Meu Aniversário
Não cantaram "com quem será" hoje. Depois do "parabéns pra você" a mesa caiu num silêncio constrangedor. Como poderiam fazer de outra maneira? Depois de eu passar a noite toda, a cada dez minutos, checando meu celular para ver se havia alguma mensagem, olhando por entre as mesas da pizzaria, procurando os cabelos pretos e distribuindo sorrisos sem graça ocasionados pela decepção? A decepção é o resultado das expectativas quebradas, estraçalhadas, amassadas pelo diabo. A decepção para mim se chamava Cameron.
Quando estava cara a cara com as velas que denunciavam meus dezoito anos, hesitei no que pedir. Nunca fui capaz de concordar com ninguém que me sugeria ter menos expectativa – ter menos expectativa levava a uma vida medíocre e não combinava com meu nome, Amélia, a mulher que conquistara os céus. Naquele momento, no entanto, me senti tentada a desejar ter menos sonhos, a voar mais baixo. Queria apagar a maldita chama de esperança que sempre tremulou dentro de mim. Não o fiz, não consegui. Apaguei as velinhas e desejei que como Cinderela, eu fosse gentil e tivesse coragem.
Já em minha casa, tive problemas para dormir. Há um fenômeno mundial de intensificação de sentimentos à noite e eu estava tomada pela raiva e tristeza que se moviam por meu estômago de maneira incontrolável. Não era justo. Que Cameron me desse o fora, dissesse que estava louca se achava, em algum momento, que um cara cheio de amigos pudesse se interessar por mim. Que fizesse tudo isso, mas tivesse a decência de aparecer e falar isso na minha cara. Nem isso ele foi capaz de fazer, me tratou com indiferença.
Em meio a trocas de posições típicas de quem não consegue dormir, ouvi algo como pedras sendo jogadas na porta da minha sacada. Naquela hora já havia muito que não dormia e ignorei, pensando serem frutos de minha imaginação. As batidas continuaram incessantemente, então me levantei de supetão e marchei até lá, abrindo a porta sem cuidado.
Qual não foi minha surpresa ao ver Cameron olhando para cima e sorrindo lateralmente? O relógio acusava três horas da manhã e eu não estava com saco para agir logicamente àquele horário. Não iria protagonizar uma cena à la Romeu e Julieta da minha sacada, não com quem não era Romeu (e com o perigo de ser pega pela minha mãe). Senti meu coração acelerar conforme descia a escada sorrateiramente. Uma sensação na boca do meu estômago se acentuou quando girei a chave que permitia meu acesso ao lado de fora, o jardim.
O orvalho da madrugada fazia sua vez na grama. Nunca tinha presenciado o fenômeno em momento tão escuro. Aproximei-me velozmente do garoto e quando estava muito perto daquele sorriso canalha, sem tirar meus olhos dos dele, despejei:
- Vai se foder, Cameron – nisso parte do peso que eu carregava tinha se dissipado. Existem palavras que são tão boas que só devem ser utilizadas em momentos específicos. O curioso é que isso ocorre em dois grupos extremos: as palavras sublimes de amor e as de baixo calão. A expressão dele desmoronou e eu observei cada pedacinho cair no chão. Olhei para seus olhos castanhos e tentei entender o motivo daquela babaquice.
Decidi culpar a genética. Sua família era rica e imprudente, preocupados apenas com seus umbigos. A conexão entre bebê e mãe, naquele caso, se dava por cordão de ouro e através dele eram feitas transações bancárias – sua forma de amor. Os Avalon eram conhecidos por sua mesquinhez, efeito colateral da fortuna. Sempre estudei com o filho caçula e acreditei que ele fosse diferente depois de um trabalho de biologia que fizemos juntos. Tornei-me sua amiga mesmo com olhares tortos que recebi. E estava errada, estava completa e indubitavelmente errada a seu respeito. Essa mania de querer ver com meus próprios olhos ainda me mataria. Quando me virei, pronta a retornar para minha cama para não dormir, seus dedos tocaram os meus, de leve e em seguida os prenderam. Foi como se tivesse levado pequenos choques que me mantiveram, atônita, no mesmo lugar.
- Não faça assim, Amélia – ele suplicou, ainda segurando minha mão. Permanecemos em silêncio, imóveis – Ao menos me dê o benefício da dúvida.
- Não é como se já não tivesse dado antes – murmurei me virando e desfazendo nosso enlace.
