18- TE DAREI TUDO QUE QUISER (LAYSLA)


Entrei de mãos dadas com Luigi no castelo. Os funcionários já estavam acordados, olhavam assustados para o rei que não usava máscara pela primeira vez depois de anos. Eles se prostraram e eu os via com olhares vacilantes, incertos se poderiam nos observar.

Luigi se manteve em silêncio, rumando para seu aposento sem demonstrar qualquer reação. Seu semblante não dava para ser compreendido, pois não lhe restavam muitos músculos no rosto para expressar os sentimentos. Eu o olhava de relance e me esforçava com fervor para ter uma postura condizente com a dele, porque a vontade de chorar retornava ao lembrar da beleza que tinha, um verdadeiro sinônimo de perfeição. Era como dádiva proveniente de deuses, mas entregue por engano a um ser imoral. Sempre foi incoerente. Porém agora, quando o corpo e a alma estavam em equilíbrio, eu achava uma completa injustiça. Um vampiro deveria se curar, mas os minutos se passavam e nenhuma mudança acontecia.

O rei me deixou na porta do meu quarto e sem dizer uma palavra, se dirigiu ao seu. Ele nem me olhou, simplesmente se foi.

Entrei e tirei a minha roupa, enquanto observava o ambiente limpo. Não havia mais resquício de Roseta, o que me fez pensar que os servos estavam acostumados a lidar com situações parecidas, cuidavam dos restos mortais dos seus amigos e parentes.

No tonel a água estava gelada, não liguei, me banhei, permanecendo nele por quase uma hora. Dessa vez água me trazia alívio a pele, mas não fazia o milagre de acalmar a minha mente. Eu me perdia nas memórias, nas sensações e o sentimento de inquietude me pegava. Kairon surgia como o caçador que tentou me matar, como o monge pervertido que compraria a minha virgindade, como lobisomem, como meu irmão, como um simples camponês que abandonou a esposa para fugir com a garota que eles abrigaram. E agora ele estava com uma esposa que não era eu, lutando contra Luigi para dar um futuro melhor para a sua família. Não era por mim, era por ela e... E pelo filho que tinham juntos.

De repente, as lembranças do que vivemos na gruta brotaram na minha cabeça. Não importava quantas vidas se iniciassem, nós nunca deixaríamos de nos amar. Eu sabia que se eu insistisse, Kairon largaria quem quer que fosse ela. Porém o quão errada eu seria, fazê-lo abandonar também o seu filho? Porque certamente sua mãe não permitiria que o visse mais. Eu não podia fazer isso. Era injusto. O caçador tinha a mente preservada, não lembrava do passado. Era fundamental esquecê-lo, porque essa atitude egoísta o causaria sofrimento. Mas também não queria sofrer.

— É isso... Só vai levar um tempo — disse, decidida sobre a minha morte iminente. — Não há mais nada nesse mundo para mim... Assim que Luigi estiver curado eu vou... — Uma batida na porta me interrompeu. — Quem é?

— Senhorita, me pediram para trazer água quente para o banho e toalhas — disse, uma voz feminina.

— Entre — pedi e vi uma garota que não devia ter os seus quinze anos entrar. — Não é muito nova para o serviço? Alguém devia ter te ajudado — Preocupava-me, pois percebia que se esforçava para equilibrar dois jarros que liberavam muitas fumaças. A água devia estar pelando.

— O rei ordenou que fosse só eu, então eu vim.

— O rei? Ele foi até você? — espantei-me, vendo-a assentir. — Você teve medo do... — fiz um gesto, apontando para o meu rosto, ela negou com a cabeça.

— Vossa Alteza estava com a máscara antiga e também disse que eu era a pessoa mais bondosa do castelo. Então achei que não me mataria. — finalizou, derramando as águas dos jarros no tonel, depois colocando uma toalha dobrada na borda dele. Agradeci e ela se retirou.

Não demorei nem mais dois minutos ali dentro, precisava acertar os detalhes com o rei sobre o nosso acordo. Eu tinha aceitado, mas não concordava com uma batalha desregrada contra o povo de Kairon.

Coloquei um vestido na cor preta, todo trabalhado em bordados dourados e pedraria, peguei um castiçal com uma vela acesa e fui ao encontro do Primogênito, me aventurando pela passagem secreta, mergulhando na escuridão daquele labirinto. Eu não lembrava ao certo qual era o caminho, mas tinha certeza que minha intuição não falharia. Então eu vi uma porta e só reparei naquela hora alguns desenhos. Eles pareciam feitos por uma criança. Havia um menino com uma mulher, que acreditei ser sua mãe e um homem, que não possuía rosto. Tinha o aspecto triste, os três no jardim, num dia chuvoso. Tentando me desvincular daquela imagem, bati na porta, mas ninguém atendeu.

