Capítulo 2.2

Escancararam a porta da cela, que arrancou um pouco do reboco quando acertou a parede lateral. Um caçador segurando cada braço meu, eu com o rosto voltado para o chão, as pernas deixando o rastro rubro, ralando os joelhos até quase não haver mais carne sobre a patela. Assistia às gotas de sangue que pingavam de vários pontos do meu rosto atingirem o piso. Um terceiro homem preparou as algemas, encaixaram meus pulsos lá, deixaram-me pendurado na solidão.

As últimas palavras daquele projeto de Victor Frankenstein remexeram na memória:

— Diário do doutor Paulo Menguele, noite dois, espécime dois. Relatório de estudos da capacidade regenerativa e fisiologia vampírica: Diante das observações, constatou-se que a criatura utiliza-se do sangue involuntariamente para cicatrizar lacerações, das mais leves às mais agressivas. Constatou-se ainda que a necessidade por manter-se ativo sobrepuja a regeneração de tecidos. Dados observados pela ausência de cicatrização a partir de determinado ponto dos estudos.

"Conclusão: O espécime reflete as necessidades humanas para se manter 'vivo'."

Estudos! Mas que delícia de experimento científico este!

A organização deles era perfeita. Perguntava-me o tempo inteiro como sair dali. Tinha de haver uma fraqueza. Acabei adormecendo, ou desmaiando, sei lá. Talvez o sol tivesse mostrado as caras do lado de fora.

****

Passos. Primeiro bem distantes, quase etéreos. Aumentavam à medida que minha consciência retornava. Os ratos voltaram a entrar em minha frequência auditiva, também o barulho da água passando pelos canos acima de minha cabeça e o gotejar que escapava das falhas de conexão entre eles.

Meus olhos abriram, dois camundongos caminhavam próximos aos meus joelhos. Os passos pararam de frente para a porta. Vi uma sombra pela fresta. A portinhola se abriu e enxerguei a silhueta de uma mulher

— Você sabe que merece tudo isso, não é?

Uma audição comum não perceberia os vacilos sutis na voz de Ângela.

— Mereço? Então me diga, por que você ou esses psicopatas são melhores que eu? — A voz saiu rouca e fraca, como se tivesse pó entalado na goela.

— Você matou meu Miguel, meu marido! Você... você merece!

— Aaaaaah, então é isso? Olha, não sei como funciona por aqui, mas de onde venho, se algum homem quer dar na sua cara, ele tem que tá pronto pra levar bifa de volta.

— Você nunca entenderia as razões dele... — Leve alteração emocional na voz. — Você... você é um maldito amaldiçoado! Nem sei se já teve algo que possa chamar de vida.

Baixei o olhar, movimentei os lábios por um momento, sem que nenhum som os atravessasse. Uma vida de muito suor e um casamento frustrado. A paternidade que nunca veio. Uma estocadinha na alma muito bem aplicada por Ângela.

A última frase doeu mais que grande parte da noite anterior.

— Vou admitir: ele era corajoso. Foi o único que me peitou sem se cagar de medo!

— ...

— O que você quer aqui afinal? Se deixa usar como isca pra me jogar nessa paródia de Auschwitz, e depois vem aqui pra bater papo?!

— ...

— O que você quer?! — Ergui a voz. — Apreciar o trabalho de açougue?

— Para...

— Olha aqui, bem aqui, oh! Parece um pedaço do fígado aparecendo...

— Para...

— Ou, que tal ir buscar o pedaço da minha orelha que deve ter caído pelo caminho!!...

— Por fa...

Chacoalhei as algemas, gritei, juntei um pouco de sangue num pigarreado sonoro e cuspi na direção da porta.

— E que tal olhar bem aqui em baixo pra ver se minhas bolas estão no canto, sua cobra peçonhenta imunda??!!!

— Chega!!!! Chega!! Tenho pena de você. Pena!

— Escute bem o que vou dizer, Ângela. Escute muito bem, porque é uma promessa! Eu vou sair daqui e vou fazer uma camisa com os retalhos da pele de cada um de vocês! E se você fugir eu vou te encontrar e vou atazanar até a sua décima geração e garantir que cada um deles seja internado em um manicômio, deu pra entender, vadia?!!!

Eu gritava, alucinado, enfurecido. Só pensava em estraçalhar cada caçador. Ângela largou um soluço, fechou a portinhola e saiu a passos rápidos.

Permaneci sozinho por vários minutos. A ira dava espaço à frustração. As palavras convictas se tornavam um pedaço de nada ecoando numa mente cheia de dúvidas.

Mais passos, de várias pessoas. A porta se abriu. Menguele, Matheus, o cara-de-brita da outra noite e um novato. Levaram-me de volta ao curral, fizeram todo o procedimento da maldita vaca, da dolorosa agulha no coração. Ao lado do aparato que me prendia, uma churrasqueira guardava bravas acesas, com um pedaço de ferro fincado entre elas.

Mal o sangue caiu no corpo e os ferimentos iniciaram a recuperação, mas antes que eu tentasse algo, uma dose do veneno da cobra foi bombeado para dentro de mim.

Matheus sorriu e disse:

— Boa noite, George, ou Algol, ou El Diablo! Não me interessa seu nome real, só espero que tenha dormido bem. Vai ser outra noite dolorosa. Pensou no que lhe pedi?

— Sim! — Sorri.

— Então?

Girei meu braço por dentro da algema, para que as costas da mão fossem vistas. Ergui o dedo do meio.

