Capítulo 3.2

Corremos abaixados, abrigados pelo mato alto que circundava o complexo. Eu trazia Ed às costas, o corpo mole, a pele fria, a pulsação baixa. A prisão parecia um antigo depósito, ou fábrica abandonada. Percorremos uns bons metros e avistamos uma picape velha, parada próximo à grade que limitava o perímetro do terreno.

— Ótimo e agora? — disse Ângela.

— Aguenta, Ed.

Coloquei-o no chão, as costas apoiadas no pneu traseiro do veículo. O corpo pesado pendeu para o lado. A visão me lembrava daquele boneco de marshmallow, dos caça-fantasmas, derretendo; é, aquele mesmo, do filme de mil novecentos e tua mãe era moça.

Puxei a maçaneta.

— Merda! Tá trancada!

— Quebre o vidro.

— Como é que é?

— Quebra que eu cuido do resto.

Eu sei que as mulheres são um complexo maior que a física quântica, mas Ângela extrapolava até isso. Olhava para ela e me recordava do meu finado professor de matemática explicando função do segundo grau.

Firmei o pé, preparei o cotovelo e dividi a vidraça da janela em milhares de cacos. A maioria deles aterrissou sobre o estofado encardido.

— Coloca o Ed no banco do passageiro, rápido.

— Vocês, mulheres, não perdem a mania de mandar...

—  E vocês, homens, não perdem esse machismo idiota. …Vai filho, sobe.

Ângela arrancou uma plaquinha de plástico de debaixo do volante, puxou uns fios, partiu-os e começou a brincar de fazer faisquinhas com o contato entre as duas pontas descascadas.

Acho que veio dali... — disse alguém.

Captei a voz. Distante. Inaudível para um humano.

— Rápido, loura! Acho que ouviram o vidro quebrar.

O enchimento forçou passagem através de falhas no estofado quando Ed sentou. Passei o cinto de segurança ao redor daquele simulacro de globo terrestre, fui fechando a porta e o ajustando para que ficasse com a cabeça apoiada na porta do passageiro.
Os fios estalavam com o contato. O suor pregava mechas de cabelo na testa de Ângela e escorria pelas têmporas. O garoto ficava olhando na direção do complexo, com o pescoço duro, os olhos escuros e brilhantes vidrados, os punhos cerrado, os lábios apertados.

— Você sabe mesmo fazer isso? Não demora tanto nos film...

— Não enche...

— Ok.

Os guardas estavam se movimentando, ouvi mais deles falando, ainda longe de nós. Ângela e o menino com certeza não ouviram.

Alguma coisa aí?

Nada!

Vamo tentar naquele quadrante ali oh!

— Não vai dar tempo, loura. Vamo correndo!

— O quê?! Não... unnnng... vai merda, anda!

Cerrei os olhos na direção de onde vinha o som das vozes. Dois deles, com armas longas e uma lanterna. Caminhavam para onde estávamos. Comecei a sentir o gosto amargo da ansiedade queimar na boca. Minha cabeça era uma bola de ping-pong, para os inimigos, para Ângela, para os inimigos...

— Só pra você saber que se pegarem a gente de novo, não vão servir um café, tá?

— Para de encher, Geor...

Vrruuuummm...poc-pec-poloc-toc...brumbrumbrumbrum...toc-loc-tec...trumtrumtrumtrumtrum...

O carro tremeu, o motor acordou e parecia resmungar com uma voz grave.

— Isso!!! — ela gritou, cheia de orgulho.

— Você é perigosinha, hein, mulher! Agora dirige, vou ficar no apoio aqui atrás.

— Hein?

— Anda logo!

Saltei para a carroceria do veículo.

O menino roía as unhas, sentado à beira do banco. Ângela o apertou contra o peito e deu beijinhos em sua cabeça.

— Anda, loura!!

— Tá! Filho, põe o cinto! E George...

— Hum?

— Não me chama de loura.

Um facho de luz me atingiu da cintura para cima, eu estava em foco, os caras nos descobriram. Congelei por um segundo enquanto nos encarávamos.

— Pisa, Ââângelaaaaaaahhh!!!

Um dos caras catou um wakie-talkie.

— Eles estão no setor três, próximo às grades...

O outro ergueu o fuzil.

— Repito, setor três, próximo às grades...

A língua de fogo se acendeu no cano do fuzil e a arma cuspiu as balas.

BRA-TA-TA-TA-TA-TA-TA-TA-TA-TA...

— Tira a gente daqui, loura!!!

— Para de me chamar de loura!!!

Terra e grama voando, os pneus arremessando para trás tudo o que estava entre ele e seu giro derrapante. O carro rabeou para os lados, tentou ganhar atrito. O som da terra rasgada e o do esforço do motor se misturaram ao dos tiros.

— Acionem o alarme!! — o cara guardou o walkie-talkie e preparou o fuzil também.

UUUUUUUUUUUUÓÓÓÓÓÓÓÓÓÓÓÓÓÓÓÓ

— Que ótimo!!! Eles tem um alarme!! Vai, vai, Ângela! — Eu também tinha minhas armas. Concentrei-me nos dois.

Começaram a ver um ao outro derretendo, as peles descolando dos ossos e escorrendo como lama sobre um barranco íngreme, os olhos largando das órbitas, os ossos aparecendo entre os espaços deixados pela carne mole, o sangue transbordando pelos orifícios como água. Um olhou em estado de choque, estático, congelado, o outro reagiu disparando contra o próprio amigo.

— Meu Deus! Meu Deus!!! Sai daqui, demônio! SAAAAAAIII!!! — E “bra-ta-ta-ta” nele.