Ele pareceu não escutar meu comentário, suas sobrancelhas levemente arqueadas provavam o contrário. Cameron passou a mão em sua testa e permitiu que ela deslizasse sob seus cabelos escuros que se mesclavam com a noite. Foi até a rua, em seu carro velho e enferrujado (uma afronta a seus pais, com certeza) e voltou com um cobertor enrolado em seus braços. O observei estender o tecido cinzento no chão e se sentar no meio, pedindo com seus olhos que eu o acompanhasse. Eu me sentei para fugir do frio, pensei comigo mesma. A vozinha irritante do meu cérebro teimava em discordar.
- Por quê? – sussurrei no ar gelado.
Ele olhou para mim com intensidade, como se nossas írises estivessem se conectando por uma linha reta. Engraçado como o mundo se apresenta curvo em seu formato de geoide, nos padrões de pelagem das onças e nos sorrisos das pessoas. Existe certo conforto em saber que a luz segue uma trajetória em linha reta na Terra - até me lembrar que ela é uma onda e, portanto, em seu íntimo, é curva. Curvas também são as pessoas.
- Porque eu sou péssimo em cumprir expectativas alheias – disse num fio de voz.
Eu queria falar que, na verdade, ele era péssimo em ser um bom amigo. Sabia que dizer isso o machucaria e por um momento saboreei a possibilidade. Mas não era isso que eu pedira enquanto soprava as velinhas. A tradição podia ser boba, porém eu levava a sério: sabia que só pedir não adiantava, eu tinha que me esforçar para que se tornasse realidade. Algo como criar as condições ideais para que essa parte de mim florescesse. Não queria vingança, esta era veneno. Por isso respirei com vontade e deixei que a minha coragem me levasse a dizer as coisas certas.
- Eu estou cansada e magoada, Cam – suspirei e mordi meu lábio inferior – Esse é um dos meus dias favoritos do ano. É o dia que mais me sinto amada, que leio coisas legais e que, talvez, consiga uma sobremesa pela metade do preço no meu restaurante favorito. E você não ter ido e nem mesmo me avisar que não poderia ir me fez me sentir sem importância para você. Me fez sentir que eu estava imaginando tudo.
Ele sacudiu a cabeça em vários "nãos" consecutivos. Ouvi ele murmurar um "se você soubesse", mas na hora não tive certeza. Antes que indagasse sobre sua fala, ele entrelaçou sua mão na minha. O gesto, tão naturalmente executado, colocou uma expressão surpresa em meu rosto.
- Escuta – ele disse em seu tom grave – eu nunca me importei com aniversários. Para mim eles sempre foram sinônimos de ganhar presentes caros de amigos do meu pai e passar o dia com crianças que não gostava. Era uma data como qualquer outra, no final das contas.
- Eu não consigo concordar. Para mim é o fechamento de um ciclo, é a celebração da vida.
- Não terminei meu raciocínio, Amy - ele sorriu lateralmente, mas seu semblante estava triste.
- Você faz pausas muito longas entre uma pausa e outra – observei, querendo deixar o clima mais leve. Funcionou por um milésimo de segundo.
- A coisa sobre meus pais é que eles almejam a perfeição. Isso se estende à família. Quando decidi que preferia sair com meus amigos a ir a um jantar com o prefeito eles me disseram algumas... coisas e me tiraram tudo – travou o maxilar - Tudo o que conheciam, o dinheiro. Me rebelei na semana errada – disse com ironia – e não tinha como te dar um presente. Ainda não me importo com aniversários, mas me importo com você. Queria te presentear.
Dito isso, seus olhos se voltaram para o chão.
- Bastava ir à pizzaria, Cam – admiti e percebei que a minha voz saiu quase como um sussurro. Nunca falávamos de sua família. Ele sempre desviava do assunto e eu interpretava isso como prova de que os boatos eram verdadeiros. Eu tinha minha opinião sobre eles, mas queria estar errada.
- Eu senti vergonha de aparecer lá sem nada, justamente se tratando de você. Você merece o mundo.
Claro que suas palavras eram exageradas, mas simplesmente senti que estava sendo sincero em seu relato. Ele não me pedira desculpa, não explicitamente, mas eu o desculpava. Senti meu estômago desfazer qualquer nó cego que o atava. Estava pronta para lhe desejar boa noite, para falar que nada havia mudado, para seguir em frente e deixar sentimentos ruins para trás (e não para dentro).
- Sempre haverá ano que vem – disse e tentei sorrir amigavelmente. Odiava como as minhas bochechas se expandiam e me deixavam com uma cara infantil quando o fazia – Obrigada por, mesmo com o risco de sermos pegos pela minha mãe, ter me esclarecido os fatos.
Comecei a retirar minha mão, mas ele a segurou mais forte.
- Não vá agora – me olhou com tristeza – Esse é o mais perto que estive de alguém.
