a provisão chegava, enquanto nós os moradores tínhamos o nosso grande caldeirão de barro ensanguentado por causa do sacrifício e ainda sofríamos com a fome.

Michel me olhou como se visse um fantasma. E a idosa em pé ao seu lado, semicerrava os olhos, parecendo sondar o meu cérebro.

— Por que voltou? Onde está Laysla? — perguntou ele se remexendo na poltrona em que estava sentado.

Cruzei os braços e rebati com desaforo: — Deve estar trepando com seu irmão.

— Como sabe que...? Foi ela que te contou? Falaram de mim nessa tarde então.

— Bom, só elogiei o meu líder.

— Hum... Tenho as minhas desconfianças. Cassandra, me diga uma coisa... — Michel falava e eu reparei o que faria assim que a chamou. Tentei pensar em outros assuntos, evitando a varredura que a híbrida faria na minha mente. — Me diga se é verdade o que ele disse.

O que aquela velha era? Vampira com certeza, por causa daquele cheiro ferroso nojento. Mas também tinha uma fragrância cítrica adocicada de flores silvestres como beladona, mandrágora e meimendro, semelhantes às de todas as bruxas que eu conheci na floresta nesses meses de fuga, inclusive o mesmo cheiro de Laysla. Mas nela, eu tinha que admitir que, embora fumegando de ódio, tudo era mais suave e gracioso.

Eu não conseguia me concentrar. Manipular as lembranças exigia uma preparação prévia. Tudo que passava pela minha cabeça era a conversa em que a bruxa disse que me mandaria um mensageiro. Michel certamente me acharia um traidor.

Olhei de esguelha a saída da tenda. Havia dois lobisomens parados um de cada lado. Pelo cheiro, detectei quem eram eles. Analisava se me deixariam escapar, caso eu precisasse fugir. Nenhum deles era confiável. Amigos íntimos de Alípio não poderiam ser considerados meus. Todavia, contrariando toda as hipóteses que eu formulava, viver como prisioneiro, ser morto como um exemplo do que aconteceria aos demais traidores, ter a família assassinada em minha frente, fugir e não poder nunca mais ver os meus pais, filho e esposa.

De repente, a velha respondeu: — O jovem não mentiu.

Claro que menti!

Um semblante estável era o mínimo que eu podia exibir para somar a encenação dela. Se ela me salvava era porque tinha potencial para traí-lo.

— Tudo bem, Kairon. Imaginei que fugiria com a rainha... Não sabemos o quanto isso nos afetará. Luigi tem uma bruxa com ele. Juntos, se fortalecem. A garota com certeza queria ter a lua de mel dela contigo, mas foi um covarde.

— Sinto te dizer, mas está equivocado. Ela ama ele...

— É impossível. Ele não pode ser amado.

— Eu vi com os meus próprios olhos ela demonstrando esse sentimento...

Michel olhou para Cassandra indignado. Suspeitei que viesse dela a informação do que eu sentia por Laysla. A velha não estava do meu lado, nem do dele. Eu tinha que ser rápido em descobrir o seu motivo de estar no nosso reino para me manter em segurança.

— Amanhã irei visitar a cidade. Falarei com os estrangeiros... — O líder se levantou.

— Esses homens mataram os nossos, se formos até eles, chamará a atenção novamente para nós.

— Não, Kairon, não vão nos atacar. Você vai mostrar a sua besta e ficarão encantados...— Michel apoiou o cotovelo em uma caixa grande preta envolta por correntes e cadeados. O que tinha dentro dela, não sabia. — O jeito de retomarmos aos poucos o castelo de Augusto é parecer que somos amigos. Vamos oferecer aliança e contar como está frágil o reino vizinho... — Sorriu com escárnio.

— Há gente inocente nas terras de Luigi. Vão fazer o que fizeram com a gente. Não acha que deveríamos tentar tirar esses invasores daqui? Estamos cansados da guerra. Os velhos e as crianças precisam de um lugar de paz. E a minha esposa está grávida...