Agarrei-me à borda da carroceria. Ângela dirigia como uma velha de 93 anos vendada, e acho que nunca descobriu que carros tem pedal de freios. Mais à frente, uma cerca alta, com portão trancado e uma guarita. Um caçador emergiu de dentro com uma espingarda em punho e...

— Não para, Ângela, não para!!

BLAM!

Os bagos da munição atingiram parte da lataria, deixaram um trincado no para-brisas e um corte na lateral do meu pescoço.

— Baixem a cabeça!! — Ângela gritou e pisou fundo.  O carro tremeu todo com o esforço, o motor berrou. Senti quando o veículo atingiu o caçador e passou por cima do desgraçado, deu dois solavancos como se acertasse uma lombada em alta velocidade. Aquilo que ficou para trás não poderia mais ser identificado como um ser humano.

— Boa! Strike!!

— O QUÊ?! — Ângela gritou.

Abri a janelinha que dava acesso de comunicação entre a traseira e a cabine, coloquei meu rosto no espaço.

— Falei que é isso aí! Sem dó desses…

Os soluços do menino me interromperam. Encostou a cabeça no ombro da mãe e chorou, assustado. As costas tremiam. Ângela me encarou pelo retrovisor, sobrancelhas franzidas e boca contraída.

— Não precisa ser assim, George! Você não precisa ser tão psicopata!

— Escuta aqui, Ângela... — Ergui um dedo autoritário. Fechei a cara de raiva.

Mas aquele choro... O menino não precisava de mais um pouco de show de horrores. E a pergunta voltou sobre mim como uma granada sem o pino: Até onde vai minha humanidade? Quanto do meu lado homem havia morrido?

— Ok! …Por ele. — continuei.

O vento sacudia meus cabelos, susurrava aos ouvidos. O motor velho irritava com o som grave e contínuo e ameaçava morrer a qualquer momento com o esforço tremendo.

— Então, onde a gente te desova com o garoto?

Mais um olhar reprovador.

— P*rra, Ângela! Um pouco de senso de humor não mata, né?

— Vamos para a casa da minha mãe.

Olhei para trás, sem sinal de faróis. Não nos acompanharam.

                                   ****

Paramos em frente a uma casa grande e  simples. Paredes com reboco de barro e tinta descascada. Sem forro no teto, ripas feitas com tronco de coqueiro, telhadão alto. Depois que o motor da picape cessou e os faróis apagaram, ficamos na presença da luz do luar e só se ouviam cricrilares e coachares. Nem uma lâmpada acesa do lado de fora.

TOC, TOC, TOC...

— Mãe?

TOC, TOC, TOC...

— Mããããe?!

Uma senhora abriu a parte de cima da porta dupla. Os olhos apertados, por trás de um óculos de armação grossa, focaram-se em mim antes mesmo que dessem atenção à filha. Os incontáveis cordões chacoalharam quando ela se mexeu. Era muito feia. 

— Isso aí é sua mãe?

— Sou sim, cria do mal! — Tinha um sotaque de russa e a voz saía rouca da garganta desgastada pelo tempo. — Minha carcaça pode não ser bela, mas meu espírito não é podre! 

A velha inspirou fundo e largou o ar junto com uma cusparada que caiu próximo ao meu pé.

— Posso sentir o cheiro do espírito ruim em tu, morto.

Ângela revirou os olhos, levou as mãos às têmporas.

— Não é hora pra isso, mamãe. Sua bênção.

Se aquela velha soubesse o tipo de trabalhinho que a filha andava fazendo para pegar vampiros, duvido que a abençoasse. 

— Minha filha, tu tá aqui? Pelos santos, tu tá realmente aqui!

As mãos fracas foram ao rosto de Ângela, pararam sobre a face da mulher. Um sorriso muito tenro, e quase sem dentes, se abriu. Os olhinhos negros lacrimejaram.

— E tu também, meu neto!

E começou o chororô coletivo. Cruzei os braços e me escorei na picape. Ed tava apagado, mas ficaria bem em breve.

— Mãe... — Ângela passou a mão sobre as lágrimas. — Precisamos ficar aqui.

— Essa casinha sempre tem espaço pra tu, filha. Vem, vem, anda.

O garoto e a mãe entravam com a velha, peguei Ed e dei uns passos para acompanhar.

— Pra onde tu vai, cria da escuridão?

— Olha, tia, sinto informar que a esta hora não tenho pra onde ir. Preciso mesmo de um abrigo até o próximo anoitecer.

— E tu acha que minha casinha abriga bicho que bebe dos outros?!

Aquilo me fez travar. Fiquei parado, com Ed pendurado nas minhas costas, olhando firme naqueles olhos pequenos de feiticeira; não poderia haver outra explicação: a velha era uma feiticeira, bruxa, capeta, sei lá…

— Como a senhora sabe...?

Ela chacoalhou um amontoado de pulseiras artesanais, que emitiram um som de cascavel. Uma brisa gélida soprou por entre nós.

— Mãe! Por favor? Pode retirar a proteção…

— Fica quieta, filha.

— Eles salvaram a gente. — Ângela segurou a mão da bruxa. — Só até amanhã?! Prometo.

— Olha… não tem pressa tá? Essa coisa aqui nas costas não pesa quase nada!

A velha levou um dedo ao queixo e fechou os olhos. Manteve a outra mão para trás.

Cricrilar e coachar, apenas.

— Só até amanhã — disse a bruxa. — E nem tente fazer coisa ruim na minha casinha.

Cruzei o umbral da porta. O clima de dentro da casa quase me fez desistir da estadia.

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