19- CRAQUELADO E ACABADO (LUIGI)
Ela repousava lindamente sobre a cama, coberta por lençois marfins. Acariciei os seus cabelos escuros e os removi de cima do seu pescoço. A mordida que eu lhe dei deixou sua pele arroxeada envolta dos furos que estavam longe de cicatrizarem. Devagar, me aconcheguei ao seu lado, ansioso para degustar do seu sangue. Eu encarava sua jugular, escutava a pulsação que transitava por ela. Era angustiante a espera do seu despertar. E quando dei por mim, já tinha retirado minha máscara e roçava meus dentes afiados na derme arrepiada.
Laysla abriu os olhos e saltou aos berros da cama. Com a mão no peito, encostada na parede mais distante de mim, ofegava, tentando se recobrar do susto. Entendi o que passava.
— Vou colocar a máscara de volta... — disse, levantando da cama.
— Luigi, espera.. — pediu, vindo até a mim. — Não tem nada a ver com a sua aparência... Eu só não esperava ver alguém do meu lado — Laysla segurou o meu rosto com as duas mãos e o ficou analisando por alguns segundos — Os seus lábios... A pele em volta dos olhos... Você está se regenerando, isso é bom... — concluiu animada.
— Não acho que teve uma melhora...
— Como sabe? — Ela franziu a testa, desconfiada. Dei de ombros, me fazendo de inocente. — Andou se olhando na mente de todo mundo, pelo visto.
Coloquei minha máscara e admiti: — Está certa. Você me conhece muito bem. Eu vi, estou terrível. Pareço até o meu irmão nos seus tempos de Ghoul..
— Ah, que isso, Luigi? Não é para tanto... — falou, enquanto voltava para debaixo das cobertas e se deitava. Parei na beira da cama. — Talvez só o cheiro parecido, antes do banho que te dei...
Puxei o travesseiro embaixo da sua cabeça e o joguei sobre ela. Laysla soltou a risada mais genuína que eu já havia presenciado. Seria complicado não confundir os seus trejeitos agora que não estava mais na defensiva.
— Vai mesmo voltar a dormir? — Eu cutucava a ponta do lençol, tentado a tirar de cima dela.
— Luigi, ainda está escuro. Devem ser umas 4 da madrugada...
— Está levando tempo demais para amanhecer. Já fiz a ronda quarenta e sete vezes do lado de fora. Não tem ninguém vindo invadir o castelo hoje a noite. Está tudo tranquilo, mas ao mesmo tempo, me sinto entediado. Não tem mais nada para fazer...
— Não dá para inventar outra coisa? Fazer o que você fazia antigamente antes dos rebeldes?
— Não.
— Por quê?
— Porque praticamente eu só pensava em como te encontrar.
Laysla ficou sem palavras, mordeu o canto do lábio parecendo constrangida. Eu daria tudo para saber o que passava na sua cabeça, mas ela sempre usava a magia perto de mim, porque sabia da minha falta de limites. Enfiei as mãos nos bolsos da calça e, caminhando ao redor da cama, ela me seguiu com o olhar intrigado.
— Bom, Laysla, eu... Eu acho que vou à biblioteca... Vou ficar por lá planejando outra coisa... O casamento falso... Um baile de máscaras...
— Uma máquina do tempo.. — sorriu sonolenta e estendeu a mão. Segurei-a sem total compreensão. A bruxa era indecifrável. O que ela queria com aquele gesto, me pedir para ficar ou se despedir?
Tentando não me iludir, soltei-a e rumava para a porta, mas ao ouvir o som de batidas, olhei para trás por cima dos ombros.
— Fique aqui comigo. — Ela batia no assento acolchoado da poltrona, próxima a cabeceira da cama. — Podemos conversar até eu pegar no sono de novo... — bocejava, acabando com a expectativa de um diálogo longo. Fiz o que pedia, hipnotizado pela maneira carinhosa que me fitava. — Eu quero entender o que está acontecendo, e saber por que me largou sozinha quando a gente estava... É... Estava... Ah, você sabe...
— No encontro de almas — completei. — Eu sinto muito, foi preciso. Os soldados chegaram batendo na porta do meu quarto. Eles não tinham esse costume, eram o menos invasivos possíveis. Estranhei e os atendi. Disseram que um lobisomem tinha atravessado a fronteira para a cidade e estava atacando as casas. Não pensei muito, nos preparamos e fomos. Achei que fosse Alípio vindo te pegar, já que... Já que não era Kairon, porque estava no calabouço. Mas me enganei.
— E quem era?
— Havia muitos outros. O lobisomem foi fugindo para a floresta, achei que acabaria nos levando ao paradeiro da harpa, logo o seguimos... Agora, eu me ouvindo falar contigo isso, vejo que fui precipitado. Tinham oito lobisomens nos esperando. Me sinto culpado por todas as mortes...
— Você não tinha como imaginar.
— Eu sei... Eu sei... Mas eles foram destroçados brutalmente...
Ela tocou minha perna e delicadamente a esfregou, me confortando. Cobri sua mão com a minha. E como quem dita as ordens, ela retirou a sua. Talvez percebeu com a minha atitude, que a proximidade já estava demasiada.
