04- MEU ESCONDERIJO (LAYSLA)

Meus olhos gritaram por socorro quando a claridade do Sol atravessou com brutalidade minhas pálpebras. Mal tinha pegado no sono, pelo menos, era essa a sensação. Seria um tormento morar em um castelo onde, durante as luas cheias, o anfitrião urraria e uivaria sem nenhuma compaixão dos residentes.

- Bom dia, senhorita Laysla – cumprimentou-me Roseta, uma das criadas que dormiu ao meu lado. Ela estava de pé, próxima às janelas, ajeitava as cortinas de um belíssimo tom azul. Nem parecia ter passado praticamente a madrugada toda me contando os boatos que corriam pelo castelo.

Cobri meu rosto com o cobertor e acenei com a mão como resposta.

- Senhorita, o rei quer que se levante. Irei te arrumar bem rápido, pois o café já está à mesa. Vossa Alteza quer também que conheça o jardim que ele preparou como presente para a senhorita. Há muitas flores, árvores, um lago incrível...

- Foi ele mesmo que fez tudo para mim? – perguntei com sarcasmo, certa de que somente ordenara o feito.

A mulher, mostrando intimidade, puxou o cobertor e respondeu: - Seja grata. Se quer ser rainha, agradeça cada gesto seu e seja sempre adorável. É para o seu próprio bem, senhorita, e para o bem de todos. Não queremos ver o rei insatisfeito.

Lembrei-me do motivo pelo qual Luigi me escolheu para rainha e revirei os olhos. Segundo as criadas, existia um quadro no aposento do rei que vivia coberto por um tecido. Nele havia a imagem da mulher que um dia sonhara. Ele colocou o seu exército à procura da prometida. Era assim que todos a chamavam. A futura rainha revelada por Deus. Julguei-o ser um rei desprezível e mimado. Pois todas as mulheres que eram levadas até ele e depois as reprovava, ele as guardava em seu reino como em uma coleção.

Eu tinha curiosidade em constatar se eu me parecia com a prometida, porém não estava ansiosa para conhecer o quarto real.

⚔️

Após me adornar com um vestido de cor verde e joias de esmeralda, fui à procura do rei no café da manhã, intencionada a pedi-lo para velar o corpo de minha mãe. Mas a mesa estava isenta da sua presença. Quem me aguardava eram minhas damas de companhia. Todas com os cabelos escuros e olhos verdes, porém o tom de pele mais claro que o meu e alguns anos mais velhas. Eu não tinha reparado quando cheguei no castelo, pois em pânico não tive tempo para isso. Seria coincidência? Foram elas as primeiras prometidas? Eu me juntaria a elas para algum tipo de orgia com o rei ou seria eu a sua exclusiva?

As três exalavam falsidade. Fiquei uns minutos observando elas, enquanto eu apenas esmigalhava o pão. Imaginava como seria o reencontro com Luigi depois do nosso início conturbado, se ele me trataria da mesma forma estúpida na frente das outras escolhidas. No entanto, ele não apareceu.

Entediada e de alguma forma frustrada, não quis perder mais tempo no salão ouvindo elas elogiando os lençois macios da cama do rei. Eu já tinha entendido o recado, eu não era especial para ele.

Alguns minutos depois, aquelas mulheres se levantaram e saíram pela porta a fora, me ignorando completamente. Não demorei para fazer o mesmo. Fui atrás delas, pois ouvi que iam à cidade. Cheguei a vê-las entrando na carruagem, e quando ousei atravessar o portal principal, um guarda interveio:

— Aqui é o seu limite, senhorita.

— Mas quando poderei passear com as outras? Elas são minhas damas de companhia. Acho mais lógico acompanhá-las, não é mesmo?

— Infelizmente, até o momento, o rei só liberou o jardim.

Bufei. Todavia, a frase do guarda me encheu de esperança. "Até o momento", disse ele. Isso significava que um dia a oportunidade também chegaria para mim. Ainda assim, marchei revoltada rumo ao pátio externo, me conformando que para ter algumas horas de liberdade, precisaria ganhar a confiança de Luigi, ou melhor, experimentar a maciez de seu lençol.

