7 - Sabia

A madrugada sempre foi minha aliada.

Silenciosa, calma, mas com uma presença quase opressora que só o vazio pode trazer.

Agora, era mais como uma tortura: o quarto frio e iluminado por uma luz fraca no corredor me fazia sentir como um prisioneiro.

Deitado na cama, os pensamentos vinham como mariposas se chocando contra uma lâmpada, frenéticos, imprecisos.

O que estava errado comigo? Não era apenas o corpo que estava fragilizado.

Algo na minha mente...

- Você está acordado, não é? - A voz de Pete ecoou suave, mas inesperada.

Olhei para o canto do quarto, onde ele estava encostado na poltrona, as pernas cruzadas e as mãos unidas, como se estivesse à vontade.

- Nem parece que soube bater na droga da porta mais cedo. - Resmunguei.

Ele sorriu, um sorriso pequeno, mas que parecia carregar mais do que uma resposta óbvia.

- Achei que já tivéssemos superado isso. Além disso, você não tranca a porta, Vegas. É quase como se estivesse me esperando.

Bufei. Ele sempre sabia como transformar uma provocação num espelho.

- Vai direto ao ponto ou vai continuar me analisando?

- Eu não te analiso. Só observo.

O jeito dele falar me deixava desconfortável.

Não era como os outros ao meu redor.

Nop, a psicóloga, todos eles andavam em círculos, escolhendo cada palavra com cuidado, como se eu fosse feito de vidro.

Pete, por outro lado, simplesmente existia, firme e calmo, sem medo de me encarar.

- Você sempre foi assim? Irritantemente sereno?

- Você sempre foi assim? Irritantemente tenso? - Ele rebateu, sem se mover.

Olhei para o teto.

Meu coração ainda carregava os ecos do pesadelo, mas não ia dar isso de bandeja para ele.

- Você não entende, Pete. Não é simples.

- Então explica, Vegas. Me diz por que você está aqui, preso nessa cama, lutando tanto contra algo que nem mesmo nomeia.

Minha cabeça latejou.

Um flash: a mão de um homem segurando algo pesado. Um grito abafado. Não consigo lembrar se o grito era meu.

- O que foi isso? - Murmurei para mim mesmo, esfregando os olhos.

- Vegas? - Pete se aproximou. Ele parecia genuinamente preocupado.

Balancei a cabeça, irritado comigo mesmo.

- Nada. Apenas... imagens. Coisas sem sentido.

Ele sentou na beira da cama, e eu me afastei por reflexo. Não era medo. Era desconforto, como se sua presença me puxasse para algo que eu não queria encarar.

- Você sabe o que eu acho?

- Não, mas vai me dizer mesmo assim. - Resmungo.

- Acho que você está fugindo de si mesmo.

Minha mão se fechou em um punho.

- Não joga esse papo psicológico barato para cima de mim.

- Não é barato. É verdade. Você pode odiar, mas não pode negar. Não para sempre.

Antes que eu pudesse responder, outro flash: um olhar furioso, dedos firmes segurando meu braço enquanto uma dor aguda me invadia.

- Vegas?

A voz de Pete me trouxe de volta, mas eu sentia a testa molhada de suor. Respirei fundo, tentando me centrar.

- Sai daqui. Vai embora.

Ele não se moveu.

- Você acha que me afastar vai apagar o que sente? Não é assim que funciona. Eu não sou o inimigo, Vegas. Você é.

Levantei a cabeça, mirando seus olhos.

Algo nele me desarmava, mesmo quando eu queria odiá-lo.

- Sai. Agora.

Pete levantou, sem pressa.

Antes de atravessar a porta, ele parou e olhou por cima do ombro.

- Quando você estiver pronto para a verdade, Vegas, eu estarei aqui. Mas precisa ser você a abrir essa porta.

Ele saiu, e o quarto ficou vazio novamente.

Ou talvez não.

Talvez eu ainda estivesse lutando contra algo que sempre esteve dentro de mim.

Fechei os olhos, mas o rosto de Pete permanecia ali.

Não como uma ameaça.

Mas como uma verdade que eu não estava pronto para encarar.

A noite caiu de novo, e com ela veio o peso da
escuridão.

Não era só o quarto que estava
escuro. Era a minha mente, presa em um
labirinto sem saída.

Fechei os olhos, esperando que o sono me pegasse de uma vez, mas a cada tentativa de fechar a mente, os pesadelos tomavam conta.

Era o mesmo sonho. Eu batendo em Pete. Mas,
dessa vez, era diferente.

O ódio era mais intenso as pancadas mais brutais. Eu não me importava com o quanto ele gritava, com os pedidos de ajuda que ele fazia.

No meu sonho, Pete não era mais uma pessoa, era um reflexo de tudo o que eu odiava, de tudo o que me atormentava.

E a cada golpe, eu sentia algo quebrando dentro de mim, como se algo estivesse tentando se
libertar, mas, ao invés disso, só piorava.