Cogitando que Luigi estivesse naquele cômodo, foi difícil aceitar que não me recebesse. Ele estava chateado, compreendia. Só que eu podia confortá-lo, por ele eu tinha ficado. Logo destravei a porta e ao adentrar o local, o encontrei vazio. Bufei, me sentindo uma invasora e mal-educada. Estava constrangida, embora solitária. Depois dei uma volta pelo quarto e reparei sobre a cama uma caixinha de madeira e um envelope do seu lado. Vi o meu nome nele e, intrigada, abri imediatamente.

"Te darei tudo que quiser, desde que..."

— Ham? Que porra de bilhete é esse? — Bufei.

Abri a caixa logo em seguida e me deparei com o meu antigo colar. Sorri ao mesmo tempo que chorava, segurando por entre os dedos o pingente de estrela prateado que tinha sido depositado junto ao corpo de minha mãe no mausoléu. O rei havia pegado, tinha feito a minha vontade. Porém o seu gesto estava atrelado a algo que deixou subentendido no bilhete. Fiquei encucada. No entanto, enquanto colocava o cordão no pescoço, notei algo escrito no fundo interno da caixa.

— Te encontro no jantar. — Revirei os olhos. Pensei que acharia uma resposta. Mas ao contrário disso, Luigi me deixaria no castelo por quase dez horas com mais dúvidas.

Para onde ele tinha ido, depois do que acabara de acontecer? Devíamos estar juntos nos protegendo.

O tempo, diferente do que eu cogitava, não demorou a passar. O meu cérebro já tinha se apropriado da prática da leitura, fiquei a tarde inteira na biblioteca, me entretendo com alguns contos até lembrar da minha época de escritora. Inspirada, voltei a escrever. Quando dei por mim, já era necessário acender as velas.

— Tenho que me preparar para o jantar... — balbuciei, levantando da cadeira e me certificando de pegar cada uma das folhas de rascunho. Não queria que soubessem o que eu escrevia. Embora a chance de existir alguém no castelo que soubesse ler fosse minúscula, ainda tinha o rei. Ele seria o maior interessado naquele manuscrito, porque nele eu descrevia todos os meus sentimentos. E assim como no meu antigo livro, os personagens nos representavam. Luigi era esperto, se identificaria facilmente mesmo com outro nome. Eu não sabia qual seria a sua reação. Ele teria o direito de ler um dia, mas só depois que eu partisse, essa era a minha intenção.

Enrolei as folhas e as guardei por dentro do corpete, mas antes que chegasse no meu quarto, atravessando o corredor que me levaria para ele, vi a porta do salão aberta e através dela, vislumbrei o rei com as vestes e a máscara preta sentado na ponta da mesa com os cotovelos sobre ela e o queixo apoiado nas mãos entrelaçadas. O seu olhar parecia vagar por entre os pratos refinados quando me reparou o observando do portal.

— Não vai entrar? A mesa está posta faz tempo — perguntou ele, se ajeitando no encosto da poltrona.

Avancei pelo ambiente, penteando o meu cabelo com os dedos, depois esfregando as mãos pela saia do vestido, tirava as marcas de dobradura por ter passado o dia inteiro sentada na biblioteca.

Luigi se ergueu e com aquela agilidade de vampiros, chegou até a minha poltrona e a puxou para que eu sentasse. Confesso que sentia saudade da minha rapidez, também do dom de ler mentes. Foi pensando nisso que lembrei de proteger a minha. Seria cansativo ter que bloqueá-la toda vez que estivesse na presença do rei, mas necessário. Ele não era confiável, a invadiria com certeza quando houvesse um deslize meu.

— Obrigada, Alteza — Tentei descontrair, porém ele somente assentiu com a cabeça. É esquisito admitir, mas eu sentia falta da sua arrogância, dos seus comentários sarcásticos, da sua risada alta. Eu queria o Luigi de volta então o provoquei: — O que quis dizer com "me dará tudo o que eu quiser, desde que..."?

— Bom, o que você acha? — devolveu-me a provocação, destampando as travessas.

Levantei o meu prato e ele me serviu. Acariciava o pingente em meu pescoço refletindo na minha resposta. Fiquei um pouco receosa com o meu palpite, mas conhecendo o rei, ele pareceu o provável.

— Me dará tudo o que eu quiser, desde que eu me case com você?