— Eu deixei os corpos dos meus homens para trás. Não tinha mais nada o que eu podia fazer. Mesmo com a espada de prata do meu pai, eu era só um... Eu... Na verdade, tive medo de eu não te ver nunca mais, então fugi. Me escondi como um covarde numa casa toda quebrada. Era uma aldeia. As outras casas também estavam parcialmente demolidas. A aldeia deveria ter sofrido invasões ou alguma coisa parecida... Eu só sei que na que eu estava, tinha alguns animais amarrados. Acho que alguém ainda vivia lá, mesmo com a maior parte do telhado descoberta. E também dava para escutar que estavam por perto, porque cantavam. Andei devagar no meio das cabras e galinhas. Eu vi que os animais me encaravam como se a qualquer momento pudessem me dedurar com os seus barulhos... Mas o som dos camponeses era tão alto que me arrisquei. Fui até o fundo da casa e pela fresta na parede vi que se reuniam numa área descampada antes do trigal. Eles festejavam de um jeito diferente. Não que eu estivesse familiarizado com essas festas, mas... Estavam em círculo em volta de um recipiente redondo de barro de uns 2 metros de diâmetro, que parecia um enorme caldeirão adornado com flores no seu exterior. Eu sabia para quem era aquele culto e não era para o Deus Cristão. Laysla, eles deveriam ser cristãos. Eles eram até pouco tempo.
— E o que isso significa?
— Eles estavam adorando a Dagda. O cântico que entoavam não deixou dúvida. "Oh, Deus da bondade e da sabedoria, obrigada pela fartura que nos tem concedido... Obrigada pela vitória."
— Eu não sei nada sobre Dagda. Sei apenas que adotou Kairon.
— Ele é o dono da harpa, da clava que mata e ressuscita e dono do caldeirão que alimenta a quem ele quiser. Os camponeses fizeram um caldeirão para adorá-lo, porque acho que Dagda escolheu abençoar eles.
— E por quê isso seria ruim? É o povo de Kairon, não é? Eu sei que eles estavam passando fome...
— Laysla, você não entende. Michel me traiu. Eu o vi com eles. Eles aceitaram meu irmão como rei... Ele pior do que eu, é cativante, consegue agradar e convencer que façam o que quer. Ele tem lobisomens, tem um dos maiores deuses ao seu favor, tem a harpa... Droga! Ele tem a harpa, entende o meu desespero? Eu preciso pegá-la de volta... Eu tenho que pegar...
— Para quê? Me diz para quê, Luigi? — indagou num tom de repreensão. — Voltaria de novo no tempo para me fazer esquecer de tudo novamente ou manipularia os meus sentimentos?
Meus olhos se prenderam nos seus depois da pergunta confrontadora. Por mais que eu quisesse olhar para os lados, sentia que precisava permanecer com eles firmes.
— O que fez já não é o bastante, Luigi? Eu te perdoei... Estou aqui com você...
Suas palavras duras rasgaram a minha alma, colocando para fora a sensação de vergonha pelos meus atos. Minhas lágrimas ousaram a tentar escorrer, no entanto, as limpei a tempo.
— Esquece essa harpa. Você se colocou em risco, perdeu o exército por causa dela...
— Eu sei — admiti com a voz trêmula.
— Talvez deixando-a com eles, fiquemos em paz.
Haviam acontecido muito mais coisas. Coisas demais para ser narrado enquanto a bruxa estava prestes a pegar no sono. Concordei em silêncio com a sua suposição e acariciei os seus cabelos. Inclinei-me lentamente e beijei a sua bochecha.
— Tomara que esteja certa — disse, mesmo sabendo que era um grande equívoco. Com os olhos pesados, Laysla assentiu. — Durma mais um pouco. Mais tarde, uma costureira virá ao castelo para adaptar o vestido de casamento da minha avó paterna para você... — Ergui-me da poltrona.
— Da sua avó? Não é muito velho? Não tem nenhum da sua mãe?
— Laysla, Laysla... — Sacudi a cabeça. — Está levando essa cerimônia muito a sério. Desse jeito, acreditaremos nos votos. E não queremos fazer essa união dar certo ou queremos?
— Não... É lógico que não... — falou em meio aos bocejos.
— Então não se importará com um vestido craquelado e acabado igual ao nosso casamento. — Dei de ombros.
Laysla bufou decepcionada. Ela não tinha ideia de que o vestido antigo e um pouco amarelado de minha avó tinha um valor maior do que o traje de minha mãe. Jamais deixaria que usasse as vestes de uma rainha que traiu o rei. Na verdade, não havia mais nada dela no castelo, apenas um desenho que fiz na porta enquanto era uma criança. Todos os seus pertences foram destruídos na frente do povo, como promessa de que vingaria meu pai. Eu me perdi no cumprimento da minha palavra quando Laysla entrou em minha vida. Mas ainda sentia que tudo estava interligado. O que eu não enxergava?
Tem alguma leitora ansiosa com o casamento?
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