Capítulo 3

Lá estava outra maldita vaca, pendurada pelo maldito guindaste, prestes a sangrar sobre o maldito George.

— Diário do Doutor Menguele, noite vinte e quatro, espécime dois. Pesquisa sobre fisiologia e anatomia vampírica. Objeto de estudo: Anatomia interna.

Pois é. Você leu direito: Interna.

Eles soltaram minha cabeça. Queriam que eu visse!

— Mas que p*rra vocês vão fazer agora?!! Ei, Menguele... Seu merda, tô falando com você!!!

Menguele sorriu ao zunido da serra cirúrgica ligada, os olhos brilhavam sob os óculos de acrílico. Acenou para que alguém acionasse a bomba de hemodiálise. O sangue de Ângela me invadiu com suavidade daquela vez. Nada de queimação, nada de fraqueza. Franzi o cenho e olhei-a de esguelha, ela virou o rosto.

Um cálculo rápido da situação: Muitos caçadores. Se todos tivessem metade da força dos que encontrei antes, seria um ataque kamikaze ir pra cima deles naquele momento.

Que divertido seria aguentar o que viria a seguir.

Doutor Lúcifer aproximou-se com a serra. Vriiiiiiiiimmmmm... Rilhei os dentes, contraí o abdômen, as veias do pescoço brotaram como um mapa hidrográfico.

A ferramenta iniciou o toque na pele, disparos de sangue respingaram de baixo para cima e pintaram meu rosto como um sarampo bizarro.

— Serra... aaaaahhh! Serra, seu bosta! Voc..... aaaaaaah... você vai ser o primeiro, Men...guele... — A voz saiu trêmula e contida, sussurrada entredentes.

A dor subiu pela garganta e se transformou em um sorriso sádico quando chegou à minha boca. Gargalhei com o impulso da dor e sacudi a língua, babando mais sangue sobre o jaleco imundo do porco cientista.

Os dentes da serra vacilaram, junto ao rosto espantado de Menguele. Vi o pomo de Adão dele subir e descer, o buço sustentava uma coleção de bolhas de suor.

— Não dê ouvidos, Menguele! — Matheus tentou gritar, mas tudo que saiu foi um rasgado de voz rouca e cansada. — Ele não pode fazer nada.

Menguele baixou e sacudiu a cabeça, aproximou a serra mais uma vez. O metal cruzou os limites dos músculos e atingiram o esterno. Farelos de osso raspado explodiam em várias direções. Senti um fragmento atingir minha boca. P*rra! Tinha pedaço do meu esterno na minha boca!

Ângela virou o rosto. Matheus sorriu. Os caçadores vibravam com o espetáculo "científico".

Então ele desceu com o corte e a incisão parou próximo à virilha.

O vriiim vriiim vriiim parou, Menguele jogou a serra em uma bandeja e catou um trambolho que parecia funcionar como um macaco de carro. Descobri depois que o nome daquela coisa era "espaçador". O açougueiro-maldito enfiou o bagulho com a delicadeza de um lenhador em ação. A ponta do espaçador atingiu minha coluna, senti um choque agudo, o corpo estremeceu e sacudiu a estrutura que me prendia.

De verdade, eu queria chorar de dor. Implorar, implorar, para que parassem com aquilo. Era dor demais. Porém, o que saiu foi:

— Ei... doutorzinho — sussurrei. — Tá mais perto que você imagina!

O cientista mais uma vez baixou a cabeça, deu meio passo para trás, a mão que segurava o objeto de aço cirúrgico relaxou.

— Para de prestar atenção nele... cof-cof... — disse Matheus. — Seja homem.

— Matheus! Essa tosse, por acaso, não é gripe é? — eu disse.

— Menguele!!!

— Melhor ficar calmo Matheus. — continuei. — Isso pode te trazer problemas cardíacos. Devia pensar na sua saú... aaaaaaaaaahhhhhhhhhhhhhhh!

Menguele girou uma alavanca enroscada e o objeto dilatou, abrindo minha pele como uma cortina. Uma pena que os ossos não tinham aquela capacidade. Os estalos das costelas se partindo pegaram carona em meus gritos e navegaram pelo ar. Meu tronco tinha um buraco aberto que mostrava tudo o que eu era por dentro.

Sentia gosto azedo na boca. Cerrei os olhos com força, as algemas deixaram sua marca nos antebraços retraídos. Num esforço sobre-humano eu disse:

— Então doutor? Como estão meus pulmões?

Menguele fez um sinal, um caçador trouxe um espelho grande e o firmou de pé, bem de frente para mim.

— Por que você mesmo não vê?

