TRADICIONALÍSSIMO

Já eram quase 20:30 da noite quando um cansado Isaac estacionou o seu Crossfox na garagem de sua casa. Ele bateu na porta da sala, que era de uma madeira rústica envernizada, com blocos de vidro e pequenos arabescos de ferro. Ele notou que o carro de Bernardo estava na garagem, o que quer dizer que ele já havia buscado Ana na faculdade e estava de volta. Ana ainda não tinha autorização para dirigir, ainda que já contasse com 23 anos. Os pais achavam que, por ser mulher, ela ainda não estava pronta. Isaac se sentia mais seguro de saber que a irmã só andava acompanhada, mas confessava achar aquilo um exagero.

- Boa noite, irmãozinho.

- Boa noite. - Isaac deu-lhe um beijo na testa e entrou pela sala, exausto demais para dizer qualquer coisa além.

Ana Margareth Latov fechou a porta atrás de si, livrando-se novamente de seus sapatos para sentir o carpete. Os calos nos pés estavam cada vez mais frequentes de tanto ela correr de um lado para o outro. Dessa vez, teve de esperar 70 minutos para Bernardo ir buscá-la, então já poderia ter chegado em casa há muito tempo e descansado. Mas não culpava o irmão, já que ele estava trabalhando e ainda tinha que sair mais cedo para pegá-la, deixando Isaac sozinho na joalheria. Aquilo estava terrível para todo mundo e, se os pais a deixassem dirigir, facilitaria a vida da família inteira. Mas ela não fazia objeção. Sabia que bater de frente com os pais - especialmente com a mãe - era inútil.

Ou também porque Ana era submissa demais.

Desde que entrou na faculdade de medicina, Ana nunca esteve tão sobrecarregada. Estava no décimo período e havia iniciado a residência clínica há um tempo. Nesse semestre, as coisas estavam muito tensas por lá, e ficavam ainda piores pela pressão que sua mãe lhe fazia. Dona Esmeralda dizia que Ana não teria como cuidar de seu futuro o marido e dos filhos com esse tipo de emprego, fazendo confusão por um marido e filhos que ainda nem existiam. Não que a mãe não se orgulhasse de Ana. Ela tinha uma filha prodígio, muito estudiosa, linda e que nunca perdeu a meiguice nem nos anos de adolescência.

A mãe, que teve o primeiro filho aos 19 anos, criou sua Ana para ser uma mulher de família tradicional, ou seja, aquela que está destinada ao cuidado. Cuidado sempre para com o outro. É a mulher quem cuida da casa, dos idosos, dos filhos e das feridas alheias. É a mulher quem cuida do marido, mais que de si mesma. Se Dona Esmeralda sonhasse com o que a filha achava disso...

Mas a mais velha havia sido feliz em seu alvo: criou Ana para o cuidado. Sendo que o que dava prazer a Ana era cuidar de seus pacientes. Ela descobriu seu propósito no mundo quando ouviu o primeiro obrigado dentro de um consultório. Ela ia casar e ter filhos um dia, mas não como ocorreu com sua mãe: Ana pensava no propósito daquilo que fazia, já a mãe fazia porque... Porque fazia!

O irônico disso tudo é que a mãe cativara a Isaac melhor do que a ela. Aqueles um dia já foram os grandes sonhos de Isaac, e claramente essa vida que ele levava agora era tudo o que ele não queria. Ana tinha a impressão que o mais doloroso para o seu irmão era ter que olhar todos os dias para a família que seus pais construíram, para aquele casamento duradouro e enraizado. Era como se alguém esfregasse na cara dele que ele falhou miseravelmente em seu grande propósito. Mas ele tinha que conviver com aquilo, já que se não morasse ali, não daria conta.

Por outro ângulo eram muito parecidos, Ana e Isaac. Já houve até quem pensasse que eram gêmeos, mesmo com nove anos de diferença. A pele branca, os olhos verdes, os cabelos loiros e cacheados e até a magreza. Sendo que Ana era pequena, com o rosto de porcelana e os lábios rosados. Os dentes pequenos e levemente tortos estavam sempre escancarados. Era sorridente a moça. Sempre foi melhor em sorrir do que em falar. No geral, Ana formava a imagem de uma pequena boneca. Ia completar 40 anos presa no corpo de uma menina de 13. Ela era toda diminuta, e aquilo passava para seus interlocutores uma ideia de fragilidade. Aquilo a incomodava, porque sua aparência a trazia dificuldades para se impor.