Aquela frase me fez ficar. Já tinha beijado dois ou três garotos quando era mais nova. Nada muito sério, nada que valesse a pena. Cameron também tinha pessoas em seu passado, uma quantidade muito maior do que a minha. Mas a proximidade... A proximidade é mesmo uma coisa esquisita. Às vezes nos sentimos mais próximos de um desconhecido do que de gente que falamos todos os dias. Uma conversa, um sorriso, uma troca de olhares e ela nasce – pode morrer com a mesma rapidez. Porém, naquele momento, estava ali. Frágil e envolta em nossas mãos unidas. O mais próximo que já estive de qualquer pessoa do sexo masculino. Não sei quanto tempo passamos unidos em silêncio, mas me pareceu bastante e insuficiente. Ele só fora rompido uma única vez durante o resto da noite por palavras que se moviam hesitantemente.
- Eu acho que a gente poderia funcionar.
Olhei para Cameron e entendi o que ele queria dizer porque eu também sentia o mesmo. Então, antes que pudesse perceber, balancei a cabeça em afirmativa diversas vezes. Depois apenas olhávamos o céu nublado, o orvalho e um ao outro. Escolhemos a paz e sua aura reconfortante em meio a tudo que pudesse ser proferido. Ao me levantar (antes que dormisse ali mesmo), ele deu um beijo em minha bochecha. Quando olhei nos seus olhos, vi as palavras escritas: até logo. Sorri e desejei que ele fosse capaz de ler minha resposta também tácita.
Naquela noite sonhei que estava voando em um avião antigo. Não era passageira, mas sim a piloto. O céu se estendia em um infinito azul claro, com pontos brancos que pareciam algodão. Eu ri ao ver a imensidão que o mundo era. Quando olhei para baixo, um momento único em que não cultuei a beleza do céu e do sol, vi um ser humano bater asas de argila em um esforço contínuo. Me assustei quando a forma olhou em minha direção: era Cameron.
Acordei sobressaltada. Ícaro e Amelia Earhart. Cameron e eu. Pensei se o sonho era um presságio para uma tragédia. Me chacoalhei. Ignorei o cenário que meu subconsciente criou o máximo que pude e depois de um banho frio (hábito indispensável em dias de mente confusa) o sonho dera lugar às lembranças. Me senti melhor.
O final de semana se arrastara lentamente. Eu e Cameron trocávamos mensagens, ele me mandava memes e me marcava em vídeos de animais fofos. Não era muito diferente do que já fazíamos antes, mas a frequência era maior. Parte de mim ficou aliviada pela familiaridade das conversas, mas por outro lado sentia uma ponta de decepção surgir. Talvez ele tivesse se arrependido do que dissera e estava tentando fazer com que as coisas voltassem ao normal. E se fosse assim, pelo menos teria sua amizade... Mas a esperança ardia dentro de mim e me pedia, em sua linguagem peculiar, que eu esperasse um pouco mais. Obedeci. No domingo à noite ele me mandou uma mensagem:
"Eu e você amanhã à noite para um encontro surpresa. Te pego às oito em sua casa. Topa? :)"
Minhas mãos ficaram geladas enquanto dizia que sim. A segunda feira sem aula ocorreu sem muitas novidades. Minha mãe não fez muitas perguntas sobre o que íamos fazer depois de descobrir que eu ia sair com Cameron: ele tinha sua confiança. Perto da hora do encontro, vesti uma camiseta e uma calça jeans. Não levava muito jeito para maquiagem, de modo que me contentei com rímel e blush. Meu cabelo liso e castanho ficou solto, como de costume. Me olhei no espelho, era aquilo. Eu.
A campainha tocou às oito e ponto. Cameron vestia jaqueta de couro, camiseta branca e jeans. Fizemos nosso toque de mãos, como uma espécie de código secreto e ele cumprimentou minha mãe, que acenou do sofá, desviando sua atenção da TV momentaneamente. Seguimos para o carro velho e ele abriu a porta para mim, num ato de cavalheirismo que me fez rir. Antes de Cameron fechar a porta novamente, ele me deu um beijo na bochecha e disse que eu estava linda. Reparei que o interior do veículo estava mais organizado do que de costume, o que foi legal. Apesar de Cam pender para a bagunça, foi prazeroso ver que se tinha dado o trabalho de arrumar o ambiente.
