Capítulo Único
RICHARD COMEÇOU A VERIFICAR OS instrumentos para o terceiro e último voo daquele dia. Seria uma viagem relativamente curta, de Seattle para São Francisco, que o obrigaria a pernoitar naquela cidade. Seu relógio de pulso marcava 18:43 e o mostrador de datas estava parado no número 23, indicando que o dia seguinte seria a véspera de natal. Mas naquele trabalho não havia feriados, somente o dever de transportar as pessoas em segurança.
No ramo da aviação, os três dias que antecedem o natal são sempre os mais movimentados. Por tradição, essa é a época dos reencontros, em que famílias inteiras viajam longas distâncias para celebrar umas às outras, que parentes que não se falam durante todo o ano se sentam à mesa para compartilhar o jantar, que o perdão flui mais forte do que qualquer desavença, que todos se esforçam para fazer o bem uns aos outros. O natal é mágico, mas não deixava de ser caótico para aqueles que precisam trabalhar para fazer todos aqueles reencontros possíveis.
A porta que separava o cockpit da cabine estava aberta. Richard estava tão acostumado com o som dos passageiros sendo acomodados em seus assentos que o ruído já não o incomodava mais. Ele permaneceu concentrado no trabalho, atento a todos os números e sinais que precisava conferir antes que iniciassem a viagem. Pelo menos até ouvir o som de algo caindo no chão atrás da sua poltrona, seguido pela frase robótica "você quer um pouco de mel?".
Ele olhou por cima do ombro e, do lado de fora no corredor, com o pé exatamente na linha que delimitava o final da área com circulação permitida para os passageiros, viu um menino se abaixar para pegar um ursinho de pelúcia.
— Olá amigo. – Richard sorriu, fazendo sua poltrona virar completamente na direção da criança. Tinha um filho pouca coisa mais novo, Daniel, e não queria que o pequeno desconhecido se assustasse ou que pensasse que tinha feito algo errado simplesmente por ter sido curioso a ponto de se aproximar. – Meu nome é Richard. – se apresentou e o garotinho abraçou o urso. – Você não quer me dizer seu nome?
— Josh, senhor. – ele respondeu.
O homem estava prestes a dizer ao menino que não precisava o tratar daquele jeito, que não era assim tão velho para que fosse necessário usar daquele tipo de formalidade, quando percebeu o olhar de adoração de Josh na direção do quepe que usava na cabeça e entendeu o que o tinha levado até ali. O seu respeito estava dedicado à profissão, e aquilo até mesmo Richard precisava admirar.
— Você gosta de aviões? – ele perguntou e o pequeno sorriu, balançando a cabeça enfaticamente como resposta. Richard julgava ter mais ou menos a mesma idade de Josh quando se sentou pela primeira vez na frente de um painel de avião iluminado como uma árvore de natal. Ele se lembrava da euforia por ver as luzes piscando e da curiosidade que se seguiu. Foi naquele momento que decidiu o que queria ser quando se tornasse adulto, e tudo o que veio depois foi uma consequência daquele instante. – Pode chegar mais perto. – disse a Josh, que não hesitou em ultrapassar a linha limítrofe aos passageiros. O menino caminhou até a poltrona vazia ao lado do copiloto e pousou uma das mãozinhas no estofado gasto. – Essa é a poltrona do capitão. – Richard explicou – Você pode se sentar nela se quiser.
Josh olhou entusiasmado para Richard, sem acreditar no que tinha ouvido.
— Sério mesmo? – quis saber e Richard anuiu, incapaz de se manter indiferente à alegria do menino.
— Pode sim, mas só enquanto o capitão não chegar. – explicou e Josh se esticou, ficando nas pontas dos pés para conseguir se sentar. Quando o fez, primeiro se deixou apreciar a sensação, como se estivesse em um trono. Depois, o pequeno se empertigou, tentando ver o máximo que podia do painel por cima do manche, mas sem o tocar. Richard achou engraçado todo aquele temor e voltou a olhar o relatório na qual conferia o últimos dados emitidos pelo sistema do avião. Instantes depois, o capitão chegou à cabine.
— Olá! – ele cumprimentou o ocupante da sua poltrona. Curtis era uma das pessoas mais gentis que Richard conhecia, e aquele foi um ponto decisivo para que o homem convidasse o menino para ver a cabine. Ele sabia que o senhor de cabelos grisalhos não faria cara feia à presença da criança porque, como costumava dizer "é preciso tratar as pessoas como queremos que elas nos tratem. É o único jeito de fazer deste mundo um lugar melhor". Richard sempre havia concordado com ele. – Se trocar de lugar comigo, pode ficar aqui na cabine mais um pouco, o que acha? – Curtis propôs para Josh com um sorriso.
A troca foi feita, assim como as apresentações, e o capitão então se dedicou a explicar para o menino cada ação que fazia e o motivo, enquanto ele e Richard verificavam os passo necessário para iniciar a decolagem. Josh observava atentamente e estava particularmente interessado nos códigos trocados pelo rádio entre os pilotos e os operadores de rampa.
— Esse significa que podemos iniciar a primeira turbina. – Richard explicou – Mas para ligar o avião, é necessário a autorização do capitão.
Richard olhou para Curtis, esperando que este demonstrasse o procedimento ao menino, mas o colega não desviou o olhar do relatório de meteorologia que tinha nas mãos.