- Joaquim Latov! - Isaac gritou e Ana deu risada. Um homem era oficialmente pai a partir do momento em que chamava o filho pelo nome completo por estar irritado. Quer dizer, quase completo. Fazia um tempo que o menino deixou de ser Joaquim Seabra Latov para todos naquela casa. E o menino corria, fugindo do banho e do pai, que vinha atrás com uma toalha.

- Titia, socorro! - Joaquim pulou no pequeno colo da tia, e ela viu que ele não só estava pelado como também pingando suor.

Ana levou às mãos às bochechas com uma falsa cara de espanto. - Quinzinho! Você não tem vergonha, não?

E o menino riu. Ele de fato não tinha vergonha.

- Joaquim! - Dessa vez foi o pai. - Isso é jeito de você andar pela sala?

- Mas ela coloca a falda do Joaquim, Papai! - Joaquim ergueu as palmas das mãos, como se fazendo de inocente.

- Ele é só um neném, meu amor? - Completou Ana.

- Para o banho, neném! - Isaac pegou o filho de volta, dessa vez segurando mais firme, e o levou para o banho.

Ana decidiu levantar e ajudar a mãe a pôr a mesa. A função era delas, já que os homens estavam cansados. A moça foi posicionando os talheres enquanto a mãe esquentava a bolonhesa. O cabelo castanho e liso de Dona Esmeralda estava solto, com algumas mechas presas pelos frisos, para que não caíssem nos olhos. Já faziam 10 anos que as rugas apareciam no canto de seus olhos fundos, olhos castanhos como os de Bernardo, só que mais atentos, para que tudo estivesse na mais perfeita ordem.

A pele da mulher era branca, como todos ali. Até na altura ela era parecida com Bernardo, mas era por aí que as igualdades acabavam. Dona Esmeralda era séria como Isaac, só que ainda mais rígida. Ter 51 anos certamente afeta a personalidade das pessoas. Ana só tinha dela a sobrancelha rala e a voz rouca, sem o sotaque sulista carregado que a mãe ainda preservava. Dona Esmeralda estava sempre de roupas escuras, seja dormindo ou acordada, dentro ou fora de casa. Ana não compreendia tal obscurantismo, ainda que soubesse que a mãe não gostava de chamar atenção para si. Tudo nela era simplista, da roupa a decoração da casa, ainda que tudo fosse caro e elegante.

Dona Esmeralda experimentou o caldo para ver o ponto do sal. - Está muito bom, modéstia parte.

A mulher cozinhava muito bem. Ela era sempre a cozinheira mais esperada das festas de família. Entretanto, Ana percebeu que a mãe estava ficando cansada até para isso, e tudo tinha piorado de um ano para cá. Ela vivia preocupada com Isaac e, especialmente, com Joaquim. Desde que Isaac foi morar com eles, há alguns meses, a carga ficou ainda mais pesada, pois Joaquim era pequeno e dependente. Tudo começou porque Isaac precisou colocar o menino numa escola integral. Ele odiava essa ideia, mas foi o jeito, pois precisava trabalhar. Sendo que Dona Esmeralda não suportou ver aquilo, e disse que ninguém sabia cuidar do neto melhor que ela. Agora, Joaquim só estudava um turno e ficava com os avós até o pai voltar. A avó só não parou para calcular que já não era mais jovem e seu marido menos ainda, e nenhum dos dois tinha fôlego para passar o dia correndo atrás de criança. Cuidar de três filhos no passado foi menos exaustivo do que aquilo.

E como se não bastasse, ela não aceitava ajuda, a não ser pela diarista que ia limpar os lugares mais difíceis uma vez por semana. No resto do tempo, a mãe cozinhava para seis pessoas, lavava as roupas de Joaquim e mandava o resto para a lavanderia, limpava a cozinha, regava as plantas, varria a sala, fazia a cama do casal e de Bernardo - o único dos irmãos que não arrumava a cama antes de sair. Ana finalizava quando chagava da faculdade e Isaac cuidava de Joaquim nos poucos momentos que estava em casa.

