06- OUTRO REI (LUIGI)
Assim que Laysla chegou no castelo, Michel cobrou suas terras. Não imaginei que ele, sabendo que era o meu melhor soldado, sairia porta afora ignorando o problema que passava. Além de lidar com a falha na segurança do castelo, tinha que lidar com o ladrão da harpa. E não era um mero ladrão. Mas fiz o que queria, dei o aval para que escolhesse qualquer uma. Pelo menos me sentia livre do remorso que carregava da vida passada.
Kairon foi entregue a mim, com uma personalidade diferente da que eu estava acostumado. Faltava só um pingo de juízo, o qual já não tinha muito, para separar a sua cabeça do resto do corpo. Ele me desafiava constantemente, certo de que ganharia uma luta justa, somente entre ele e eu. Neguei, é caro. Fiquei me perguntando se a sua confiança se dava por já saber domar o espírito do caçador, porque era ele que eu temia, não a sua besta ridícula.
Ele passou a primeira noite trancado no calabouço do castelo. Não havia lugar mais seguro, com grades e paredes reforçadas com feitiços. Enquanto eu o observava sendo torturado pelos meus guardas, vi que se esforçava para não mostrar que sofria. Até mesmo quando se transformou em lobisomem, demorou a soltar o uivo. Eu sabia o porquê da sua atitude, ele não queria que seu irmão retornasse para ajudá-lo. Porém, eu não tinha a mesma fé na empatia de Alípio. Ainda mais fugindo com um objeto poderoso.
Não foi divertido como pensei que seria. Ver o lobisomem se esquivando do metal aquecido e a raiva transmitida no seu olhar amarelo... Queria que contasse logo para onde levariam a harpa. Mas não, com ele tinha que ser complicado. Então, deixei-os a sós, precisava conferir se Laysla se aprontava para o jantar. Fui até a biblioteca, retirei um dos quadros e pelos furos escondido embaixo dele na parede, observei o seu quarto. Estava vazio. Foi quando me dei conta de que tinha me atrasado para o nosso reencontro.
Logo abri as portas do armário que ficava próximo aos vitrais coloridos, o qual dava vista para o jardim, e removi a tábua lateral encostada na parede estrutural do castelo. Não me preocupei em colocá-la de volta, estava ansioso para encontrar Laysla.
Percorri rapidamente a estrutura oca que contornava toda a residência. Quem olhasse por fora, se contasse todas as janelas e as comparasse com as dos ambientes internos, poderia cogitar que essa matemática não batia. Mas quem era curioso demais para fazer tal coisa?
Em alguns pontos o caminho era muito estreito, outros, baixo. No entanto, em todo percurso uma coisa não mudava, era extremamente escuro, porque as janelas que davam para ele, estavam cobertas por tábuas.
Cuidadosamente destravei a abertura para o salão e quando vi Laysla me esperando, sentada à mesa, fiquei como as crianças que visitavam o parque de diversões em Paris nos tempos modernos. Eu lembrava da euforia, dos gritos histéricos estridentes que irritavam profundamente os meus ouvidos aguçados. Era dessa forma que me sentia por dentro, tendo o grande amor da minha vida tão perto de mim. Estava prestes a explodir de tanta alegria, com um desejo latente que me deixava louco para me aventurar no brinquedo mais perigoso do parque. Mas meus sentimentos não foram correspondidos naquele jantar.
Laysla ainda não me queria. E eu não entendia o porquê, se quando a visitei no sonho, agiu completamente diferente. Ela se entregou a mim. Seu corpo pediu pelo meu.
Logo, comecei a criar hipóteses do que tinha ocorrido quando a buscaram. Não foi por acaso meus soldados encontrarem Kairon na estrada. Aquilo tinha sido obra do destino? Em qualquer vida que se iniciasse a mesma coisa se repetiria?
Entrei em pânico. Eles não podiam se apaixonar de novo. Era a minha vez... A nossa vez de sermos felizes juntos! Eu não teria outra chance sem a maldita harpa. Precisei me afastar depois do surto. Na minha cabeça não passava nada além de matar o caçador.
Voltei ao calabouço e com ódio tomei a lança de ferro da mão de um dos soldados e o perfurei. Dessa vez ele não aguentou, rosnou :
— Covarde!
O lobisomem me xingou com a sua voz monstruosa. Porém sorri e o furei de novo, e de novo, até ouvir seu uivo de ódio. Então Kairon caiu ao chão e se tornou humano.
Kairon, nu, ofegava, com o corpo coberto por feridas, tremendo e gemendo baixo.
— Anda! Se transforme logo na besta! — gritei. Acabar com a vida de um monstro ao meu ver era mais fácil. Ele me encarou, não consegui detectar a expressão no seu rosto, pois o inchaço o deformava. — Transforme-se!
