02
Winter's pov:
"Nunca esqueça do nosso primeiro encontro, porque jamais esquecerei o seu olhar."
Respirando fundo, sento-me no banquinho em frente ao piano e repouso minhas mãos sobre suas teclas adormecidas. Meus professores sempre dizem que as cordas do piano contam histórias de acordo com o modo de tocar do pianista, mas nesse momento o conto talvez não seja tão real.
Começo a tocar os primeiros acordes de uma música melódica, algo que celebre a alegria e a beleza da vida.
Meus dedos se movem naturalmente, sem me esquecer de nenhuma nota. Sinto que todos me olham, mas nesse momento nada disso importa. Fecho os olhos e começo a cantar. Minhas palavras se harmonizando com as notas e os compassos que emanam do piano.
Hoje é o dia do meu aniversário de 21 anos. Sim, somente na Coréia do Sul alguém transforma a maioridade da filha em um evento social. E somente em Seul os convidados realmente comparecem. Fico me perguntando se existem pessoas que realmente amam esse tipo de exposição.
Começo a mover meus dedos com mais fluidez, marcando o compasso da música mentalmente. Então simplesmente me entrego, sentindo como se eu estivesse no palco diante de uma plateia de verdade, apresentando-me.
Quando a música termina, eu mantenho as mãos nas teclas, ouvindo o eco das notas se esvaindo no ar. O silêncio se prolonga por mais alguns instantes antes de irromper em uma salva de palmas.
Levantando-me, faço uma breve reverência em agradecimento. Quando ergo o rosto, encontro o olhar de orgulho dos meus pais. Eles são as pessoas mais interessadas em fazer todo mundo acreditar que estou adorando essa festa. O mais deprimente é que todo mundo parece realmente disposto a acreditar nisso.
Não dá para ficar dentro dessa casa por um segundo a mais. Para um lugar de comemoração, o ambiente propaga uma forte sensação de asfixia.
Seguindo pelo salão principal, ando até o lado de fora, sentindo a brisa da primavera em minha pele. Está mais frio do que nos anos anteriores. Sinto minha pele arrepiar antes mesmo de eu chegar aos degraus. Puxando o vestido preto que estou usando, tento não bambear sobre a altura pouco familiar de meus saltos.
Sentada no degrau mais alto da entrada da minha casa, me apoio nos cotovelos, colocando-os de maneira que eu sinta uma ligeira dor pela pressão que faziam contra a cerâmica. Ergo o olhar para o céu e observo uma estrela brilhar na imensidão escura, parecendo sozinha e sem rumo.
— Bem, parece que você e eu temos muito em comum, Sra. Estrela.
Não tenho certeza disso, mas estou começando a achar que a solidão é uma doença. Uma doença perigosa, que demora a entrar em seu corpo e então te domina, mesmo que você tente combatê-la ao máximo.
— Estou interrompendo? — Pergunta uma voz atrás de mim. A voz de Ningning.
Virando-me, eu a vejo ali de pé com os braços cruzados. Ela sorri para mim, mas seus olhos parecem cautelosos. Dou um tapinha no espaço vazio do degrau ao meu lado e ela é rápida em aceitar meu convite silencioso.
Ning Yzhuo é minha melhor - e única — amiga. Nós nos formamos juntas no ensino médio, e ela com certeza era a palhaça da turma. No entanto, fora desse papel, ela também é uma pessoa muito boa, e eu sempre adorei sua visão positiva do mundo. Além disso, ela é uma das únicas almas em quem eu confio para guardar meus segredos. É a garota que permite que eu saia do meu papel de garota perfeita para ser um pouco livre.
Ela também está usando um vestido, mas acrescentou ao visual uma jaqueta desposjada. As pessoas lá dentro estão provavelmente olhando torto para a roupa que ela escolheu, mas Ningning não liga para o que os outros pensam.
— Você está bem? — Ela pergunta, uma ligeira inquietação na voz. Se existe alguém mais preocupada comigo do que meus pais, esse alguém é Yzhuo.
— Só precisava tomar um ar — respondo, sem querer preocupá-la.
— Essa festa está sendo sufocante?
— Está. — Passo meus dedos pelos degraus, sentindo a textura áspera na minha pele lisa.
— Bom, sinto muito em desapontá-la, mas não vou poder dormir aqui hoje. Sendo assim vamos ter que adiar nosso debate sobre frustações para outro dia.