Assim que mencionei Amice, recordei da visão que tive a partir dos olhos do cervo.

Ela é a mulher grávida..., cogitei, mas vi a velha fazer um gesto com a cabeça. Tinha a sensação de que negava a minha suposição. Quem é a grávida então?, perguntei mentalmente. Porém não vi nenhuma reação.

Michel, alisou a caixa e continuou o discurso:

— Quem garante que o vampiro não atacará primeiro? Estamos tão desfalcados quanto ele. Vamos unir forças com os estrangeiros que estão perto de nós. Farei conforme a sabedoria de Dagda.

Sabedoria?

— De fato o bom Dagda tem te abençoado, vejo pelo o tanto de alimentos em sua mesa. Provavelmente não conseguirá comer tudo isso sozinho antes que estrague. Não quero parecer desagradável, meu líder, mas talvez, também na sabedoria de Dagda, perceba que o melhor pode ser repartir.

Michel mostrou um sorriso largo debochado e me pediu para que saísse. Pensei que tinha exagerado no sarcasmo, mas depois de um tempo reparei as mulheres mais jovens sendo convidadas a sua tenda. Era lamentável o que ele fazia, oferecia a elas a troca de favores. Lógico que não se importaria de agradar o povo, se limitar a comida lhe dava muitas vantagens.

De acordo com as novas regras impostas, os soldados receberam porções equivalentes a obediência. E como posso dizer, a submissão não era o meu forte. Entendi que era uma maneira de tentar nos doutrinar. Mas enquanto isso, o pouco que eu tinha reparti também com meus pais, porque os idosos não foram contemplados na partilha. Reparei na expressão faminta e de preocupação no olhar de Amice quando minha mãe retirou mais um pedacinho da broa de milho. Eu sabia que as mulheres sentem a necessidade de se alimentar mais vezes quando estão grávidas. Então pedi para ir ver com Alípio se tinha sobrado algo, já que eu não faria, pois estávamos brigados. Mas ela se negou, disse que era humilhante. E realmente era. Então me compadeci e abri mão de quase toda minha parte.

Saí para caçar logo em seguida. Eu estava fraco, precisava me esbarrar com animal urgentemente. No entanto, na floresta não havia vida, porque as queimadas durante as invasões fez com que a fauna desaparecesse daquele lugar e nos deixasse desamparados. O último animal que vi em meses tinha sido o grande cervo. Eu sabia que com aquela estatura e com a sua beleza de uma presença esplendorosa, ele era uma criatura sobrenatural. Todavia, com a fome que eu estava, não passou pela minha cabeça orar para ele pedindo por um milagre. Salivava só de me imaginar despedaçando a sua carne macia e suculenta, arrancando-a dos ossos brutalmente, enquanto os quebrava com os dentes.

Passei a madrugada inteira solitário. Os outros lobisomens foram fazer a vigilância da vila e eu perambulava como um errante, desorientado. Saí das matas e fui parar no meio da estrada durante o Sol. A minha visão de lobo turvava, pensei que o homem que se aproximava fosse um delírio. Entretanto, lembrei do seu cheiro, do seu rosto, ele esteve perto de mim no dia anterior, no casamento. Era um dos guardas do rei inimigo. Fiquei tão ansioso e senti tanta raiva por isso. Eu desejava que fosse algum recado da rainha, quando há poucas horas jurava nunca mais querer vê-la. E para piorar o misto de sentimentos que eu desfrutava dentro de mim, o soldado confirmou que estava ali por causa dela, mas que a mensagem era para Cassandra.

Foi inevitável pensar que as duas bruxas estavam mancomunadas. Mas o que eu deveria fazer? Simplesmente avisaria a velha que a rainha a queria em seu reino ou usaria o recado ao meu favor?

Aguardei Michel se preparar para a missão. Baseando-me no dia anterior, antes de sairmos ao encontro do vampiro, o líder exigiu ficar sozinho em sua tenda para fazer a sua oração a Dagda. Ele pedia a sua benção, pensei que fizesse o mesmo e estava certo.