E o que vi conseguiu me manter calado por um bom tempo. Era estarrecedor. Meu Deus, o que diabos eu era? Meus órgãos eram mais ou menos como um agrupamento de uvas-passas e ameixas. Pedaços de tecido murchos e atrofiados, dando espaço para um estômago gigantesco, entupido de sangue. Dali partia uma artéria, ou veia, sei lá qual a diferença, de calibre muito grosso, que se comunicava diretamente com o coração. O sistema circulatório parecia ser o único a manter seus padrões de quando eu era vivo.

Alguém vomitou, e recebeu um "deixa de ser bicha" de outro alguém. Ângela cobriu a boca com a mão. Menguele não parecia acreditar no que via... Eu, muito menos.

— Mas que porra é essa?! — disse Matheus, levantando da cadeira. Cenho franzido, olhar tenso.

Menguele apanhou o gravador, clicou no botão de gravar e saiu mencionando tudo o que via, com termos científicos que e não conseguiria reproduzir aqui.

Matheus, ainda incrédulo, sacou a faca da bainha e fez um corte rápido em meu braço. Mal a carne se abriu, o coração bateu duas vezes, puxou sangue do "estômago-reservatório" e o redirecionou por uma veia que inflava conforme o líquido passeava por ela, até chegar ao ferimento e iniciar o processo de cicatrização rápida. Mais uma sequência, o corte fechou. Compreendi, visualmente, como minha cura funcionava. Aquilo, como tudo, também foi registrado pelo médico.

Brincaram de me ferir mais algumas vezes, fizeram anotações, riram, estudaram meu corpo.

Alimentaram-me o suficiente apenas para a cicatrização e misturaram o sangue de Ângela, como faziam todas as vezes. Só que, mais uma vez, os efeitos nocivos não aconteceram. Os cálculos deles falharam, não poderiam contar que o sangue dela, desta vez, não serviria de contenção, mas sim de apoio. Restaria algo em meu corpo após a cicatrização. Mas me mantive mole, com aspecto fraco, entrei no jogo; deixei que me jogassem na cela. O carcereiro trancou porta e saiu para o jantar de rotina.

****

— SOCORRO!! CARCEREIRO! SOCORRO!!!

A portinhola se abriu e o homem estarreceu quando viu que ao invés de mim, era Ângela presa às algemas.

— Me tira daqui!

— Como é que...?

— Anda logo, droga! A gente tem que avisar ao Matheus! Me tira daqui! Vampiro desgraçado!! — Ângela esperneou, as correntes tilintaram no escuro.

— Vou avisar aos outros...

— O quê?!!! Experimenta sair daqui e me deixar presa nessa nojeira! Te garanto que o que aconteceu com aquele demônio vai ser pouco pra você!!!

As trancas da porta estalaram, as dobradiças rangeram com o movimento do bloco de aço abrindo. O carcereiro entrou a passos rápidos, tateando pelas chaves das algemas, trêmulo.

— Anda logo! Ele ainda deve tá no prédio!! Vai, vai!

— Essa chave... não... é essa... Como ele conseguiu colocar a senhora aí? Ah merda...

— Ah! Isso importa mesmo agora?! Vai logo!!

— Calmaê, dona, cê tá me enervando... Aqui... é essa!!

Tlec... Tlec... Tlec... Tlec.

Algemas abertas.

— Pronto! Mas acho melhor a senhora ficar por aqui enquanto aviso ao chefe.

— Só de tirar meus joelhos desse chão imundo... arrrg! Vampiro desgraçado! Obrigado!! Muito obrigado. — Ângela abriu um sorriso de derreter. — Agora vai rápido e avisa ao Matheus.

Ele também sorriu, bem sem jeito, e foi o último sorriso que deu na vida!

Mal deu as costas, sentiu meus dentes arregaçarem seu pescoço. Arranquei um bife e o cuspi longe, enfiei a boca e drenei sem dó. O corpo quase sem vida e fraco foi despencando suave de meus braços, arriando pouco a pouco sobre o piso encardido e poeirento e cheio de bosta de ratos. Os olhos aquosos e duros perdendo o brilho da vida ainda viram minha forma voltar de Ângela para George, com um sorriso diabólico estampado sob o sangue espalhado ao redor da boca.

Ah! A doce sensação da trapaça!

A doce vingança!

A doce liberdade!

O bem-estar da vitória corroeu cada célula, a vontade de urrar de fúria, ansiedade e felicidade.

Dei dois tapinhas na face do carcereiro antes de largar a camisa e deixá-lo desabar de vez ao chão.

— Obrigado, meu jovem. Muito obrigado. Você foi bastante útil.

A pouca luz que entrava na cela marcou minha silhueta caminhando para a liberdade, a porta pesada de aço rangeu sob meu puxão e a escuridão engolfou o corpo do primeiro de muitos.

O som do metal selando meu antigo cativeiro foi como um afago de mãe.






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