— Por falar nisso, você precisa trazer mais roupas para deixar no meu guarda-roupa se planeja morar comigo — digo, sorrindo.
— Vou providenciar isso. — Ela me dá uma piscadela.
Ficamos alguns instantes em silêncio, apenas apreciando a brisa noturna e ouvindo o som abafado dos convidados aproveitando a festa.
— Então, será que já podemos discutir a respeito do que está incomodando você?
— Por que acha que tem algo me incomodando?
Ela ergue a sobrancelha. Não sei se adoro o fato de Ningning saber exatamente como me sinto. Quer dizer, por um lado acho que diz muito sobre ela o fato de me conhecer tão bem. Por outro... não tem como esconder nada dessa garota. E é exatamente por isso que decido ser sincera com ela.
— Vou me assumir para os meus pais.
As palavras queimam o fundo da minha garganta e, assim que saem dos meus lábios, me sinto ridiculamente sozinha.
Ela não sabe o que dizer depois disso. Nem eu.
Ficamos em silêncio por um longo tempo. A brisa está mais gélida, e eu sei que devo voltar para dentro de casa antes que meus pais saiam para me procurar. Levanto-me do degrau, espanando a parte de trás do meu vestido com a mão direita e agradeço a Ningning por ela ter ficado do meu lado sem me criticar ou me julgar.
— Você vai fazer isso hoje? — Yzhuo sussurra.
— Não. Prefiro fazer isso quando estivermos as sós. — Digo. Por minha mente passa um turbilhão de pensamentos desesperados sobre o que está por vir.
— Acho que essa é a melhor opção.
— Meus pais vão surtar. — O tremor em minha voz é percebido por Ningning, e ela passa o braço pela minha cintura, me puxando mais perto para um abraço acolhedor.
Ela sabe que eles vão enlouquecer com isso, principalmente meu pai.
— Bem, me avisa se precisar de qualquer coisa.
Um sorrisinho triste surge nos meus lábios. Melhores amigos são realmente especiais. Eles sempre nos lembram de que nunca estamos realmente sozinhos.
\[...]
Todos os dias, eu e minha família jantamos juntos. Meus pais geralmente estão ocupados com o trabalho, mas sempre encontram uma forma de termos ao menos uma refeição no mesmo horário. É o momento em que ficamos juntos à mesa de jantar, nos atualizando sobre as vidas uns dos outros durante a refeição caseira.
Minha mãe passa a travessa com kimchi pela mesa.
— Ah, tenho uma novidade! Minjeong, o Sr. Park ligou para falar sobre o projeto em que você se inscreveu alguns meses atrás. Ele disse que a sua apresentação vai ser uma das mais esperadas pelo público. Parece muito importante.
A voz dela está cheia de orgulho e aprovação. Minha mãe não se incomoda por eu gostar mais do mundo da música do que do mundo médico em que ela trabalha. Ela é uma daquelas mães que acredita que os filhos devem seguir seus próprios caminhos.
A travessa para nas minhas mãos e eu a passo para Seungmin, meu irmão mais velho, sem responder ao entusiasmo da minha mãe.
— Achei que ficaria contente — ela diz, franzindo levemente a testa. — Achei que era o que você queria.
Permaneço em silêncio.
— Minjeong, sua mãe está falando com você — diz meu pai com a voz forte, mas seus olhos observam o tablet em suas mãos, onde provavelmente ele vê algo relacionado ao trabalho.
Meu pai tem essa mania de apoiar minha mãe mesmo sem estar prestando a menor atenção. Ele sempre entra nas conversas no momento exato, como se fosse um sexto sentido em relação à esposa.
— Sou lésbica — digo com ar desinteressado, levando os hashis a boca.
As palavras saem como se fossem algo que eu dissesse normalmente. Como se eu estivesse discutindo a previsão do tempo ou algo do tipo.
Seungmin fica segurando seus hashis no ar, com seu olhar alternando-se entre minha mãe e meu pai. Estes por sua vez, permanecem em um silêncio incômodo.
Acho que a reação deles é a forma exata de reagir ao que eu acabei de dizer.
Por alguns instantes, fico desejando ser invisível.
— Estou brincando — digo, rindo, muito atenta ao silêncio esquisito que toma conta da sala de jantar.