Eu o empurrava contra a parede, sentindo a dor
se espalhar por cada parte do meu corpo.

A raiva era tanta que meu corpo parecia mais forte, mais violento, como se eu estivesse acumulando toda a dor do passado, toda a dor que eu havia escondido, toda a raiva que eu nunca deixei sair.

As mãos tremiam de tanto ódio, e, quando bati
nele mais uma vez, tudo se distorceu.

O rosto dele mudou. A cada batida, Pete foi se
transformando.

Seus olhos começaram a escurecer, seu corpo encolhia e, no lugar dele, estava... o meu pai.

Eu não conseguia entender.

A visão se embaralhava e, em vez do Pete, era meu pai, com a expressão de raiva, me olhando de cima, como sempre fazia.

Ele não estava mais gritando, ele estava rindo.

A risada era cruel, sarcástica, como
se tudo o que eu fazia fosse inútil, como se eu
fosse apenas uma extensão dele, condenada a
repetir os mesmos erros, a sentir a mesma dor.

Eu estava de volta na casa. Naquela maldita
casa.

A cena era a mesma, só que agora, era eu
quem estava no chão.

Ele estava em pé, me olhando, com uma expressão de desprezo. O golpe que eu tomei parecia real, minha cabeça doía como se a pancada tivesse sido de verdade.

Eu tentei me levantar, mas a dor me derrubava de
novo. Cada tentativa de me erguer era inútil.

O pai estava ali, me espancando, e eu não
conseguia me defender.

Eu estava apanhando. Não era ele me batendo,
era eu. Ele era só o reflexo de tudo o que estava
dentro de mim.

O medo, a raiva, a culpa.

Eu não sabia quem eu era mais. O filho que apanhava ou o pai que batia.

Era tudo uma bagunça. Não conseguia escapar daquelas lembranças. Não conseguia escapar do ciclo.

Eu tentei gritar, mas minha voz estava presa na
garganta. Eu queria que tudo fosse diferente.

Queria entender o que estava acontecendo. Por
que tudo parecia girar em torno da mesma
merda.

Acordei de repente.

O suor escorria pelo meu rosto, a respiração ofegante.

O quarto estava escuro, mas o pesadelo ainda estava lá, na minha mente, como uma névoa densa que não me deixava em paz.

Eu me sentei na cama, tentando controlar a respiração, tentando afastar a sensação de sufocamento.

Mas não havia como. A dor ainda estava lá, como uma cicatriz que não sarava.

Eu fechei os olhos, tentando forçar o sono novamente. Mas a visão do Pete apareceu,
mesmo que eu não quisesse.

Ele estava lá, na porta do quarto, olhando-me com aqueles olhos calmos, como se soubesse o que estava acontecendo.

Como se entendesse o que eu estava sentindo, sem que eu precisasse dizer uma palavra.

- Você está se perdendo, Vegas. - A voz dele soou
suave, mas penetrante. Eu não queria ouvir, mas
não consegui ignorá-la.

Eu não queria sentir isso. Eu não queria ser esse
homem. É isso que eu sinto.

Eu não queria ser quem eu estava me
tornando. A dor de tudo o que eu carregava
dentro de mim estava me destruindo.

A raiva, a culpa, a vergonha. Era uma mistura impossível de controlar, e, por algum motivo, Pete estava ali, no meio disso tudo, sendo o que eu queria e o que eu temia.

Mas, mais do que qualquer coisa, ele era o
reflexo daquilo que eu nunca poderia alcançar.

A paz. A calma que ele exibia, enquanto eu estava
preso em um turbilhão de caos.

Eu queria odiá-lo, queria empurrá-lo para longe
mas, ao mesmo tempo, sentia um vazio quando ele não estava perto.

Eu não sabia mais quem eu era.

Não sabia se a dor era minha ou dele.

Não sabia o que significava viver com isso. Mas sabia que, de alguma forma, eu precisava dele.

Mesmo que isso me matasse por dentro.

Eu sabia que o dia havia chegado, embora o corpo ainda estivesse relutante em sair da cama.

O peso da noite, dos pesadelos, da raiva... tudo parecia ter me esmagado ainda mais.

O dia não tinha sequer começado, mas a sensação de estar perdido era como uma sombra que me acompanhava.

E Pete parecia reafirmar essa sombra.

O mundo lá fora não me parecia mais real.

Algo dentro de mim não parecia... No lugar.

E, por mais que tentasse negar, o reflexo de tudo o que acontecia dentro de mim começava a tomar formas cada vez mais distorcidas.

Eu estava sentado na cama, os olhos fixos no espaço vazio à minha frente, mas não conseguia focar.

A mente estava em um loop constante.

Cada imagem, cada memória, me arrastava para uma versão de mim que eu não reconhecia.

Eu ainda era aquele garoto que apanhava, ainda era aquele homem que batia, mas, em algum lugar do meio, eu me perdi.

E Pete... Pete sempre estava lá.