Quando chegou a hora, vi Cassandra aparecer no meio de nós, vestindo a sua capa preta e o capuz na cabeça. Os seus cabelos enrolados sobressaiam pelas laterais, emoldurando o rosto enrugado. Ela se afastava e eu a seguia. Parou de costas na entrada da floresta. Ousado, toquei o seu ombro. E antes que eu abrisse a minha boca para falar qualquer coisa, a velha híbrida soltou inesperadamente:

— Não vai me contar sobre a rainha?

— Não sei se deveria confiar em vocês? — Retrocedi dois passos.

— Como não, se ontem eu te protegi? — Ela se virou e abaixou o seu capuz. Franzi a testa observando os seus gestos. — Luigi foi quem me chamou, não a rainha. Ele está com medo que ela morra por causa da hemorragia...

— Como? Do que está falando?

— Não tenha medo, caçador, Laysla ficará bem — A forma que me chamou me remeteu a algo tão familiar, contudo, assustador. — A grávida do presságio que recebeu é ela. E em breve você será chamado para fazer parte disso...

Fiquei calado todo aquele dia, duvidando da veracidade do que me contou.

A missão ocorreu da maneira que Michel esperava, os estrangeiros firmaram a aliança e nos convidaram a permanecer no antigo castelo do conde Augusto para o jantar. Sentado à mesa, bebia como nunca bebi antes, assistindo os rebeldes bajulando os anfitriões e eles gargalhando enquanto o nosso líder explicava como deveriam capturar um vampiro. Quando mencionou o nome de Laysla, me levantei. A curiosidade pela bruxa foi maior do que pelo rei. Eu sabia qual era a intenção deles com ela. As perguntas passaram do tamanho dos seus poderes para as proporções das partes íntimas do seu corpo.

Quis me transformar e atacá-los, porém morreria em poucos segundos, visto que o salão estava cercado por centenas deles. Eu estava furioso com o que nos sujeitamos, festejamos com quem matou os nossos parentes e amigos.

A festa perdurou até a tarde do dia seguinte, me mantive um pouco mais afastado, tentando evitar que a minha impulsividade me comprometesse. Andei pelos jardins do pátio, havia um caminho cheio de macieiras. De repente, quando parei em determinado espaço, olhando a terra preta e úmida no chão, comecei a me sentir sufocado. Tinha algo de errado naquele lugar, apesar da sua beleza e do frescor do rio cujas águas cristalinas corriam ali perto. O que eu sentia era a sensação de morte. Como se eu visitasse um enorme cemitério.

A tropa chegou em casa no meio da noite. Amice e Henry foram me receber com abraços, estavam preocupados como o restante dos moradores com os seus familiares envolvidos. Todos entendiam a gravidade do acordo que ofereceríamos aos invasores.

Minha esposa, meu filho e eu ficamos um tempo conversando. Falávamos de assuntos bobos, coisas que não fazíamos há um tempo. Esperei que as horas avançassem e o sono deles chegasse, logo os coloquei para dormir com um beijo na testa.

Já era madrugada quando caminhei para a floresta, obstinado a fazer o que planejava enquanto comia o banquete dos novos aliados: iria encontrar Laysla e Luigi.

A espada de prata pertencia ao rei. Fui até o esconderijo onde a enterrei, após Henry ter me mostrado. Aquela arma colocava a minha vida em risco, porém era a forma de provar ao vampiro que estava indo em paz.

De repente, escutei uns passos atrás mim e o odor ferroso entrou pelas minhas narinas.

— O que está fazendo com a espada do meu pai? — indagou ele, quase rosnando.

— E o que está fazendo nas minhas terras, seu sanguessuga dos infernos?


É minha, gente! Se você é uma leitora fã do vampiro deve ter ficado com saudade dele nesses dois capítulos. Sorry! Mas já estava na hora do caçador aparecer. O próximo capítulo estará bombástico, só pra vcs saberem. rsrsr Beijinhos!

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