Capítulo 1.4

Minhas mãos rasgaram a terra lamacenta do fundo da lagoa. Tomei abrigo ali, tal qual um feto no útero da mãe. Forcei o corpo, ergui-me. Bendito solo barrento que me serviu de escudo.

À margem da Lagoa Cristal, a moto jazia tal qual a havia deixado. Jogada, chave ainda na ignição, ligada. Devia restar quase nada de combustível.

Sentia dor ao toque na pele. Chamuscada e escura em certos pontos, os cabelos encurtaram após incendiarem, as roupas imundas.

Santa Lagoa! Antes de partir, meus olhos encontraram aquelas águas frias e calmas mais uma vez. Naquele momento éramos como metal e imã; uma inexplicável conexão maldita. Às vezes a sentia como uma mãe, pensando por esse ângulo, foi exatamente mergulhado em seus braços que renasci. E ela aparece para me acolher mais uma vez.

Resolvi deixar a moto lá mesmo. Alguém encontraria os cadáveres que ficaram para trás, não seria interessante estar com o pertence de um deles.

****

Breve análise dos arredores, varredura com olhos e ouvidos. Ninguém na rua.

Minhas chaves, meu carro, meus documentos, claro, tinham ficado na casa daquela vagabunda traiçoeira. Agachei-me e, de um impulso, saltei o muro da minha residência. Aderi mãos e pés à parede da casa, subindo como um inseto furtivo. A janela de vidro do meu quarto se dividiu em vários fragmentos após uma cotovelada; brilhavam sob a luz de um poste que invadia o ambiente. Procurei por vestígios de cheiros estranhos à residência. Tudo limpo.

Escorei-me numa parede, o corpo foi cedendo e arriando, escorregando, até que sentei.

Algumas questões fervilhavam na mente.

De onde Russo tirava tanta força? Por mais que eu não soubesse lutar, minha condição sobre-humana poderia dobrar qualquer humano sem esforço. Mas Russo, além de lutar pra cacete, tinha aquela força descomunal; As tatuagens, em Ângela, Russo, Roberto, e em todos aqueles caras, já as tinha visto antes, mas onde? E que porra era Lança?

Fechei os olhos, deixei-me levar pelos recônditos da memória, sem pressa, mergulhando cada vez mais em lembranças.

Uma faísca de memória:

Lan... fa. Cof-cof... fem... ef...c...pfa...tó... — Foram as últimas palavras de Caladão.

Isso! As sílabas saíram falhas por que o maxilar havia sido destroçado, mas agora, dando importância à informação, Caladão havia feito uma ameaça pouco antes de ir conversar com São Pedro! O que ele quis dizer foi:

"Lança. Sem escapató... ria!".

Eu estava sendo caçado desde aquele dia.

Precisava de informações. E sabia exatamente onde as conseguiria.

****

Saltei do táxi em frente a uma residência de classe média, com muretas baixas, protegidas por gradis ornamentados. Uma voz feminina não demorou a responder após o toque no interfone.

— Pois não.

— Boa noite, senhora, preciso falar com o Detetive Silvério Saduj.

Um tempo.

— Saduj aqui. Quem gostaria?

— El Diablo!

Ouvi um engolir em seco.

— O q-que você quer?

— Abra e descubra! Ou não abra e descubra também... Mas eu abriria!

O portão destravou.

A esposa dele abriu a porta de entrada. Mulher muito bonita, na casa dos trinta. Cumprimentei-a de forma educada. Fui guiado por um corredor enquanto trocávamos conversas triviais e chatas, até que alcançamos a sala de estar.

Logo uma menininha veio correndo, curiosa, agarrou-se à perna da mãe.

— Quem é, mamãe? — Notei que ela mirou meu olho cego. Baixou o olhar.

— Ei, garotinha, não precisa ter medo do meu olho. É que eu já fui um grande pirata. — Sorri.

Ela retribuiu o sorriso.

— Você pode me acompanhar! — Saduj trovejou. Os olhos atiravam ódio.

A esposa passeou o olhar entre nós, encolhendo os lábios.

— Bom... ãããã... acho que vou deixar vocês... a sós. Vem filha! — Ela puxou a moleca pela mão, sem chances para perguntas infantis.