O rei não tinha uma aparência repugnante. Não mesmo... Pelo contrário, ele era bem formoso, diferente dos homens que vi junto aos muros do castelo, com as peles castigadas pelo Sol, malcheirosos e um sorriso desprovido de dentes. Mas ainda sim o esforço seria grande, pois os seus famosos atos perversos o transformavam em um monstro sem compaixão. Essa era a parte difícil, ser tocada por uma pessoa, cujas mãos estavam manchadas com sangues. Porém eu teria que suportá-lo. Só assim conheceria o seu reino e arquitetaria a minha fuga definitiva.

Ao chegar no pátio, vislumbrei rodeada por arbustos floridos, uma estrutura semelhante a uma pequena casa de mármore com o nome "Dilara" estampado no frontão triangular.

Corri e empurrei a porta. Havia no centro uma tumba a qual, embora fechada, sabia quem guardava dentro. Tentei arrastar a tampa, mas foi impossível mover. Então deitei minha cabeça na borda e chorei. Doía tão profundamente.

- Mamãe, me perdoa. Estou justamente com quem não devia estar... A culpa foi minha, me perdoa... Eu vou te tirar daqui, eu juro. Não vou deixar que sua carne apodreça nesse solo, nem que seus ossos esfarelem perto do rei. Mas terei que fazer algo horrível e eu sei que jamais aprovaria. Mas, mamãe, é por nós... Para que sejamos livres.

Passei um bom tempo sentada naquele ambiente fúnebre, relatando a ela como foi a viagem para o castelo, até que a projeção de uma sombra humana, vindo por trás de mim, me causou arrepios. Parecia que me observavam pelo lado de fora.

Interrompi imediatamente meu monólogo e olhei para a porta, porém não vi ninguém. Todavia, notei o céu encoberto por nuvens escuras e os primeiros pingos de chuva. Então me apressei para voltar ao interior do castelo. No entanto, ao deixar o mausoléu, um movimento a minha esquerda me chamou a atenção. Havia um grande cervo castanho com chifres retorcidos, ele me encarava com seus lindos olhos azuis perto da entrada do jardim. A beleza de seus pelos brilhantes, me instigava a me aproximar. Não tinha visto nada igual em toda minha vida.

Avancei em sua direção, cautelosa, porém ele se afugentou em meio aos arbustos. Eu estava curiosa, não podia perdê-lo de vista. Porém, cada vez mais dentro do jardim, me dispersava, admirando as múltiplas variações de cores nas flores e copas das árvores. Era tão vívidas, bem cuidadas... Tudo feito exclusivamente para mim? Eu não encontrei o animal, mas senti um pingo de renovo naquele jardim que me lembrava a floresta no topo da montanha onde cresci.

Fui caminhando por entre as árvores frutíferas, acariciando as folhagens com diversos tipos de texturas e me deparei com um caminho sinuoso que levava a uma gruta coberta por musgo e trepadeiras. Fiquei um tempo parada, a uns dez metros de distância, pensando no que encontraria dentro dela. Será que o cervo tinha se escondido ali?

Após alguns segundos, decidi explorá-la. Eu queria aquele lugar como o meu refúgio para os dias tristes. Mas quando me aproximava da entrada da gruta, as nuvens carregadas trouxeram finalmente a chuva torrencial prometida. Não houve outra opção, senão voltar para o meu aposento, retirar as roupas ensopadas, vestir uma túnica quentinha e me enfiar embaixo dos cobertores.

Mais um dia passou e eu não vi o rei. Também não ouvi mais o uivo de um lupino. Para mim não era coincidência, apesar de minhas criadas afirmarem que o soberano não era um lobisomem.

Luigi, desde o início, com o seu comportamento esquisito, além da sua força sobrehumana, me instigou a querer saber mais do seu mistério. Logo de noite, quando minhas criadas se deitavam ao meu lado na cama e iniciavam as fofocas dos moradores do castelo, eu pedia por mais dele. Era o segredo do rei que eu queria. Eu tinha que conhecê-lo através das suas histórias, já que pessoalmente vinha me rejeitando. Precisava de algo que me desse uma vantagem sobre ele e foi isso que eu tive depois do terceiro dia. Roseta deixou escapar o maior dos segredos: o rei estava no estágio final da sua enfermidade. Tinha urgência em um herdeiro. Ou do que adiantaria todas riquezas que conquistara, se não tivesse para quem deixá-las?

Foi então que elas viram em mim uma oportunidade. Eu devia usar a sua fragilidade, para ajudá-las a escapar de uma vida de opressão. Como negaria, vendo o semblante de esperança ao me ter como sua rainha salvadora? Elas eram minhas amigas. Seria injusto usar as informações que me davam para fugir sozinha.

