4 - Verdades expostas

Dez anos atrás


A tradicional e anual festa do vinho da família Bodini celebrava a viticultura e ocorria após a colheita das uvas, regada a muita bebida, comidas regionais, música e dança.

Em seus vinte anos de idade, André já tinha participado várias vezes daquela festa, que a cada ano parecia atrair mais turistas e pessoas da região.

Circulando pelo espaço aberto, ele observava a decoração, o corpo querendo balançar ao ritmo da música alta. Seus pais e seus três irmãos já tinham se misturado aos demais, e era impossível localizá-los no meio de tanta gente.

Com uma taça de vinho nas mãos, André parou um pouco mais distante da grande fogueira erguida em uma área segura do terreno. Algumas garotas dançavam ali, dando as mãos uma para a outra e rindo alto.

Estava prestes a ir procurar Elisa e avisá-la sobre as três cartas de tarot que haviam sido esquecidas em seu quarto — com imagens estranhas de uma harpa, um coração e uma caveira — quando girou nos calcanhares e a viu.

A sensação foi a de perder o fôlego de repente, de entregar todo o controle do corpo para algo mais forte e superior.

Ela estava usando um vestido azul marinho que deixava seus ombros à mostra, os cabelos castanhos e ondulados caindo e balançando sobre suas costas. Era alta, elegante e se movia com uma leveza única. A garota dançava com as amigas, a pele alva brilhando à luz do fogo, os olhos parecendo desafiar os que a observavam.

André tinha certeza de que nunca a vira ali antes.

E simplesmente não conseguiu deixar de olhá-la, como se estivesse hipnotizado pelos movimentos, enlaçado pela melodia da música e pelo aroma do vinho.

Aquela intensidade, aquela palpitação, aquela avassaladora sensação de que as estrelas tinham descido do céu e se fundido às chamas da fogueira... André nunca havia sentido nada parecido.

Talvez fosse o clima pulsante e festivo da noite.

Ou o vinho.

Provavelmente as duas coisas.

E talvez algo a mais também.

Quando ela girou mais uma vez, os cabelos balançando ao seu redor, seu olhar colidiu e se sustentou ao dela.

Eram olhos da cor do mel, brilhantes à luz do fogo.

O ar escapou lentamente de seus lábios até não restar mais nada em si.

E, deixando a taça de vinho de lado, sem pensar, sem ponderar, André caminhou na direção dela.


***************


Atualmente


André trocou o peso de uma perna para o outra; não tinha certeza se estava respirando da forma correta, ou se sequer estava respirando.

Procurou pelos olhos de Sueli, pelos pontinhos mais claros nas íris tingidas de mel. O vento perfumado emaranhava os fios acastanhados dos seus cabelos. Ela parecia mais magra do que a lembrança em suas memórias, com as maçãs do rosto fundas, um pouco mais pálida também, mas igualmente bela, como um vinho agraciado pelo tempo.

Ele a vira pela primeira vez há dez anos, ali, em suas terras, na festa do vinho, com o coração afogueado.

Ele a vira pela última vez há mais de dois anos, ali, em suas terras, antes de partir para a Itália, com o coração quebrado.

Não esperava revê-la tão cedo, sequer achava que iria revê-la, muito menos no dia do seu retorno ao Brasil.

E, acima de tudo, não esperava ouvir aquilo.

— O que você disse? — André pestanejou, a voz ameaçando falhar. — Porque eu só posso ter entendido errado.

Observou a garganta de Sueli tremer, a forma semelhante com que ela também passou o peso de uma perna para a outra.

— Nós temos uma filha. Ela tem dois anos.

Meu Deus.

Ele tinha mesmo escutado certo.

Por um momento, André esperou que Thiago saísse de trás das plantações, rindo sem parar, confessando que aquilo era uma pegadinha de boas-vindas.

Fitou Sueli.

O rosto delicado dela estava tão sério, tão constrangido, tão ansioso, que qualquer ideia de que aquilo pudesse ser uma brincadeira se evaporou.

Atônito, André deu um passo para trás.

— Como... Como isso aconteceu?

Sueli piscou.

— Preciso mesmo te explicar?

A cabeça dele girou, mal se dando conta do que saía da sua boca.

Não conseguia pensar. Não conseguia respirar.

E encarar Sueli fazia com que seu coração batesse ainda mais veloz.

— Não... Não é possível...

Sueli baixou os olhos, os dedos enfiados no bolso da calça, os lábios entreabertos. Parecia não conseguir respirar, assim como ele. Quando ela ergueu o rosto, não havia sombras de dúvidas em seu semblante.

— Você pode fazer um exame de DNA, se quiser, mas minha filha é sua. Nunca tive outra pessoa além de você.

A realidade o atingiu com um soco no estômago.

Algo latejou no fundo de sua cabeça.

— Você já sabia quando...? — perguntou, os dentes cerrados.

