15 - Destinados
O mundo retornou lentamente, como se estivesse emergindo debaixo d'água.
Sons abafados se tornaram mais nítidos, e a primeira coisa que senti foi um toque quente e hesitante em meu rosto.
- Ei... ei, por favor, acorda. - A voz dele estava carregada de urgência e preocupação.
Abri os olhos com dificuldade, piscando contra a luz acima de mim.
O rosto dele era a primeira coisa que vi, tão próximo que pude ver cada detalhe: o franzir leve entre as sobrancelhas, o brilho ansioso nos olhos.
- Graças a Deus... - Ele suspirou, um alívio palpável atravessando sua expressão enquanto recuava ligeiramente, mas sem soltar minha mão. - Já estava preocupado sobre como explicaria pra polícia um corpo que nem matei, mas que está no meu sofá.
Mão?
Eu nem tinha percebido que ele estava segurando a minha, os dedos entrelaçados aos meus de forma quase natural.
O toque era real. Quente. Vivo. Um contraste gritante com o que ainda dominava meu corpo.
Tentei me sentar, mas uma tontura me fez recuar, respirando fundo.
- Calma, não se mexa muito rápido. - A voz dele agora era mais suave, um sussurro confortante. - Você desmaiou.
Desmaiei.
A memória voltou em fragmentos.
O choque, o olhar dele, o toque, o colapso.
- O que... está acontecendo? - Minha voz saiu fraca, rouca, como se eu não falasse há dias.
- Você desmaiou no meio da escada, e como não achei que deixar você jogado no chão fosse uma boa ideia, trouxe você pra cá. - Como tá se sentindo?
Meus olhos se fixaram nele, buscando algo que fizesse sentido. Mas não havia lógica, apenas a certeza assustadora de que aquilo era real, que ele era real.
- Beba. - Disse, entendendo um copo com água.
- Qual é o seu nome? - Perguntei, sem conseguir me mover.
Uma ansiedade dominando meu peito.
Ele se surpreendeu no início, então sorriu levemente.
- Pete.
Ouvi-lo dizer aquilo foi como um estalo em minha mente, um eco de algo que sempre esteve lá.
Pete.
O nome que eu conhecia antes mesmo de ouvir sua voz.
Minha respiração ficou presa na garganta. Ele apertou minha mão de leve, como se pudesse sentir o tumulto dentro de mim.
- E você? - Ele perguntou, a voz baixa. - Vegas, certo?
Engoli em seco, sentindo o peso de cada palavra antes de pronunciá-la.
- Como...?
Ele repetiu em um sussurro:
- Vegas...
Havia algo no modo como ele disse isso, algo que me fez tremer por dentro.
Não era apenas um nome. Era um reconhecimento, uma confirmação silenciosa de que aquilo não era um delírio.
Pete sorriu de novo, um sorriso pequeno e incerto, mas real.
- Acho que... estamos destinados a nos conhecer. - Ele disse, com um brilho curioso nos olhos.
Destinados.
A palavra ecoou em minha mente enquanto eu olhava para ele, ainda tentando entender. Mas, no fundo, talvez não precisasse entender. Talvez, por agora, fosse suficiente saber que ele estava ali.
Real.
Um silêncio denso se instalou entre nós, carregado de algo antigo e inominável. Eu queria dizer algo, mas minha garganta parecia fechada.
Pete não desviava o olhar, como se estivesse esperando por uma confirmação, um fio de reconhecimento da minha parte.
- Eu... - Minha voz falhou. Eu não sabia o que dizer. Não sabia como reagir.
- Você não lembra, né? - Ele perguntou, mais como uma constatação do que uma dúvida.
Eu o encarei, tentando encontrar um resquício de memória que fizesse sentido. Nada.
Pete suspirou.
- Eu sabia que isso poderia acontecer. - Ele sorriu, mas havia algo melancólico no gesto. - Mas não importa. Eu lembro.
Ele lembra?
Lembra do que?
Fiquei em silêncio, esperando que ele continuasse.
- Seus olhos. - Ele inclinou levemente a cabeça, me analisando com atenção. - Eu reconheceria esses olhos em qualquer lugar.
Um arrepio percorreu minha espinha.
- O que... você quer dizer com isso?
- Que eu sei quem você é. E sei que você é o mesmo garoto que conheci quando criança.
Minha respiração vacilou.
- Isso não faz sentido...
Como é possível que o menino da minha infância tenha o nome e o rosto da projeção do Pete da minha mente?
- Mas faz pra mim. - Pete sorriu, um sorriso de alívio. - Eu passei anos pensando em você, tentando entender o que aconteceu, o porquê de ter sumido do nada. Mas acho que você... me esqueceu. - Seu sorriso enfraqueceu.
O peso daquelas palavras me atingiu de um jeito estranho.
Eu o esqueci? Mas se era verdade, como a minha mente havia criado uma ilusão perfeita dele como adulto? Como eu sabia exatamente cada detalhe do seu rosto, sua voz, seus gestos, sem nunca tê-lo visto antes?
Minha cabeça latejava. Eu queria negar, queria afastar aquela possibilidade. Mas algo dentro de mim dizia que Pete estava certo.
Eu só não sabia como.
O som de batidas na porta me trouxe de volta à realidade.
Meu coração ainda estava acelerado, a confusão girando na minha mente como um furacão, mas antes que eu pudesse processar qualquer coisa, Pete se afastou e foi atender.
Ele abriu a porta com um movimento firme, e seu corpo imediatamente ficou tenso.
Sua expressão se fechou, os olhos assumindo uma frieza cortante.
- Você? Ainda existe na vida dele?
O tom de Pete era duro, carregado de algo que eu não conseguia identificar.