— Eu não sei... Não sei o que aconteceu... A lua... A lua... Eu não devia... — Kairon desconhecia o controle que tinha sob a metamorfose. — O que você fez comigo? — indagou ele e eu me aproximei um pouco mais da cela.
— Tenta se transformar... — aconselhei. Estranhamente o meu desejo de vê-lo como besta não era por querer o seu mal. E sim, porque a cura agiria mais depressa. — Por hoje chega, cavaleiros! — Lancei a arma no chão e me retirei do calabouço.
Do meu aposento, escutei sua transformação. Ele não descansou nenhum segundo, uivava como se tentasse uma comunicação. Meus guardas não dormiram, ficaram à espreita, aguardando algum ataque. Quando tive certeza de que meus pensamentos em relação a Alípio estavam corretos, organizei uma busca. O clima estava a meu favor e foi assim durante alguns dias. Muita chuva.
Meus soldados e eu saímos com carroças e carruagens, carregando Kairon pela floresta, procurando rastros do seu irmão e do acampamento dos rebeldes.
Depois de alguns dias, chegamos no local exato onde os guardas abateram o caçador, às margens de um rio. Kairon andava com dificuldade, sendo puxado feito um cachorro com coleira ao pescoço, também imobilizado por correntes de prata que envolviam todo seu tronco, além de grilhões nos pulsos e tornozelos. Eu não podia me descuidar. Mesmo tendo terminado a fase da lua cheia, não tinha ideia do quanto instigá-lo a se transformar naquela noite no calabouço, deu a ele um autocontrole.
Os guardas repassaram os fatos. Contaram que Kairon carregava a harpa e Alípio corria ao seu lado. Mas quando se aproximava do rio, vendo que o único jeito de escapar seria por ele, o caçador jogou o objeto para o irmão, que o abandonou sem nem mesmo olhar para trás.
Olhei para Kairon e lembrei do medo que tinha de água. O quanto os traumas das outras vidas poderiam interferir na atual?, me perguntava.
A noite caiu e permiti que meu exército descansasse. Estavam exausto, com frio e privados do sono há dias. Armamos o acampamento numa clareira a alguns metros do rio. As tendas dos soldados foram postas em volta da minha. Era função deles me protegerem, no entanto, tinha certeza que ninguém era melhor que eu para tal função, visto que nunca dormia. Em seguida, pedi que me trouxesse Kairon e o aguardei.
Sentado na cadeira de madeira, vi o seu olhar receoso ao passar pela entrada. O tecido da tenda balançava freneticamente, fazendo um ruído irritante, devido a ventania do lado de fora. Fiz um gesto para os soldados que o acompanharam, pedindo que saíssem eles me obedeceram.
— Dormirá aqui comigo hoje — avisei e ele fez uma careta de repulsa.
— Vá para o inferno!
Franzi minha testa e sorri, compreendendo o grande equívoco.
— Kairon, não vou molestar você.
— Nem conseguiria, te mataria antes.
— Talvez. De qualquer forma, não é do meu feitio... Eu só... — Arqueei os ombros, procurando a melhor explicação. — Bom, quero te conhecer melhor. — Indiquei o chão para que sentasse. Ele sacudiu a cabeça, deixando nítido que não acreditava em mim. Porém não tinha escolha.
Relutante, permaneceu de pé por longos minutos, mas cedeu. Kairon tentava a todo custo encontrar uma posição confortável. Ele me olhava com raiva, bufava e me xingava baixo, me culpando pelas correntes que roçavam nas queimaduras que tinha nas costas. E eu apenas o encarava, analisando os detalhes em sua mente.
— Por que tem medo de água?
— Não te interessa! — rebateu, com as pálpebras quase se fechando, lutava contra o sono.
— Sabe o que é engraçado? Eu sei o exato motivo — instiguei-o e ganhei sua atenção. Ele, que já estava praticamente deitado, sentou no mesmo instante.
— Você tem grandes inimigos, Luigi...
— Ah, é? Não me diga. — Descruzei as pernas e ficando as mãos nos braços da cadeira, me coloquei para frente. Um tanto afrontoso. — Se preocupa comigo?
— Não! Não conto isso porque merece, nem porque tenho medo. Mas a minha família precisa de ajuda, o meu povo...
— E por que acha que iria ajudá-los? Ainda mais depois do que roubou de mim... A não ser que esse seja o preço para me devolver a harpa. É isso? Sabe onde ela está?.
— Não.
— Não acredito.
Kairon era ardiloso. E por mais que eu o tentasse, de alguma maneira Kairon conseguia ocupar a mente com assuntos aleatórios. Isso me fazia cogitar que quem o contou sobre mim, sabia que eu lia pensamentos. Era difícil encontrar brechas.