Assim que partimos, liguei o rádio na nossa estação preferida. Pedi diversas vezes que me contasse aonde iríamos, mas ele apenas sorria para mim e balançava a cabeça em negativa. Então, vendo minhas tentativas frustradas, me concentrei na estrada. Conhecia cada lugar daquela cidade pequena, não deveria ser difícil acertar para onde iríamos – a não ser que ultrapassássemos os limites munícipes, que foi exatamente o que aconteceu. Seguimos uma rodovia e entramos em uma cidade desconhecida por mim. Depois de virarmos em diversas ruas, pegamos uma estrada de terra em um íngreme morro.
- É aqui que eu morro?! – perguntei com falsa apreensão na voz.
- Me sentiria ofendido se não conhecesse seu humor mórbido.
Então conversamos sobre amigos em comum enquanto o carro dava solavancos. Eu não senti medo por mais irônico que isso possa parecer. Poderíamos precisar de um guincho a qualquer momento, mas estávamos bem. Depois, independente do que acontecesse, também estaríamos bem. Deixei que os pensamentos se desfizessem quando o carro parou.
- Fecha os olhos – pediu. Eu os fechei, não antes de olha-lo com desconfiança – Eu preciso que siga minhas instruções – assenti com a cabeça, impaciente – Certo. Primeiro, abra a porta.
O fiz. Ele me orientou a fazer outras coisas até que estivesse fora do carro, então pegou em meu braço para que caminhássemos até determinado ponto. Senti meu pé pisar em grama e o ar que nos envolvia era um tanto gélido. Ele pigarreou.
- Aqui é meu lugar favorito do mundo – levantei as sobrancelhas, curiosa. Ele tinha o passaporte bem carimbado – Algumas dádivas estão mais perto do que imaginamos. Essa eu descobri quando, por hobby, pegava o carro e saía sem rumo. Faz alguns meses já. Espero que goste.
- Posso abrir os olhos? – perguntei só para ter certeza. Quando ele disse que sim, eu os abri e entendi porque ali, de todos os outros, era seu lugar favorito.
As estrelas brilhavam de uma forma que eu nunca tinha presenciado antes. Elas pareciam maiores. O céu não tinha nuvem e nem lua. O palco era só delas. E eu senti vontade de dançar com as mãos para cima, rodopiar até que estivesse cansada e sorrir incontrolavelmente. Bem, o último ao menos eu fiz. A cidade, nossa cidade, parecia tão distante...
Olhei para Cameron, que sorria preguiçosamente para a imensidão. Em um instante, nossos olhares se encontraram. Envolvi seu pescoço em um abraço e sussurrei um agradecimento. O agradecimento se transformou em beijo num passe de mágica. E o beijo se transformou em entendimento. E o entendimento se transformou em certeza...
Era isso. O meu sonho, que contava com Amelia e Ícaro, terminava em uma tragédia. Mas a tragédia, nesse caso, precedia atos grandes. Eu poderia me perder e nunca mais me encontrar – nem ser encontrada. As asas de argila poderiam derreter e fazer com que Cameron desse com a cara no chão. Os riscos sempre existem – os triunfos também. Depois de juras de amor, poderíamos ver que tudo não passara de um erro. Ou, depois de um casamento feliz, alguém partiria antes. Das duas formas, a tragédia estava presente, em suas mais variadas nuances. Então eu a aceitava. Aceitava porque ela não vinha sozinha.
- Como pode ser o mesmo céu? – indaguei em certo momento, enquanto estávamos sentados na grama e olhando para cima. Ele deu de ombros, com ar pensativo.
- A luz da cidade ofusca as estrelas. E a verdade, às vezes, só é vista quando nos afastamos do mundo criado por nós.
Entre alguns pensamentos, com urgência, foi ao carro. Voltou com uma caixinha transparente, a qual continha um cupcake em seu interior.
- Sei que não é seu aniversário, mas toda "celebração da vida" deve ter bolo. Esse fui eu que fiz, e por incrível que pareça, foi o melhor da fornada.
Peguei a caixinha de suas mãos e olhei o conteúdo. A cobertura de chantilly azul caía ligeiramente para o lado. Quando o mordi, constatei ser sua primeira experiência culinária. O excesso de corante na cobertura a fez ficar com gosto de xarope, não havia recheio, a massa estava solada e tinha gosto de farinha. Mas também tinha gosto de felicidade – e eu, portanto, estava satisfeita.
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Dessa vez, meu singelo agradecimento vai a todo mundo que um dia olhou para o céu e viu muito mais que a escuridão. Um "obrigada" especial a Isadora Souza, que me fez deitar no chão depois de seus áudios e ainda me ajudou com a capa dessa história (de novo!), e a Isa Wibe, que num dia de semana me fez tomar chocolate quente e olhar as estrelas, enquanto balbuciávamos nossos pensamentos sem sentido. Obrigada também você que chegou até aqui! Estou aberta a críticas!
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