— Não. — Aflita, Sueli moveu a cabeça de um lado para o outro. — Só soube depois que você tinha partido para Itália.

— E simplesmente decidiu não me contar? — O volume de sua voz aumentou. — Você não tinha esse direito.

— Foi minha escolha, André. Sei que errei, mas...

O sangue corria veloz nas veias dele, ardente, raivoso.

— Por que não me contou quando descobriu?! Você podia ter me ligado, ter avisado alguém da minha família...!

— É complicado...

— E agora não é mais complicado?! É mais fácil jogar isso em cima de mim, dois anos depois, como se não fosse nada?! Como se me falar não tivesse importância alguma?!

Os olhos dela se estreitaram, selvagens, protetores.

— Minha filha é a minha maior preciosidade, minha luz, meu ar. Você pode me acusar do que quiser, mas jamais de não me importar com tudo o que diz respeito a ela. E se estou de procurando...

— Afinal, por que veio me procurar justo agora?! — André vociferou, ainda mais alto, a voz ecoando por entre as vinhas. — O que mudou?!

Dio mio! O que está acontecendo aqui?!

A voz de sua mãe pairou inquisitiva atrás de André.

— Mãe... — André começou, o tom furioso marcado na voz.

Dora ergueu a mão, calando-o.

— Não erga essa voz comigo. Um de vocês dois vai me contar o motivo de toda essa gritaria?

Os olhos de Dora passaram de André para Sueli, e então pararam no filho outra vez. O peito de André subia e descia embaixo da camisa, o ar chiando em suas narinas. Sueli mantinha as mãos entrelaçadas, os ombros encolhidos em uma postura acuada, mas os olhos cintilavam, pronta para atacar qualquer acusação a respeito do seu papel de mãe.

Nenhum dos dois abriu a boca.

— Sueli, sinto muito, não sei o que acabou de acontecer aqui, mas acho melhor você ir — Dora sugeriu, com educação e gentileza.

— Já estou indo. — Ela deu um passo para trás, a mão batendo na maçaneta da porta do carro. — André, eu... Eu ainda moro na vinícola dos meus pais. Estarei por lá, caso queira conversar comigo.

Ele não soube se respondeu alguma coisa para ela.

Mal assimilou o que se decorreu nos instantes seguintes, mal viu Sueli entrar no sedan, dar partida e manobrar o carro, desaparecendo pela estrada que levava para a saída do vinhedo.

Uma filha.

Seu coração batia tão alto, tão forte, tão desesperado, que ele achou que sairia para fora do peito a qualquer momento.

Ele tinha uma filha.

— André, o que aconteceu? — sua mãe perguntou, os olhos perscrutadores, as mãos apoiadas na cintura, a testa franzida em preocupação. — Por que a menina dos Vieira estava aqui? Por que estava gritando com ela? Achei que vocês não tivessem mais nada um com o outro.

Ele.Tinha.Uma.Filha.

— Conversamos depois, mãe. Eu... Eu não consigo fazer nada agora. Falar, pensar. Simplesmente não consigo fazer nada.

E ele se virou, rumando para dentro de casa, com o vento rugindo em seus ouvidos.


************


Sueli só permitiu que as lágrimas irrompessem livremente quando estava na estrada de terra, cada vez mais longe da vinícola dos Bodini.

Nada havia saído como planejara. Sequer imaginara que André estaria ali, que teria voltado, que iria ao seu encontro. O plano era falar primeiro com a família dele, explicar tudo, pedir orientações para abordá-lo.

E quando mergulhara no azul-esverdeado dos olhos tão familiares...

Todo o planejamento, todos os passos calculados, toda a ponderação; tudo tinha se esvaído, restando apenas a verdade em seus lábios.

"Nós temos uma filha".

André tinha todo o direito de ficar furioso, de gritar.

Jamais tiraria aquela razão dele.

Porque ela também tinha seus próprios motivos para as escolhas que fizera dois anos atrás.

Sua irmã e sua prima sempre quiseram saber porque ela não tinha contado sobre a gravidez para André. Sueli as contornara, dizendo que ele estava longe, cuidando da própria vida, do trabalho, que tinham terminado, que queria criar a filha sozinha; eram apenas meias-verdades.

Porque o preço do real segredo que carregava era caro.

E o preço da verdade contada seria mais alto ainda.

Assim, ela tinha se calado no passado.

Só que agora tudo tinha mudado.

Ela tinha mudado.

Depois de encarar a face da morte de perto e ter saído vitoriosa, poucas coisas seriam capazes de assustá-la.

Prometera para si mesma que não teria mais medo.

André tinha o direito de saber que era pai.

Mesmo assim...

Os dedos de Sueli comprimiram o volante; suas mãos suavam frio.

Ela sabia.

No fundo do seu coração, ela sabia.

Era só uma questão de tempo até que as consequências por ter revelado o que escondia há dois anos começassem a cair sobre ela e sobre todos aqueles que amava.

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