17- CASTIGO DIVINO (LUIGI)
O meu mundo desabava. Seria ingenuidade demais dizer que eu não tinha me preparado para esse momento? Alguma hora Laysla iria descobrir, eu sabia, mas não esperava que fosse tão cedo.
Não me encontrava no meu melhor estado. A minha pele tinha se desfeito e pouco que sobrara se misturou a uma malha grossa de metal do meu traje de guerra. Eu segurava a minha máscara, já que as tiras de cetim, que serviam para prendê-la haviam derretido. Eu não tinha ideia de como o meu rosto estava, porém, ao julgar pelas partes de minhas mãos e braços em que eu enxerguei a estrutura óssea, tinha uma enorme chance de disformidade.
A bruxa se virou de frente para mim e eu reconheci aquele seu olhar julgador. Fiquei estático, impactado, assombrado. Laysla finalmente estava de volta.
Com um semblante impetuoso, rangia os dentes e bufava ao mesmo tempo, pronta para extravasar a sua ira sobre mim.
— Me desculpa... — Foi o que saiu da minha boca. Não que eu estivesse arrependido do que eu fiz, porém, cogitei querer ouvir isso de mim. Mas me enganei.
Laysla avançou em minha direção. Esquivei-me dela, parando a uns trinta metros dentro da floresta. Agora era fácil fugir, não era rápida como nos outros tempos. Seu ódio pareceu ter aumentado, devido a esse fato. E via que me xingava de todos os tipos de nomes em seus pensamentos. De repente, me encarando de longe, ela gritou, começando a chorar e soluçar: — Ahhh, como eu odeio você! Eu te odeio!
Laysla fungava, limpava o rosto nas mangas da minha túnica rasgada. Estava com os cabelos bagunçados, toda suja de barro e com pequenas queimaduras, que, ao ler sua mente, via que julgava serem maiores do que eram, porém pareciam decorrentes de uma tarde de brincadeira na praia. Ela tinha um aspecto semelhante aos das crianças que sempre vinham correndo atrás da carruagem quando eu saía às ruas. Um jeito inocente e inofensivo. Entretanto, pensava na perversidade que armava para mim. Eu tinha que acalmá-la. Porém nunca soube fazer isso. Só o fato de eu existir, a deixava em surtos. E então na minha falta de sabedoria comecei o meu discurso um tanto debochado:
— Quer que eu chegue mais perto para que o seu feitiço me pegue, futura rainha?
A bruxa marchou de um lado ao outro, refletindo em como poderia me encontrar desprevenido.
— Pode esquecer, Laysla! Eu sou um vampiro, lembre-se disso, eu não durmo.
Ela estremecia de ódio. Impaciente, passava as mãos pelos cabelos e rosto, questionando o porquê de Alípio não ter me matado. Não vou negar que nessa hora conseguiu me ferir. Ela não tinha ideia do que eu passei naquela noite, nem do que soube, do que vi. Preferi não demonstrar a minha dor, soltando uma risada extravagante e sarcástica.
— Está rindo do quê?! — Laysla perguntou aos berros. — Não é engraçado! Eu estava preocupada com você, quando eu deveria estar do lado deles, me certificando de que nunca mais sairia vivo para me atormentar.
— Preocupada? É sério isso? Preocupada com o quê? Você e Kairon estavam quase trepando dentro de um túnel. Onde isso é se preocupar comigo? Você tinha acabado de aceitar ser a minha esposa, Laysla? Não teve um pingo de respeito...
— Para de entrar na minha cabeça! Para de tirar tudo que é meu! — interrompeu-me, chorosa. — Eu me senti culpada por te trair, quando não tinha nada de errado comigo. Era o meu amor por ele que estava desesperado dentro de mim, pedindo para ser expressado, tentando me dizer que ele era o amor da minha vida, não você!
Aquela fala, o seu trejeito... Nada nela demonstrava dúvida. Novamente não me amaria. Onde eu estava com a cabeça?, me perguntava. Eu queria conseguir deixá-la livre para ir, mas minha mente maligna já imaginava um quarto trancado com feitiços. Sacudia a cabeça, como se pudesse arrancar a ideia abominável que surgia e ao mesmo tempo eu avaliava a minha capacidade de arrastá-la sozinho até o castelo. Gostaria muito que o teletransporte dependesse apenas de mim, pois a levaria para o meu quarto e a prenderia à minha cama com todas correntes e cadeados que encontrasse no meu reino.
— Não foi culpa minha... — Ofegante, continuava. — Nada disso é culpa minha. Você roubou a minha vida. Como eu vou superar ver Kairon com outra família?
— Então não veja! — rebati.
Laysla, boquiaberta por alguns segundos, não me deu resposta, começou a descer o desnível para a floresta. Escorregando, mas se segurando nos galhos das árvores.
— Você... Você é o ser mais doentio que eu já conheci na vida... — Estava séria demais, só não mais que eu. Saltava as raízes grossas de um carvalho e ao mesmo tempo tropeçava nas finas, as mais inesperadas. — Não sei como consegue viver sendo assim... Deve ser difícil...
— Difícil por quê?
Eu perdia paciência para as trocas de farpas. A bruxa não ouviria as minhas clássicas frases dramáticas, se era o que esperava. Mas ela deu de ombros e continuou vindo em minha direção.
Com a mente ainda confusa, por nem todas as memórias se conectarem, isso a desorientava, eu reparava no seu olhar perdido.
— Você planeja tudo, é detalhista, manipulador.. Mas no fundo o controle nunca esteve em suas mãos — Já chegava perto, mas continuei imóvel, não enxerguei maldade contra mim. — Será frustrante para você, se por acaso um dia eu...