— Não.... Isso já vai acontecer.

— Como assim? — indignei-me. Luigi apoiou o meu prato na mesa e como um menino mimado, cruzou os braços.

— A sua palavra vale alguma coisa, Laysla? Te peço que não me envergonhe, por favor...

— Do que está falando? — indaguei, mexendo na comida e enfiando a primeira garfada na boca.

— Da cerimônia de casamento que será daqui a dois dias — respondeu naturalmente, me fazendo engasgar. O rei deu um tapinha nas minhas costas e colocou um copo de água na minha frente. Engoli todo o líquido de uma só vez. — Passei o dia inteiro planejando. Eu visitei os cardeais e testemunhei que fui abençoado com a chegada da Prometida.

— Mas por quê? — indaguei, depois voltei a comer. Contudo, o rei estava muito perto. Havia nele ainda um cheiro nauseante de algo defumado, mesmo tendo trocado de roupa.

— Precisamos da Igreja do nosso lado, Laysla. Tenho que provar que sou o escolhido de Deus. É o único jeito de recuperar o apoio do povo, eleger alguns soldados e selecionar os sanguinários.

Deixando a comida de lado, larguei os talheres no prato e rebati: — Você devia ser mais generoso, observar de perto quem precisa de ajuda. As pessoas gostam disso. Assim não vai chegar um outro rei e tomar também esse reino. Eles vão ficar satisfeitos em te servir, serão leais.

— Generoso? — debochou. — Toda vez que sou generoso, me apunhalam pelas costas. Eu deixei que Michel escolhesse suas terras e ele escolheu me trair.

— Isso não é verdade. Nem todos são assim — disse e vi o revirar de olhos por trás da máscara. Bufei irritada. — Você sente prazer em ser mal com as pessoas, esse é o seu problema.

— Sabe, Laysla, eu estava gostando mais da sua nova versão... Ela não me julgava, até gostava de vingança...

— Eu não sou a mesma Laysla? Não sou todas elas? — Revoltada, peguei a faca de volta. E mesmo sem saber o que eu faria, ele concordou rapidamente com a cabeça. — Então lembre-se, Luigi, continuo vingativa, do jeito que acabou de dizer que gosta. — Posicionei a faca no meu pulso. — Eu posso simplesmente armar uma única e última vingança, acabando num piscar de olhos com a minha vida... — Apertei os lábios em um sorriso sarcástico. — Agora, pelo amor dos deuses, Luigi, vê se toma um banho. Está fedendo!

— O rei estalou a língua, deu meia volta e soprou a sua resposta:

— Vampiros não precisam de banho.

— Mas você sim! Vai agora!

Luigi me fitou com um brilho nos olhos e não era decorrente de amor, estava possesso por eu mandar nele e se ver impossibilitado de retrucar pois vivia sob minha ameaça.

Calados fomos para o seu quarto. Eu só queria me certificar de que iria cumprir o que eu pedi. Os vampiros não precisavam de banho, isso era um fato, não tinham saúde para se preocupar. Mas ele estava acumulando um sangue seco sobre a pele e músculos que se regeneravam vagarosamente. Em poucas horas, o odor pioraria e certamente me faria vomitar. Dessa forma, acabei numa situação inesperada e, sem jeito, não pude sair da enrascada que me coloquei.

Pelo caminho, já tinha ordenado que nos trouxessem água, toalhas, sabão e bucha vegetal. A rapidez no atendimento gerou a teoria em minha cabeça de que todos sofriam com o cheiro, só não tinham a liberdade de pedir ao rei que se limpasse, porque sabiam que suas cabeças rolariam.

Preparei o seu banho num tonel banhado a ouro como o resto dos mobiliários do recinto. Luigi me olhou, sacudiu a cabeça descrente, porém indiquei com um gesto autoritário que entrasse imediatamente na água.

— Se vou fazer isso, vai me ajudar. Não tomo banho há 18 anos — O vampiro estendeu a bucha e por falta de opção a peguei. Depois ele se virou de costas e sem fazer cerimônia se despiu na minha frente.

Foi a primeira vez que o vi nu. As queimaduras não atingiram muito a área inferior, foram leves, descendo pelos ombros e acabavam nas escápulas. Eu pude matar a curiosidade que tinha há um tempo, ele era exatamente como nos devaneios. O seu biotipo não era um forte exagerado, mas havia muita coisa bem definida para ser elogiada e sua bunda era uma delas.