— Ora, ora, ora. Há quanto tempo, velho amigo!

Ele suspirou.

— Por aqui.

Fomos para o escritório. Pequeno, mas aconchegante. Saduj respirou fundo umas três vezes. Parecia não querer demonstrar medo. O silêncio era acompanhado pelo cheiro agradável de madeira e verniz das estantes.

— Então você é o tal do El Diablo?

— Para gerar mais afinidade, pode me chamar pelo nome verdadeiro, Algol.

— E o que você quer, Algol? — Franziu o cenho, a mão abria e fechava o tempo todo, esfregadas contra a calça de moletom.

— Antes que você tente dar uma de fodão, Saduj, se lembre do que eu fiz. Acho que você ama sua família. Além do que, esta casa está um tanto quanto além dos vencimentos de um servidor público. Não preciso de muito pra te afundar na lama, se não em uma cova! Ah, e eu deixaria elas duas assistirem a tudo antes de mandá-las ao seu encontro.

Aquelas palavras, de certa forma, me atingiram também. Até que ponto será que minha nova natureza iria? Quis acreditar que foi apenas blefe. Baixei os olhos, mirando o vazio que estava além do tapete cinza sobre o piso de carvalho. Uma pergunta desabou como um relâmpago sobre minha cabeça: o quanto meu lado humano havia morrido?

— Não ouse... — Saduj me trouxe de volta das reflexões.

— Baixe o tom. — Ergui um dedo e uma sobrancelha.

Ele se conteve.

— Serei breve, detetive. Recebi a visita de uns desafetos, e não gostei nem pouco. Preciso de informações sobre eles.

— E por que você acha que eu sei quem são?

— Porque, meu querido, um deles fazia parte daquela máfia. Quero saber de onde era o tal Caladão, o que ele fazia antes, enfim... se vira.

— Caladão?! — ele retorceu o rosto e sacudiu a cabeça.

— Ah! Como era mesmo o nome dele? — Levei a mão ao queixo. Estalei o dedo. — Sim! Miguel. Era esse o nome.

— As informações que tinha sobre ele estavam na pasta que dei praquele seu... capanga, sei lá. O tal do Gambá.

— Pois é. Infelizmente ele a perdeu. Bem, posso dizer que ele perdeu mais que isso.

Saduj fez uma careta de curiosidade, apertando ainda mais os olhos pequenos. Coçou a cabeça, alguns fios brancos se soltaram e abandonaram os que ainda tinham cor preta.

— Digamos que depois do ocorrido ele precisa de alguém que tenha mãos para lhe ajudar na maioria das atividades.

O homem arregalou os olhos.

— Ok! Entendi! — Suspirou. — Vou ver o que consigo.

— Até amanhã ou... — Meu olho brilhou em amarelo, um par de chifres de carneiro rasgou minha testa, enrolaram-se em duas voltas, as pontas para frente.

O homem congelou numa careta de pavor e caiu sentado na cadeira estofada. Recolhi os chifres para o interior da cabeça, o olho voltou à coloração castanho-escuro.

— Não precisa me acompanhar, sei onde é a saída. — Retirei um papel, previamente preenchido com meu telefone, e deixei-o sobre uma estante de livros, à direita.

Abri a porta do escritório, que dava para a sala de estar. A filhinha dele assistia TV. Olhou para mim.

— Quer ver uma coisa bem legal? — eu disse com empolgação.

Ela olhou curiosa.

Catei uma agenda, de um criado mudo, e arranquei uma página em branco. Amassei-a, enfiei-a no paletó e a puxei de volta, transformada num corvo. A menina fez uma cara de felicidade e aplaudiu. Deixei que ela fizesse um carinho na cabeça do pássaro. Joguei-o para cima. Alçou voou e saiu por uma janela.

— Viu, papai! — Ela agitava os bracinhos com alegria contagiante. — Ele pode vir aqui mais vezes?

Ela mirou os olhinhos brilhantes na direção do pai, depois voltou a olhar para mim.

— Você é bem legal, tio!

Encarei Saduj, através da porta aberta do escritório, ainda estático na cadeira.

— Até amanhã, detetive!






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Abraços.


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