Era como se ele fosse uma âncora que, por mais que eu tentasse empurrar para longe, me puxasse de volta.

- Vegas, você não pode continuar assim. - A voz de Nop cortou a tensão no ar, e eu quase me esqueci de que ele estava ali.

Ele sempre estava.

Era como se fosse parte do cenário, um espectador que nunca saía da minha vista.

Eu não respondi, apenas continuei olhando para o vazio.

Minha cabeça doía, mas não fisicamente.

Era uma dor diferente.

Uma dor que não sabia como aliviar.

Eu queria falar, queria gritar, mas as palavras não saíam.

E quando, finalmente, a vontade de falar se fez presente, a única coisa que saiu foi a pergunta que eu mais temia.

- Nop... o que aconteceu comigo? - A voz saiu rouca, quase como se tivesse sido arrancada de dentro de mim.

Ele hesitou por um momento, mas não desviou o olhar.

Eu sabia que ele sabia.

Ele sempre soubera, mas nunca tinha me contado tudo.

Eu podia sentir isso, como se ele fosse o único que ainda me entendesse em meio ao caos.

Mas, dessa vez, ele não respondeu de imediato.

- Você sabe o que aconteceu. Você só não quer lembrar. - Ele disse calmamente, sem pressa, como sempre fazia.

Mas a palavra "lembrar" parecia pesar mais do que qualquer outra coisa.

Eu sabia.

Sabia de alguma forma, mas não queria saber.

Se eu soubesse a verdade, se eu realmente entendesse o que aconteceu, talvez eu não fosse capaz de olhar para o espelho novamente.

É isso que eu sinto.

- Você vai me dizer o que aconteceu? - Insisti, quase com raiva.

Era como se eu esperasse que ele finalmente quebrasse o silêncio.

- Você fez algo muito importante, Vegas. E agora, precisa lidar com isso. - Ele disse, mais sério do que o normal. - O que aconteceu com você... com sua cabeça, foi mais do que só um acidente. Mas o que aconteceu antes disso é o que realmente importa.

Eu o olhei, tentando entender o que ele queria dizer, mas ele só me deu uma resposta vaga.

- Eu não me lembro de nada. - Murmurei, a frustração tomando conta de mim. - Eu não lembro de nada além de... você, e Pete. E aquela dor.

A última palavra escapou da minha boca, com mais peso do que eu queria.

- Pete? - Nop perguntou, a voz grave.

Eu o encarei.

Não sabia o que queria exatamente.

Não sabia se estava procurando respostas ou se estava apenas falando para aliviar a tensão que me consumia por dentro.

- Sim. Pete. Ele sempre está aqui. Como se fosse... uma parte de mim. - Eu parei, tentando articular as palavras, mas não conseguia. - Eu não sei... o que ele é. O que ele significa. Eu... me sinto fora de mim quando ele está por perto, mas não consigo afastá-lo.

Nop deu um passo à frente, quase como se estivesse analisando minhas palavras, tentando entender.

Ele não dizia nada, mas havia algo em seu olhar que me dizia que ele sabia mais do que estava disposto a admitir.

Foi então que a porta se abriu.

Era Pete.

Ele entrou no quarto com aquele sorriso tranquilo, como sempre.

Não havia pressa em seus movimentos, não havia medo.

Ele se aproximou e se sentou ao lado da cama, ao contrário de Nop, que ficava de pé, me observando com uma intensidade estranha.

- Eu sou o Pete. - Ele disse, como se fosse uma explicação, uma resposta para o vazio. - Eu só estou aqui, Vegas. Não precisa ter medo de mim.

Eu o encarei, confuso, a tensão crescente em minha cabeça.

Cada palavra parecia carregar um peso.

Eu não sabia como reagir.

- Você nunca me deixa em paz, não é? - Perguntei, a raiva novamente me consumindo, embora fosse diferente.

Era uma raiva silenciosa, quase apática.

Ele não se afastou, nem recuou.

Apenas olhou para mim com aquela calma que me deixava maluco.

- Eu não sou o inimigo, Vegas. Você sabe disso. - Ele respondeu suavemente, sem perder a calma.

Eu queria gritar, queria bater.

Mas, ao mesmo tempo, eu estava completamente paralisado pela mistura de emoções que estava sentindo.

Raiva, confusão, uma dor que não sabia de onde vinha, e, por algum motivo, um desejo que não sabia explicar.

Eu não sabia mais em quem confiar, ou o que estava acontecendo comigo.

Eu não sabia o que estava sentindo, mas sentia que algo estava se quebrando dentro de mim.

O que eu sabia, no entanto, era que Pete não ia embora.

E que, por mais que eu tentasse afastá-lo, ele sempre voltaria.

Porque, no fundo, ele fazia parte de mim. E talvez isso fosse o mais doloroso de tudo.

- Você está ouvindo, Nop? - Questiono, confirmando que esse homem diante de mim não passa de uma ilusão.

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