— Tá aqui a resposta!

Matheus cruzou os braços, alisou a barba e prosseguiu:

— Doutor. Pedro...

— Diário do doutor Paulo Menguele — dedo pressionando o botão do gravador —, noite três, espécime dois. Pesquisa sobre fisiologia e anatomia vampírica. Objeto de estudo: Resistência à queimaduras.

Pedro, o outro cara, catou a vara de ferro. Ela terminava com um círculo na ponta, no melhor estilo de marcar boi. Queimava em vermelho vivo, sedenta por um bom pedaço de pele.

Meus olhos amarelaram e quase saltaram das órbitas. Sacudi toda a estrutura, tentando recuar.

— Não parece tão atrevido agora, George — Matheus abriu um sorrisinho debochado.

Tentei me conter, mas foi inevitável:

— Nãonãonãonãonãonão...

O medo veio galopando sobre a ferramenta de ponta alaranjada. Primeiro o calor da proximidade, depois o contato.

Fffffssssssssss...

— IIIIIIIAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAHHHHHHHHH!!!! PARA, FILHO DA PUTA! TIRA!!!! TIRAAAAAAAA!!!!!

Pedro desgrudou o ferro. A pele veio esticada como queijo quente, colada ao objeto. Matheus se aproximou.

— Como, George? Como consigo o que você tem?

Juntei forças para falar, não daria uma de cagão ali. O som saiu lento, permeado de pavor:

— Você vai numa encruzilhada... toma uma dose de cana... e dança Macarena... Tudo isso com... com uma galinha preta debaixo do braço... — Ataquei seus olhos com os meus.

Ele fez um sinal negativo com a cabeça, piscou lento, suspirou.

— Pedro!

O metal vermelho tocou minha pele mais uma vez, no outro peito.

Minhas pregas vocais quase rasgaram quando o berreiro as atravessou. Contorci-me todo, estiquei as algemas, retesei todos os músculos. Tremia como se tivesse me atracado a um fio de alta tensão.

— Como, George?

Pedro levou mais um pedaço de mim colado ao ferro. O fedor de carne tostada fulminava meu olfato. As feridas nem davam sinal de que começariam a cicatrizar. Minha sede já aflorava de novo, o lado animal queria se libertar.

— Eu não terei pressa... nem dó de você..., Matheus! Escreve isso.

— Pedro, ele precisa de algo mais convincente.

Pedro abriu um armário, recolheu um maçarico, acionou o gás e riscou o isqueiro. A língua de fogo se esticou na boca da ferramenta.

Eu ofeguei, mesmo com os pulmões mortos há meses. O medo trancafiou cada molécula minha em seu calabouço.

A carne queimou até criar uma crosta preta, que fedia como ferida purulenta. O maçarico deixou uma marca na perna. Os gritos alçaram voo, ricochetearam nas paredes e preencheram o galpão como uma revoada de morcegos desesperados.

— Como... George?! — Uma leve alteração de humor em Matheus.

— EU NÃO SEI, PORRA!!!! — Pedro baixou o maçarico. Foi como receber um afago da mãe. — Eu... não... sei...

— Ped...

— Ele disse que não sabe, Matheus! — A voz de Ângela veio carregada de reprovação.

Ela estava com as mãos postas em oração, coladas ao peito. Percebi aquele olhar de novo; um brilho estranho de misericórdia que não condizia com os atos. Senti o cheiro pesado de que algo não se encaixava com ela.

Matheus caminhou até lá. Era uma máscara de raiva e desgosto. Segurou seu maxilar com uma mão.

— Por acaso você não esqueceu o que ele fez ao Miguel, esqueceu? Do que fez ao seu marido, esqueceu? Hum?

— Não! — A voz saiu apertada entre os lábios contorcidos. Não é... isso...

Matheus a soltou.

— Se destruir ele agora, não terá mais o que pesquisar! Foi... foi muito difícil achar o primeiro, lembra? Esse caiu em nossas mãos por acaso... porque pensávamos ser o outro! Não podemos perder tudo assim, concorda? Hã? É isso. É só isso. Ele é nosso inimigo! — Os olhos dela desviavam o tempo todo do rosto carrancudo do líder. — Por favor, Matheus, você não tá achando que...

A frase ficou suspensa nos lábios trêmulos da loira. Ele a rodeou como um animal espreitando a caça. Ergueu o queixo, olhando-a de cima, tocou o rosto da mulher e deu dois tapinhas bem leves.

— É bom ficar esperta, norinha! É bom ficar esperta.

Por fim, retirou-se do curral. Passos pesados, cabeça baixa, uma mão no bolso, a outra alisando o pequeno terço estranho.

— Por hoje é só!

Ninguém questionou. Cataram as ferramentas de tortura, arrastaram-me, jogaram-me de volta nas algemas da cela.

Trancaram a porta. Sacudi a cabeça incontáveis vezes. Passava e repassava tudo o que via e ouvia, procurando uma brecha, uma escorragada por parte deles. Nada.

Nada!

E então...

Em meio a vários sons que vinham de fora da sala, captei o choro de uma criança, misturado às vozes de Matheus e Ângela. A conversa soava nebulosa, indefinível pela distância, mas, se eu não estava ficando maluco, o menino pareceu chamá-la de mãe. Permaneceram um tempo naquele burburinho, as vozes se foram.

A escuridão afagava meu corpo. A água pingava pelas falhas na tubulação. Os ratos chiavam baixinho pelos cantos.







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Abraços.

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