Torno a levar os hashis a boca, observando os rostos de todos relaxarem quando o susto passa.
— Está brincando? — Minha mãe diz com dificuldade.
— Pois é — murmuro, impedindo o tremor em minha voz antes que o percebam. — Não é brincadeira.
Meu pai inclina a cabeça para trás, surpreendentemente calmo.
— Seungmin nos deixe as sós com sua irmã.
— Mas... — diz Seungmin, querendo argumentar.
Ele quer assistir de camarote a meus pais me atacando verbalmente por causa das minhas más decisões. Normalmente, é ele que se encrenca por beber e ir para festas com os amigos da faculdade, então deve ter sido bom não ser o alvo desses olhares severos pelo menos uma vez. Eu sou a filha que sempre se comporta bem e que volta para casa com conquistas acadêmicas todos os semestres.
Meu pai foca seu olhar de falsa tranquilidade em Seungmin, que se cala na mesma hora. Ele se levanta da sua cadeira e sai da sala.
A conversa na mesa de jantar perde seu rumo rapidamente. Eu sabia que devia ter contado para minha mãe primeiro. Ela é médica e lida com pessoas e seus problemas, então talvez entenda. Mas, em vez disso, tentei abordar o assunto de forma casual e decidi dar a grande notícia na frente do meu pai.
Ele não é médico. Ele é Promotor de Justiça.
Ele passa mais de 40 horas por semana lidando com casos criminais das mais variadas vertentes. Então, na hora do jantar, ele já está mais do que irritado em ter que lidar com os problemas dos outros. Não precisa de mais um.
— Lésbica, Minjeong? — Diz meu pai baixinho, com seu rosto ficando mais vermelho a cada segundo.
Meu pai é um homem atlético, de pouquíssimas palavras. Em todos esses anos, ele nunca teve motivo para levantar a voz com a gente. Somos, em geral, filhos tranquilos. Mesmo com a bebedeira e as festas de Seungmin, meu pai o repreendia calmamente. Até minutos atrás, meu pai não havia enfrentado nenhum grande problema para criar os filhos.
Permaneço em silêncio. O que piora tudo.
— Lésbica?! — Ele berra, batendo os punhos cerrados na mesa e derrubando o saleiro.
Enfio as unhas nas palmas das mãos e mordo a parte de dentro do lábio. Os olhos do meu pai estão sérios e decepcionados, e sua boca parece querer tanto se encurvar para baixo que também fico triste.
— Mingyu — chama minha mãe, fazendo uma careta incomodada por ele ter erguido a voz comigo. — Quer que os vizinhos escutem.
— Duvido que isso importe, porque logo eles vão saber!
Ele está berrando, o que me deixa apavorada.
— Gritar não vai ajudar — explica minha mãe.
— Nem falar calmamente, Taeyeon — retruca meu pai.
— Não estou gostando do seu tom de voz, Mingyu.
— E eu não estou gostando de saber que a nossa filha é lésbica! Tem noção do quanto isso vai afetar nossas vidas!
Fico com o corpo inteiro tenso. Se há algo mais impactante do que eu mesma dizer a palavra lésbica, é escutá-la sair da boca do meu pai. Sinto um aperto absurdo no peito e as paredes parecem se aproximar a minha volta. Nunca cometi nenhum erro que deixasse meus pais tão arrasados.
Eles estão brigando. Eles nunca brigam.
Minhas mãos descansam sobre o colo, e eu quero tentar explicar tudo para eles. Quero que entendam que essa não é uma escolha consciente, mas uma parte de quem sou. Quero que entendem que independente da minha orientação sexual eu continuo sendo a mesma pessoa. Que isso não influencia em nada no meu caráter.
Minha mãe passa a mão por seus cabelos claros. Eu sou mais parecida com ela, do que com meu pai. Minha mãe tem a pele branca como porcelana e olhos cor de castanhas. E esses mesmos olhos estão cheios de confusão.
— Talvez eu deva conversar com ela sozinha primeiro — minha mãe diz.
Meu pai resmunga e se afasta da mesa. Já não exibe mais o mesmo olhar de confusão e decepção, parece simplesmente enojado comigo.
— Como quiser.
Quando ele sai da sala, a conversa com minha mãe é bem objetiva.
— Você é mesmo lésbica?
— Sou — sussurro cautelosamente. — Se me permitir, eu posso explicar...