— Vocês podem ir fazendo isso. – disse concentrado no que fazia – Ainda preciso de um momento aqui.
Surpreso, Richard resolveu perguntar de novo para ter certeza que tinha compreendido corretamente.
— Vocês dois? – quis saber e o homem mais velho sorriu, ainda sem desviar o olhar dos papéis.
— Sim, vão em frente! – pediu. Richard também sorriu, e olhou para seu novo assistente.
— Você já ligou um avião antes?
É claro que não tinha. Josh arregalou os olhinhos e balançou a cabeça em negativa. E, seguindo as instruções do co-piloto, ele girou cautelosamente o botão da ignição. Depois, pressionou um botão tão grande quanto sua mão para ligar o motor. Finalmente, com as ambas as mãos, ele empurrou uma alavanca para introduzir o combustível. E o motor começou a funcionar, fazendo toda a aeronave estremecer.
Quando aquilo aconteceu, Josh largou a alavanca bem devagar e se afastou, assustado. Ele tinha ligado um avião, um bem grande. Qualquer pessoa ficaria em choque.
— Agora, Josh, você precisa voltar para o seu assento. – Richard explicou a ele – Muito obrigado por te me ajudado hoje.
— Não, senhor. – o menino garantiu, apertando o ursinho companheiro nos bracinhos – Eu que agradeço. Isso foi incrível.
Enquanto se afastava na direção da saída, Josh parecia ter muita consciência que o avião inteiro ressoava com o som do motor que ele havia ligado. O brilho em seus olhos era algo que Richard jamais esqueceria.
— Feliz natal, Josh. – o capitão Curtis o desejou no último instante, antes que ele saísse do cockpit.
— Pro senhor também. – o menino respondeu exultante – E pra sua família.
Richard sorriu para Josh uma última vez e levou a mão à testa, num gesto de continência, que foi repetido com muito fervor por um Josh quase às lágrimas.
O capitão e seu co-piloto trocaram um olhar de concordância, de sentimento de dever cumprido com aquela criança que talvez um dia viesse a ser um piloto por causa daquele momento, e se voltaram para a tarefa que tinham à sua frente. Minutos depois, decolaram em direção ao sul em um voo tranquilo do início ao fim.
+++
No outro dia, às dez da manhã, a tripulação faria o mesmo voo, porém na direção contrária, de São Francisco para Seattle. Seria seu último trecho e todos estavam satisfeitos porque teriam folga na noite do dia 24. Richard e Curtis conversam com os comissários de bordo enquanto andavam pelo aeroporto, indo em direção ao portão onde o avião que pilotariam para casa os esperava. Eles se encaminhavam para a rampa de acesso quando uma das agentes da companhia aérea veio correndo, os chamando e pedindo que esperassem.
— Uma senhora acabou de deixar isso para vocês. – explicou quando os alcançou, oferecendo a Richard a lata de biscoitos, decorado com uma fita dourada que prendia à tampa um cartão de natal – Ela disse que era um agradecimento por vocês terem mostrado o painel do avião para o filho dela ontem. Parece que o menino não para de falar em vocês.
Após agradecer a agente, Curtis retirou a tampa da lata e esta revelou em seu interior uma seleção de variados biscoitos caseiros. Richard os compartilhou com a tripulação enquanto desciam a rampa e, antes de entrar no avião, percebeu que Curtis havia se deixado ficar para trás.
— Algum problema? – perguntou ao capitão. O homem tinha embaixo do braço a tampa da lata, e na mão o cartão vermelho, decorado com uma árvore de natal, onde se podia ler numa caligrafia elegante Merry Christmas. Ele suspirou desolado, e mirou Richard.
— Josh tem câncer.
Richard mal pode acreditar no que ouviu. Curtis tirou de suas mãos a lata e em seu lugar colocou o cartão.
"Caros senhores Curtis e Richard,
Obrigada por ontem terem mostrado a Josh o trabalho maravilhoso que vocês fazem. Ele tem câncer e fez quimioterapia em Seattle. Essa vai ser a primeira vez que volta pra casa desde que o tratamento começou três meses atrás.
Meu marido e eu costumamos dirigir entre nossa casa e o hospital, mas como Josh ama aviões, decidimos que este seria o presente ideal para o nosso guerreiro. O sonho dele sempre foi se tornar piloto, mas nós não sabemos se algum dia ele voltará a viajar de avião. Os médicos dizem que ele só tem mais alguns meses de vida. Então, eu quero que vocês saibam o peso do que fizeram por ele ontem. Vocês realizaram o sonho do meu menino, e por isso eu lhes serei eternamente grata.
Tenham um feliz e abençoado natal!
Michelle"
Richard se viu sozinho na rampa de embarque, e foi bom porque precisou de um momento para se recompor.
Dentro da cabine, Curtis, antes tão alegre porque quando chegasse em casa encontraria com os netos, estava taciturno. Ele observou o co-piloto guardar sua bagagem no compartimento, bem como o cartão vermelho junto à caixa de biscoitos. Os dois homens se sentaram em seus lugares e se dedicaram aos procedimentos de decolagem, falando apenas quando necessário, mas não era preciso palavras para que compartilhassem aquele sentimento de desolação que se seguiu.
Daquilo, Richard levou em seu coração uma lição para o resto da vida. Às vezes os presentes mais importantes são os que damos sem nem perceber, os que são simplesmente movidos pelo respeito e amor ao próximo.
Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top