— Do que está falando? Não fale, nem pense uma besteira dessa, Laysla!
Foi então que ela parou no meio do caminho. A menos de três metros, vislumbrei as lágrimas encherem os seus olhos quando finalmente recordou que o caçador e ela tiveram um filho. No rosto, o tom de pele, corado pela vida, ganhava um vermelho intenso. Com a voz trêmula, a bruxa admitiu:
— Os sentimentos de todas essas vidas estão me sobrecarregando... Não sei se quero viver outra vez...
— Não! — gritei, avancei na intenção de agarrá-la pelos braços, sacudi-la, ansioso em fazê-la mudar de ideia, porém me desfiz da máscara sem perceber. E vislumbrei o seu semblante pesaroso quando revelei minha nova face.
Laysla levou as mãos à boca, como se assim fosse capaz de camuflar um choro alto e agonizante. Estava com medo de mim? Eu achei que sim, então a soltei e, atordoado, dei alguns passos atrás, buscando na sua memória a imagem que eu tinha. Eu estava fadado a não ter reflexo, não havia um lugar sequer, nem em espelho, nem nas águas, nem mesmo nos olhos de uma pessoa. Nunca saberia, só através das mentes. Mas ela relembrou como bloqueá-la logo naquele instante, provocando o meu lado insano.
— ME MOSTRA! — exigi, agarrando-a pelo pescoço, com a cara praticamente colada na sua. Laysla, embora em prantos, estava firme, negando com a cabeça. Minhas mãos afrouxaram automaticamente, não havia a possibilidade de obrigá-la. Toquei o que restou do meu rosto, a fim de desvendá-lo pelo menos com o tato. — Eu não preciso de você para isso... — murmurei por entre os dentes. — Outros me verão, saberei do mesmo jeito...
— Não, Luigi. Não faça isso... — Ela me abraçou. Pela primeira vez não soube como reagir ao seu carinho, fiquei com os braços estagnados ao lado do meu tronco, observando o castelo, no qual não me resguardei a tempo. Estava desolado porque não conhecia um vampiro que tivesse sobrevivido ao Sol para relatar a sua experiência e pelo grande receio da bruxa em que me visse, reafirmando o que eu cogitava: uma aparência deplorável a ponto de traumatizar e gerar uma compaixão que nem mesmo merecia. Fui eu que reiniciei um novo ciclo e a fazia sofrer por isso, também ordenei a tortura que deixou Kairon sendo queimado a dias no calabouço. — Você vai se curar... Vai ser rápido, a gente se curava...
— Não, Laysla, não vou. Deve ser castigo dos deuses. Eles estão mais envolvidos do que imaginei...
Senti que me olhava e, apesar de envergonhado, a encarei. A bruxa ergueu uma de suas mãos e alisou onde um dia tive lábios. Meus dentes estavam praticamente expostos. O nariz e boa parte do lado esquerdo do rosto não existiam por completo. Triste, deixei escapar uma lágrima, pois me via como um cadáver que eu era, no entanto, nunca assumi ser.
Então Laysla com seu polegar enxugou carinhosamente o sangue que escorria e de repente reparei no seu sorriso singelo: — É isso... O meu sangue pode te curar... Ele sempre te deixou mais forte... Você pode ter todo ele agora... Eu não preciso dele.
Eu não suportava ouvi-la dizer que desistia da vida, muito menos ver que imaginava que a trocaria por algo raso. Poderia viver sem um rosto, estava acostumado a máscara. Agora, estar em um mundo sem ela... Eu a seguiria até o Paraíso, jamais se livraria de mim.
Sinceramente não acreditava na cura, mas saber que estava disposta a me ajudar, me deu brechas para articular uma maneira de mantê-la ao meu lado, ganhar tempo para convencê-la de que era bom para ela. Segurei o seu rosto gentilmente e pedi:
— Eu sei que não quer viver essa vida porque não pode ficar com o Kairon, te entendo. É insuportável amar alguém e não ser correspondido. Você sente o seu coração sendo rasgado diariamente, o costura, mas ao alimentar uma fantasia doentia de que um olhar diferente ou talvez um sorriso mais aberto significa o nascer de um novo sentimento, você mesmo arrebenta os pontos e tudo sangra novamente. O trabalho que teve, a dor, ter que consertar outra vez.. É exaustivo, eu sei... E então começa de novo.... A sensação é horrível e ninguém melhor do que eu para validar o que sente. Mas a verdade é que... Eu nunca precisei tanto de você como agora... Não estou pedindo que me ame. É que... É que eu não tenho mais ninguém em quem confiar. Perdi todo meu exército nessa noite e meu irmão me traiu. Preciso do seu apoio, da sua compaixão, do seu poder... Eles formaram um exército de lobisomens e alguns deuses estão do lado deles... Eu tenho algumas míseras pessoas no castelo que eu poderia transformá-las em vampiras, mas... Mas elas querem me ver morto... Por favor, me dê o tempo de me recuperar. Eu me alimentarei do seu sangue dia após dia, o suficiente para não te transformar e não te matar, porém assim que estiver curado e tiver um grupo de vampiros leais, não te impedirei... Nunca mais te manipularei ou tentarei controlar a sua vida. Aceitarei a sua vontade, qualquer que seja ela... Você pode fazer isso por mim? Pode? Eu te imploro.
Laysla fechou os olhos e, reflexiva, suspirou.
E aí, amigas? O que acham que vai acontecer? Laysla vai aceitar essa proposta?
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