Dona Esmeralda ensinou a filha a fazer todas as tarefas domésticas, inclusive algumas que ela nunca necessitou, mas nunca admitiu que os filhos fizessem nada, o que foi um grande erro. Isaac virou pai solteiro da noite para o dia e teve que aprender a cuidar de Joaquim sozinho. Ele se mostrou zeloso e organizado, e acabou se saindo melhor que o esperado. Joaquim só tomava a mamadeira feita pelo pai e só dormia com ele também. Já Bernardo, surpreendentemente, adotou para si a missão de lavar três dos cinco banheiros da casa, e a mãe não estava em condições de negar. Por fim, o pai, Manoel, fazia as compras desde que se aposentou - e, claro, era ele quem corria atrás de Joaquim nos últimos meses, mas não aguentava brincar por muito tempo.

Ana chamou todos para a mesa, e Bernardo foi o primeiro a chegar, dando um beijo na cabeça da mãe. Joaquim veio correndo, com seu pijama de ursinho e perfume de bebê, o cabelo lavado e penteado para trás. Ana ajudou o menino a sentar no cadeirão e serviu carne com arroz.

- Quer cenourinha, Quinzinho?

- Hoje não. - E fez um muxoxo. - Só um tomatinho.

Isaac veio logo depois, de banho tomado e com um moletom de algodão. O menino ergueu o copo de biquinho para o pai. - Suco?! - E o pai encheu o copo. A mãe serviu o filho mais velho, que deu um aceno de cabeça e tomou seu lugar à mesa.

- Muito obigado, Vovó! - Falou Joaquim, batendo o garfo.

- É? Pelo quê?

- Porque você fez o meu papá. - Ele disse, risonho.

- De nada, anjinho! - A avó se orgulhou, enquanto servia o prato do marido.

Seu Manoel entrou na sala de jantar dando boa noite a quem ele ainda não havia visto e sentando na cabeceira, entre a esposa e o primogênito. A partir daí o jantar seguiu em silêncio, como sempre, excerto por Isaac lembrando ao filho que este devia ter educação na hora de comer. A mãe era quem gastava mais tempo rezando e, ao lado dela, Ana comia feito um passarinho. Já Bernardo era como um galho que nasceu torto na árvore da família, como se pudesse ser derrubado na primeira chuva. Ele era o que sentava mais distante dos outros, deslocado. O pai era a raiz; a mãe, o tronco; Isaac e Ana eram como folhas, sendo que ela era a folha mais alta de todas, que conseguia captar toda a luz do sol; e Joaquim era uma pequena florzinha desabrochando.

O patriarca, aquele homem baixinho de 60 anos e 102 quilos, comia lentamente, tomando o cuidado de não sujar sua barba e bigode de Papai Noel - cinza e cacheado, como seus cabelos. Ele sempre pedia um palito, para passar nos dois dentes grandes que tinha na frente. Com a pele rosada, o nariz vermelho e os olhos verdes, o velhinho parecia de fato ter vindo do polo norte, e era o grande responsável por todos terem nascido brancos ali.

O homem olhava para a mulher com ternura, depois para o neto e em seguida para os filhos. Tinha vontade de falar, de rir, como era antigamente, mas ninguém haveria de acompanhá-lo. É difícil saber como foi que as coisas chegaram a esse ponto. Ele achava que ter o neto morando ali ia trazer alegria para a casa, mas o menino já não era o mesmo, e aquilo era culpa dos adultos. Não se trata só do rumo que a vida de Isaac tomou, mas do torpor em que todos estavam afogados ali. Isaac já imaginou uma família diferente, e Seu Manoel mais ainda. Por ser o chefe da família ele se sentia culpado e responsável, mas não sabia o que fazer.

Ele, como todos, sentia que se apegar àquelas pessoas que eles foram no passado estava cada vez mais difícil. Mas ele, como todos, não entendia que era melhor deixar essas versões passadas irem embora para que parasse de doer tanto. Ele, como todos, precisava reinventar seu conceito de família.

--------------------

O próximo capítulo promete!

Nos vemos no fim de semana e obrigada pelas visualizações e pelos votos!

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top