— Sabe o lugar onde estamos acampados? — indagou ele, olhando para a direção da porta. Assenti, intrigado. — Em dias ensolarados, do penhasco que tem um pouco mais a frente, dá para ver o vale onde está o seu castelo... — Enquanto falava, me joguei no encosto da cadeira, compreendendo onde chegaria. — Ficamos aqui durante um bom tempo, criando uma estratégia para invadir o castelo. Mas como viu os rebeldes foram embora. Meu irmão não voltou para me buscar e nem devia. Ele tinha que cumprir o plano.
— Qual plano?
— Entregar a harpa para o novo rei, que prometeu a fartura para o nosso povo.
Fiquei sem palavras por alguns segundos. Finalmente a mente do caçador estava aberta. Ele não fazia questão de esconder a verdade e ainda deixou claro que todos os rebeldes sabiam sobre a minha natureza sobrenatural. Sabiam quais eram os meus poderes e as minhas fraquezas. Sabiam da história da mulher prometida. Fiquei apavorado, notando o quanto minha obsessão me tornou um rei cego.
— Quem é o novo rei? — indaguei furioso. No entanto, ele me disse que ninguém conhecia sua identidade. Apenas corriam a notícia pelas tabernas, oferecendo recompensas aos homens que não temessem o vampiro do leste. Não demorou muito para ele e seu irmão convencerem os camponeses sem terras. Ou viviam fugindo dos invasores ou ajudavam o novo rei a ascender.
Insistiria por mais dias na procura dos camponeses, entretanto, temi que eles chegassem no castelo por um outro caminho e me tirassem o que eu tinha de mais precioso: Laysla.
Não esperei o exército durante o percurso de volta. Na mesma noite, avisei ao soldado, o qual ficou encarregado do comando, que os deixaria. Corri em meio a uma forte tempestade, como não corria há anos. A minha mente, nebulosa, pensava sempre o pior. O medo, de tempos em tempos, ameaçava me paralisar, mas me mantive firme, sem interrupções. Laysla, agora, era frágil e não conhecia os perigos a sua volta. Era inocente.
Quando saía de dentro da floresta por trás do castelo, notei as gotas de chuva ficando cada vez mais finas. As nuvens se espaçavam dando liberdade para os tímidos filetes de raios de sol. Escondi-me debaixo de uma árvore. Eu não podia esperar anoitecer, era agoniante demais não saber se Laysla estava bem. Então conforme as nuvens se movimentavam, me aventurava a prosseguir nas sombras que formavam.
Avistei os escombros de uma antiga torre da época de meu pai. A arquitetura quebrada ficava em um campo aberto perto do muro do castelo. Nela havia uma abertura camuflada pelas próprias ruínas e trepadeiras, por onde eu acessava a um túnel subterrâneo que dava para o interior do castelo. No trajeto havia uma porta de ferro, trancada por cadeados, cuja chave somente eu possuía. Ficava presa a um cordão no meu pescoço, escondido por baixo do meu gibão.
Ao destrancar o primeiro dos cinco cadeados, ouvi os pensamentos conflitantes de Laysla. Ela não queria estar ali e sentia saudade de sua mãe. Foi doloroso, pois eu a amava.
Por alguns segundos, cogitei libertá-la. Talvez fosse melhor para ela. Ficaria longe da rebelião que certamente o outro rei armava para mim. Mas esse momento passou bem rápido. Ela era a filha de Morrigan, uma bruxa poderosa, juntos ficaríamos seguros.
A primeira coisa que fiz quando saí do túnel no interior do castelo, foi visitar Laysla em seu quarto, mas me deparei com as criadas cochichando, observando, da janela, a bruxa no pátio externo.
Eu escutei o que falavam sobre ela, como a usavam, como a colocavam contra mim e como planejavam traí-la depois que me matasse. De repente, perceberam que não estavam sozinhas e se prostraram, implorando o meu perdão e colocando toda a culpa em Laysla. Arrastei-as pelos cabelos para fora do recinto. Fiz questão de passar com elas chorando pelos corredores cheios de funcionários e entrar na cozinha onde trabalhavam os seus parentes e amigos. Aquele era um recado. Pedi o facão que o cozinheiro usava para remover as tripas do leitão que preparava para o jantar. Então fiz o que devia. Fui rápido, preciso, evitei ser dramático como gostava de ser, pois não queria perder mais tempo longe da bruxa. Enquanto ouvia o pranto das duas e o desespero dos seus familiares, lavei as minhas mãos numa bacia sobre a mesa ao lado e me dirigi à gruta. Era o mais perto de Laysla que eu podia chegar, já que o Sol nos deu o ar das graças.
Alguém acha que ele fez errado? 😈
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