Luigi, permanecendo com a máscara, entrou no tonel e se sentou. Em seguida me aproximei e me ajoelhei. Enfiei a bucha na água e me assustei com a temperatura. Estava quente demais para uma humana, já para ele não causava dano algum. Passei o sabonete em suas costas e comecei a esfregá-la. Ainda tinha resquício de suas vestimentas de guerra, que ficariam coladas na sua pele, sei lá por mais quanto tempo, se não se limpasse.

Estar ali, coordenando aquele banho, fez com que minha mente voltasse no tempo. Eu conseguia lembrar perfeitamente do dia em que Kairon e eu estivemos numa banheira, depois que me pegou na beira de uma estrada. Contrai os lábios, contendo um soluço e continuei fazendo o que tinha proposto. Deslizei a bucha pelo seu pescoço, depois fui descendo para o seu peito. Eu estava atrás dele, seria impossível me ver chorando. Entretanto, a cada tentativa de travar as lágrimas ,me pegava falhando. Eu fungava, arfava, soluçava descontrolavelmente. Luigi com certeza sabia o que eu passava, mas não me atrapalhou, apenas me puxou pelos antebraços, me fazendo abraçá-lo. Deitei minha cabeça em seu ombro e fiquei naquela posição um tanto desconfortável que contraditoriamente me confortou. Assim que o meu choro cessou, me sentei na borda do tonel e o encarei com ternura.

— Me desculpa... — Tímida, sussurrei.

— Te desculpar? Mas...?

— Estou aqui chorando por outra pessoa depois do que me falou sobre como é não ser correspondido... Não quero que rasgue o seu coração e o costure toda vez que eu olhar e sorrir para você. Eu não te odeio, mas...

— Não me ama — completou sem me olhar, estourando uma das bolhas na superfície da água, como se o que dissesse não o atingisse. Eu precisava me consertar, o que ele pensava não era uma total realidade.

— Eu não te amo o suficiente para ficar por muito tempo nessa vida. Sei o que quer fazer. Te conheço mais do que imagina, Luigi.

Ao instigá-lo consegui sua atenção. O rei ergueu a sua cabeça, aguardando que eu finalizasse.

— Você quer me manter aqui não só porque precisa de ajuda, é porque acha que de alguma forma irei me apaixonar por você.

— Eu não...

— Você não me engana, Luigi. Eu não estou com raiva disso. E sabe o que é engraçado? Passei toda a outra vida, sempre suspeitando que um dia acordaria e estaria tudo mudado. Eu sempre soube que voltaria no tempo. Mas fez diferente de como imaginei, não foi brutal, foi generoso. Você esperou que a minha vida perfeita acabasse naturalmente e te agradeço por isso. Então eu acho que também merece ser feliz. — Suspirei, enquanto me levantava do tonel. Deixaria ele terminar de se limpar, no entanto, o vampiro me segurou pela mão, impedindo que eu fosse.

— O que isso significa?

— Que eu não te farei passar vergonha daqui a dois dias... — Ele me soltou e, com os cotovelos apoiados na borda do tonel, levou uma das mãos ao queixo.

— Então vai se casar comigo?

— Sim. — Não vi o seu sorriso, pois a máscara cobria. Mas eu vi os seus olhos reluzirem quase no mesmo tom azul da pedra do meu colar e se fecharem nos cantinhos. Ele sorria com toda a certeza do mundo. E gostei de vê-lo assim naquele dia trágico.

— Não vejo a hora de ser minha rainha — O rei falava eufórico.

— Não se esqueça que será viúvo em breve — avisei, indo em direção à passagem secreta. Todavia, parei ao lembrar de uma coisa muito importante. — Ah, também não terá direito à lua de mel!

— Ué? Mas por quê? — Virei-me para ele e constatei o quanto estava despojado dentro da água, ajoelhado, se colocava para frente, puxando a toalha sobre um baú. — Eu posso ficar de máscara, se a minha feiura for o problema... — Luigi se levantou de repente, tive que fechar os olhos. — E outra, não queimou aqui embaixo, está funcionando perfeitamente. Eu senti enquanto me dava banho...

— Seu idiota, eu estava chorando...

Ele soltou uma risada cômica. Luigi mentia, eu sabia. Tinha quase certeza de que me acompanhou na ladainha. Sem olhá-lo, dei o dedo do meio e saí andando. Porém ao chegar na porta, espiei e o vi de braços cruzados com a toalha enrolada na cintura, me observando.

Como eu podia fazê-lo desapaixonar?, essa era uma dúvida cruel. Todavia, tinha convicção de uma coisa, não era me tornando a sua rainha. E era isso que aconteceria...

...Em dois dias.

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