- O quê? - A voz de Nop saiu surpresa. Mas então, ele piscou, sua boca se abriu levemente, e sua expressão mudou de confusão para puro choque.
Eu não conseguia ver seu rosto dali, mas vi quando ele deu um meio passo para trás.
- Espera... - Nop murmurou, os olhos arregalados presos em Pete. - Não pode ser.
Pete arqueou uma sobrancelha, visivelmente impaciente.
- O que foi?
Nop não respondeu imediatamente. Seu olhar subiu e desceu pelo rosto de Pete, como se estivesse vendo um fantasma. Ele abriu a boca, fechou, abriu de novo.
- Vegas... - Ele me chamou, ainda sem tirar os olhos de Pete. - Esse cara... ele...
Antes que terminasse a frase, ele puxou o celular do bolso e abriu a galeria de fotos.
Meu estômago afundou. Eu sabia exatamente o que ele estava procurando.
O rosto era idêntico. A mesma curvatura dos lábios, o formato dos olhos, até mesmo o olhar carregado de uma intensidade silenciosa.
Pete franziu a testa.
Nop me olhou, esperando que eu explicasse. Mas eu não tinha explicação. Meu peito apertou. Minha garganta secou.
O silêncio pesou entre nós.
Pete cruzou os braços, olhando para mim agora.
- Quer me dizer o que está acontecendo aqui?
Nop finalmente saiu do transe e guardou o celular, voltando sua atenção para mim.
Ele suspirou pesadamente, como se tivesse acabado de resolver algo em sua mente, então veio até mim, ignorando Pete.
- Vamos, Vegas. - Sua voz era firme, sem espaço para discussão. - Você tá bem o suficiente pra sair daqui?
Meus olhos foram de Pete para Nop, e de volta para Pete. Eu não sabia o que responder.
Minha cabeça ainda estava um caos completo.
Pete, no entanto, franziu a testa e se colocou entre nós.
- Espera aí. - Ele ergueu uma mão, impedindo Nop de se aproximar mais. - Pra onde você quer levar ele?
- Pra casa dele, óbvio. - Nop rebateu, cruzando os braços.
Pete não se moveu.
- E como você sabia que ele estava aqui?
Nop deu uma risada seca, sem humor.
- Eu vi você carregando o corpo dele aqui pra dentro.
Pete piscou, claramente sem esperar aquela resposta tão direta. Mas então, bufou e revirou os olhos.
- Não me olhe como se eu fosse um cara mal. - Respondeu, cruzando os braços. - Era você quem afastava ele das outras crianças.
Foi o que Nop me disse... Então esse Pete é mesmo o menino da minha infância, mas como isso seria possível?
Nop abriu a boca para retrucar, mas parou.
Seu rosto ficou sério por um momento, como se aquelas palavras tivessem um peso maior do que ele queria admitir.
Ele desviou o olhar, respirou fundo e então se voltou para mim novamente.
- Vegas, vamos. Você precisa descansar.
Eu hesitei. Ainda sentia meu corpo pesado, minha mente girando com perguntas sem resposta.
Mas sair dali parecia a única escolha que eu conseguia tomar no momento.
Lentamente, me levantei. Pete me olhou como se quisesse me impedir, mas não disse nada.
Eu passei por ele, sentindo seu olhar queimando minhas costas.
Assim que saímos do apartamento, uma sensação incômoda se instalou em mim, como se estivéssemos sendo observados.
Descemos pelo corredor em silêncio, mas, ao dobrarmos a esquina em direção ao elevador, um som de passos sutis ecoou atrás de nós.
Nop parou abruptamente, fechando a cara antes mesmo de se virar.
- Você quer parar de nos seguir? - Ele disparou, cruzando os braços.
Eu pisquei, confuso, antes de perceber a figura parada alguns passos atrás.
Pete.
Ele nos observava com as mãos nos bolsos, uma expressão nada sutil de quem estava nos seguindo.
- Eu sou livre pra andar pelo prédio. - Ele respondeu com desdém, dando de ombros, como se não se importasse.
Mas ele se importava.
Eu vi no olhar dele. A preocupação, o incômodo, a hesitação.
Ele não confiava em Nop.
- Então anda em outra direção. - Nop rebateu, estreitando os olhos. - Porque a gente tá saindo.
Pete permaneceu imóvel por um instante, como se estivesse calculando o que dizer.
Eu me senti estranhamente dividido. Entre a preocupação de Pete e a impaciência de Nop, minha mente ainda girava com as perguntas sem resposta.
- Eu tô bem. - Murmurei, mesmo sem ter certeza se era verdade.
Pete não pareceu convencido, mas não discutiu.
Ele apenas soltou um longo suspiro e desviou o olhar, como se estivesse relutante em nos deixar ir.
Nop soltou um suspiro irritado, passando a mão pelos cabelos como se estivesse tentando conter a frustração.
- Isso tá ficando esquisito. Você tá nos seguindo por quê? Quer saber onde moramos agora?
Pete arqueou uma sobrancelha, cruzando os braços com uma expressão de puro desafio.
Ele não parece gostar do Nop, mas por quê?
- Vocês sabem onde eu moro. Me parece justo.
Nop riu sem humor, balançando a cabeça.
- Isso não faz o menor sentido.
- Faz pra mim. - Pete rebateu no mesmo tom, os olhos nunca deixando os de Nop.
Eu, ainda confuso com tudo que estava acontecendo, olhei de um para o outro, sentindo a tensão no ar aumentar a cada segundo.
- Poderiam parar? - Minha voz soou mais cansada do que eu pretendia.
Nop bufou, mas assentiu, puxando meu braço para que continuássemos andando.
Pete ficou para trás, mas eu sabia que ele ainda estava nos observando.
Eu podia sentir.
Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top