Segundo Roseta e Marta, existiam passagens secretas. O rei simplesmente aparecia nos ambientes sem que os funcionários o vissem. Lembrei-me de ter sido dessa forma que surgiu no salão quando nos conhecemos. No entanto, as duas tinham uma suspeita, como ele nunca usava a porta de seu quarto, todos os caminhos por trás das paredes se ligavam a esse único cômodo.

O plano delas não era simples. O inevitável deveria acontecer. Eu me entregaria a ele para ter acesso ao seu aposento, como as outras prometidas tiveram. Só que com uma diferença, teria que matá-lo.

— Não vou conseguir — Tentei abandonar a ideia diversas vezes. Mas havia um propósito maior. Não era somente a minha liberdade, mas também a de mais de dez pessoas. As criadas acrescentaram filhos, noras e netos a lista, depois suas amigas e um idoso alejado. E a cada hora esse número aumentava ainda mais.

— Senhorita Laysla, não tem como dar errado. Não se mantiver o rei apaixonado... Canse-o na cama. E quando ele adormecer, procure as passagens. Você vai descobrir qual delas nos levará para fora dos muros do castelo, temos fé em Deus, o nosso Senhor Jesus Cristo.

Respirei fundo, assistindo-as fazendo um gesto religioso que desconhecia, depois falei desolada:

— Roseta... Marta... Terei o sangue dele nas mãos.

A criada ruiva segurou o meu rosto e respondeu num tom gentil:

— Mas poupará que o nosso sangue um dia esteja nas mãos dele. Por favor, não queremos mais viver debaixo desse terror.

Embora ainda não tivesse assimilado o plano, no meu sexto dia no castelo comecei a ficar impaciente pois o rei não me procurava. Seu interesse por mim tinha acabado? O que ele faria com a garota que o desdenhou durante o jantar? Certamente me lançaria no calabouço, visto que eu ocupava um lugar, onde podia abrigar a nova prometida.

As manhãs, seguintes, foram iguais, puro tédio e muita chuva. Eu vagava pelos corredores, bisbilhotando cada cômodo onde não tivesse um soldado guardando a porta. Tocava as paredes, batia as solas dos sapatos no piso e mexia nos quadros. Um dia, entrei na enorme biblioteca que ficava no centro do castelo. Apesar de folhear os livros, perdi rapidamente o interesse na literatura porque nenhuma palavra eu entendia. Logo voltei a minha busca incessante, observando cada objeto naquele ambiente. De repente, um quadro de um pôr do Sol me roubou a atenção. Sua moldura era diferenciada dos outros sete quadros do recinto. Não parecia requintada como as demais. Retirei cuidadosamente o objeto e me deparei com dois pequenos buracos na parede de madeira. Então, me pus na ponta dos pés e posicionei meus olhos, intrigada com o que veria. Assustei-me por ter a vista perfeita do tonel onde me banhava. A primeira coisa que eu fiz ao voltar para o meu quarto, foi colocar lençol sobre aquela parede.

No décimo dia, não tive forças para sair da cama. Além do início de um resfriado, acordei de um sonho com minha mãe. Senti-me mal por deixar sua morte ser esquecida tão rápido. Não vivia apropriadamente o luto. As malditas histórias de Luigi e o imperfeito plano de fuga ocuparam todo espaço da minha mente. Dilara estava sem rosto no sonho, sua voz também não era tão clara. Eu sabia que era ela apenas pelo desconforto no peito que me fez gritar no meio da madrugada. Era culpa misturada a saudade.

O persistente tempo chuvoso caía bem para aquele dia, mas em contradição, no final da tarde, a chuva se dissipou completamente e os fachos da luz do sol invadiram o meu leito. Revirei-me no colchão e encarei a janela. Os pássaros pousavam no peitoril do lado de fora. Não pensei duas vezes, precisava visitar o mausoléu.

Coloquei o corpete por cima da túnica e saí num disparo para a área externa. Ainda trançava as cordas da minha roupa quando escutei alguns ruídos vindo de dentro do castelo. Eu saí descalça, por causa da pressa. Estava com os pés e canelas cheios de lama. Temi que fossem minhas criadas, vindo gritando atrás de mim, para me obrigar a voltar para cama. Estava cansada de ser paparicada e tratada como criança. Então corri, entrei no mausoléu e fechei a porta. E no silêncio, encontrei a paz que há dias só minha mãe podia dar. 

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