PRO-CRAS-TI-NA-ÇÃO


A folha diante de mim continua branca, adornada apenas com linhas azuis que aguardam o peso das palavras cair sobre elas. Que palavras? Quaisquer. Pouco me importa. Há muitas folhas como essa na minha escrivaninha, várias linhas esperando para serem escritas, várias linhas esperando para serem lidas das pilhas do livros que eu nem sequer abri. 

Formam-se pilhas, porque eu não tenho espaço nas estantes e nem tempo hábil para livrar-me dos livros que não são meus. Não tenho tempo, nem espaço, nem personagem para escrever sobre... Penso muito, escrevo pouco. A folha continua em branco. Como a manifestação material do bloqueio criativo que surge em minha mente: imperioso, uma muralha. 

Creio que estou doente. Falta de criatividade. Os sintomas são: bloqueio criativo e procrastinação. Ou seria a falta de criatividade sintoma da doença do bloqueio criativo? Não sei. Pouco me importa. PRO-CRAS-TI-NA-ÇÃO. 

Penso muito, escrevo pouco. Penso se viverei o bastante para contemplar um futuro no qual fantásticas máquinas conectadas ao meu cérebro conseguirão captar palavra por palavra de meus textos pensados, para que eu não precise nunca mais dar à luz a nenhum deles. O nome disso é preguiça. PRO-CRAS-TI-NA-ÇÃO.

Leio pouco, escrevo pouco, não me reconheço. Encaro o papel e com esforço escrevo três palavras. TRÊS PALAVRAS. E depois de outras três pensadas e inconclusas, solto a caneta e culpo os sons pela minha situação. Eu ouço o barulho da água escorrendo aqui dentro e lá fora, o som dos carros na avenida, uma risada não muito distante e um chiado vindo do quarto ao lado. 

Há também uma televisão, porque sempre há uma televisão, e um celular. Mais um carro. Passos. Gavetas abrindo e fechando. Angústia. Cadeiras que insistem em se mexer. Uma música baixa e outras risadas. Mais um carro. Agora o barulho da geladeira. Todas as portas estão fechadas, mas eu ouço tudo... Há gritos e gritos, choro e canção e minha eterna vontade de não fazer nada, de não ser nada. Por que ouço tudo? 

Os sons atrapalham meus pensamentos, fato, mas eu poderia realmente tomar os sons por amarras da minha escrita e vendas da minha leitura? Eu maldigo os sons até precisar deles... Hipócrita que sou, coloco uma música alta para tocar em meus fones de ouvido, apenas um deles funcionando... Depois da raiva vem o tédio. 

Ligo a minha televisão. Está passando um filme. É sobre um roteirista que colecionou ao longo de cinco meses cento e trinta e oito páginas não escritas e, em decorrência disso, precisa concluir todo um roteiro em apenas dois dias. O que o atrapalhou, no entanto, não foram os sons, foram as festas, as bebidas, as viagens para cidades históricas que lhe sussurravam os fatos passados e as mulheres que lhe diziam as coisas que ele queria ouvir. Que ótima maneira de não ser criativo, ele deveria pensar consigo. 

Há uma maneira certa de não ser criativo? Há um motivo plausível no mundo para um escritor não escrever? E se bloqueio criativo for só um mito? Não seria decentemente criativo o ser que o inventou? Sem perceber já estou imersa ao filme. Crente de que qual seja a sina do roteirista, similar será a minha própria. Será que ele conseguirá escrever? Em lugar de: Será que eu conseguirei escrever? Como ele fará para escrever? Em lugar de: Como eu farei para escrever? Perguntas, perguntas... Outro carro. Uma nova música começa a tocar. De longe, conversas e risadas, mas eu ainda ouço tudo! 

A chuva vai embora sem me trazer nada. Agora até as palavras que me vinham à mente se vão antes mesmo de chegar. O filme continua. Será que ele conseguirá escrever? Será que as palavras depois de meses suprimidas e renegadas cairão sobre as linhas azuis em um movimento alucinado de iluminação? Depois do tédio vem a epifania. Estou esperando.

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