— Eu não me importo — Ela respira fundo e cruza os braços. — Eu realmente não ligo. E se você não se sentir à vontade nesta casa, vou providenciar outro lugar para ficarmos.
Um silêncio recai sobre o cômodo. Inclino a cabeça para ela e fico imóvel. Seus olhos estão cheios de emoção e honestidade.
— Você se mudaria? Por mim?
Ela passa os dedos nos cabelos e suspira.
— É claro que sim, Minjeong. Você é minha filha. E não me importa quem você ame. Desde que essa pessoa te faça feliz. Além disso, você já passou por muita coisa esse ano e…
Minha mãe estende a mão, puxando-me para cima e me dando um abraço apertado. Vários minutos se passam enquanto nós simplesmente ficamos paradas, sem dizer uma única palavra.
Ela me colocou em primeiro lugar.
Nunca pensei que ela me colocaria em primeiro lugar.
— Amanhã vou buscar você na faculdade, e vamos almoçar juntas. Agora, vá para o seu quarto. Preciso conversar com seu pai.
Arrasto meus pés até a escada e fico parada sobre as tábuas de madeira antes de me virar para ela de novo.
— Pode pedir para ele não me odiar tanto?
Sua boca relaxa, e ela me dá um sorriso.
— Vou garantir que o ódio fique no nível ideal.
\[...]
Na manhã seguinte, Seungmin se recusa a me levar de carro até a faculdade.
Ele diz que é porque precisava chegar uma hora mais cedo para trabalhar em seu projeto acadêmico, antes das aulas, mas isso nunca o impediu em outros tempos. Eu simplesmente ia para a sala de Prática Instrumental e me entretinha por uma hora antes de as aulas começarem.
Mesmo assim, ele faz questão de que eu não vá com ele. Eu quero reclamar com meus pais, mas depois da discussão da noite passada, parecia o pior momento possível para isso, então resolvo pegar o ônibus.
O ponto de ônibus fica relativamente perto do bairro onde moro. Quando coloco a mochila nas costas e saio, vejo que Ningning já está na esquina. No momento em que paro ao seu lado, ela percebe tudo que eu ainda não verbalizei: percepção extrassensorial de melhor amiga.
— Contou para eles? — Ela pergunta.
Assinto com a cabeça.
— Seungmin obrigou você a pegar o ônibus?
Assinto de novo.
— Você está bem?
— Não muito — Digo, com meus olhos analisando o meio-fio. — Mas se a gente puder não tocar nesse assunto o dia inteiro, será ótimo.
— Tudo bem. Vou soterrar seu problema com os meus problemas e assim você vai poder esquecer completamente que ele existe.
Antes que ela possa dizer mais alguma coisa, um par de All Star surge do meu lado. Ergo a cabeça para a pessoa parada perto de mim. Eu não me lembro de ter visto essa garota antes, mas ela parece ter a minha idade. Seu cabelo castanho está solto, e ela veste um moletom branco e calça jeans desbotada. Segura um estojo de violino na mão direita.
Meus olhos encontram os seus de um castanho que parece brilhar sem fazer qualquer esforço. Perco a concentração.
A garota abre um sorrisinho para combinar com os olhos.
Retribuo o sorriso. Ao menos acho que retribuo. Não sei dizer. O sorriso dela fica mais largo e sinto um frio na barriga.
Ela é linda.
Mas tão linda que é quase ofensivo. Ela parece calma como a brisa de primavera. Carinhosa, suave e romântica. Eu não devia estar olhando para ela.
Desvio o olhar, agarrando as alças da mochila e as puxo mais para perto, meus cotovelos próximos a meu corpo.
— Oi — ela diz.
Eu não sei se ela está falando com Ningning ou comigo, então fico em silêncio. Pelo canto do olho, vejo que a garota ainda sorri. Quero que ela pare com esse lance. Quer dizer, não quero.
— O ônibus que vai para KArts passa aqui? — Pergunta.
Assinto e depois volto minha atenção para um ponto aleatório. Ficamos ali em silêncio até nosso ônibus chegar. Ningning é a primeira a entrar. Eu me afasto para que a outra garota entre no ônibus antes de mim.
Ela gesticula na direção da porta.
— Pode entrar primeiro.
— Obrigada — respondo, subindo no ônibus.
Escuto uma risadinha enquanto ela entra atrás de mim.
— Então ela sabe falar.
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