EU MENINO, MEU MENINO

Isaac repartia o cabelo de seu filho de maneira metódica. Primeiro, ele passou o pente fino no meio, depois puxou para a direita e em seguida para a esquerda. Cada fio loiro e liso como uma pluma foi posto em seu devido lugar, tendo sido previamente desembaraçado. Por fim, o pai penteou a franjinha, e aí estava o cabelo Chanel do pequeno, que harmonizava perfeitamente com seu rostinho redondo.

- Já acabou, Papai? – perguntou Joaquim, seus olhinhos fechados, muito mais por graça que por necessidade. O menino fechava os olhos para ser acarinhado. Joaquim aproveitava desses momentos, pois eles não vinham com a frequência que gostaria.

- Já, sim. – Isaac passou sua mão branca no rosto do filho igualmente branco. A diferença era que Joaquim possuía a ruborização da inocência infantil, a qual ganhava um retoque de seu belo sorriso de dentes miúdos. Já o branco da pele de Isaac estava ficando cinza, ao menos era essa a impressão que ele tinha – não que tivesse muito tempo para olhar para si mesmo.

Joaquim abriu as pestanas e mostrou ao seu pai seu par de olhos verdes, que também eram iguais aos de Isaac, para a felicidade do mais velho. O filho pediu colo, o pai ergueu-o nos braços e o apoiou no abdômen. Com a mão livre, Isaac pegou os tênis do filho e os dois foram juntos até a cozinha, tomando cuidado para não fazer barulho, pois a maioria ainda dormia àquela hora.

O homem colocou o menino sentado na bancada de granito. Joaquim estava um pouco gordinho para alguém de dois anos e meio, o que era um alívio para o pai, já que o filho perdeu muito peso desde o que aconteceu e finalmente estava se recuperando. Isaac tinha uma preocupação de que ele ainda estivesse muito baixinho, porém Doutora Rúbia disse que ele ia crescer, no tempo dele.

O pequeno pegou a mamadeira que o pai lhe deu, com mingau morno e levemente adocicado. Ninguém nunca soube fazer uma mamadeira melhor do que o Papai, e Joaquim tomava todos os dias, duas vezes. Enquanto o filho mamava, Isaac montava a lancheira da escola: sanduíche de patê de frango, uva sem caroço e um pouco da vitamina de banana que fizera para si mesmo tomar depois da corrida, a qual ele fazia todos os dias antes do filho acordar. Isaac fazia todo o processo em silêncio, sabendo que deveria conversar com Joaquim para estimular a fala dele – ou mesmo para que o filho não o visse como um mero magricela alto que zelava pelo seu bem estar físico. Mas não o fazia. Ultimamente, não tinha disposição para conversar. Certo que ele sempre foi sério, muito mais que seus irmãos, mas as circunstâncias agravaram isso.

Após fechar a lancheira, Isaac lavou as mãos na pia de duas cubas, aproveitando para passar um pouco de água nos seus cachos dourados. Ele parecia um querubim das pinturas eurocentristas, mesmo com a seriedade e a aura acinzentada. O homem passou as mãos pelo rosto afilado, umedecendo o nariz grande, o bigode e a barba rala, cujos pelos nunca se preencheram totalmente ainda que ele tivesse 32 anos nas costas. As feições de Isaac pareciam incoerentes com sua voz de barítono, a exceção dos poucos músculos que vinha adquirindo com seus recentes exercícios matinais – que eram mais para distrair que por saúde.

Isaac calçou os sapatos do filho, que não parava de balançar os pés, mas o pai foi paciente. Joaquim fez um último barulho de sucção e tirou a mamadeira da boca. – Papai, terminei meu gagau gostosinho! - e deu sua risada de bebê, fazendo com que Isaac arqueasse levemente o canto dos lábios, quase sem mostrar os dentes.

- Hora da escola!

Isaac colocou a lancheira nas costas do menino e o ajudou a descer da bancada. O mais velho pôs a carteira, o celular e as chaves dentro dos bolsos; segurou a bolsa de rodinhas e o terno com uma mão e, com a outra, segurou a mão do filho. Joaquim foi saltitando, puxando o pai com o máximo de força que tinha. Isaac não entendia porque tanta animação para ir à escola. Ele não lembrava de já ter sido assim um dia. Odiava a escola, tudo o que queria era começar a trabalhar o quanto antes. Entretanto, Isaac não sabia que Joaquim só estava ansioso para sair daquela casa escura, tão triste que nem parecia ter um menininho brincalhão e esperto morando ali. Joaquim queria estar perto de outras crianças, de alguém que brincasse com ele.

O pai colocou as bagagens no carro e ajudou o filho a se acomodar na cadeirinha. O homem deu partida e desceu a rampa de ré, com dificuldade, já que seu carro estava apertado entre os outros dois: o do irmão e o do pai. O carro saiu silencioso, como sempre, excerto pela ária que tocava baixinho ao fundo. Joaquim ia atrás olhando para tudo, com o polegar na boca. Isaac observava aquele sinal de carência infantil pelo retrovisor. Ele sabia que crianças chupavam o dedo porque se sentiam sozinhas. Quando não era o dedo era a chupeta. E haviam também as fraldas para dormir. Não era o fato de Joaquim usar fraldas que assustava Isaac, mas sim que, ao invés de evoluir com relação a isso, ele parecia estar regredindo. Acontece que Joaquim sofreu um desmame muito repentino, o que fez com que o pai apelasse para qualquer coisa que o consolasse. Ele tentou o desfralde e até conseguiu durante o dia – com a ajuda da escola -, contudo Joaquim inevitavelmente acordava de madrugada chorando e fazia xixi na cama, daí o pai comprava fraldas noturnas.

Isaac deixou Joaquim na escola, sob o olhar de pena que a professora involuntariamente lhe dava. Mesmo que o acontecido já estivesse completando um ano naquele mês de março, as pessoas ainda o olhavam daquele jeito, inclusive sua família. Era o olhar de pobre Isaac. Ele ainda ficava irritado internamente, mas como poderia? Afinal, ficava com pena de si mesmo às vezes.

Joaquim acenou alegremente para o pai e saiu correndo para a sala de aula. Isaac pegou o carro e dirigiu três quadras adiante, onde ficava seu trabalho. Ele estacionou o carro em sua vaga exclusiva, na lateral da loja. A Joalheria Latov era a principal da cidade, a mais tradicional por assim dizer. Já estava nas mãos de sua família desde que foi fundada pelo seu bisavô, e Isaac se orgulhava de ser o quarto sucessor e o que mais fez a loja crescer. Eles tinham quatro filiais espalhadas pelo estado, cinco lojas se contar com a matriz. O império que um dia foi seu grande sonho, agora tornara-se sua principal fonte de escapismo.

Isaac adentrou pela porta de vidro, passando pelo tapete luxuoso que dava para a recepção. A sala principal era repleta de lustres, toda decorada em tons pastel e com móveis de mogno cru. No canto esquerdo, havia um centro com quatro cadeiras de aproximação, onde os clientes poderiam se servir de chá, café e licor. Na vitrine ficavam algumas peças exclusivas, a maioria femininas. No balcão de Isaac se encontravam os relógios e canetas de ouro e, logo atrás, ficavam as peças usadas que os Latov compravam, trocavam ou negociavam.

A ai loja tinha ainda dois banheiros de iluminação e climatização automáticas, além de serem espelhados e com as melhores louças do mercado. Por fim, havia a sala da gerência, de uso exclusivo dos irmãos Latov, com sua poltrona imponente e seu birô de madeira maciça. Era nesse mesmo espaço que Isaac negociava com os colecionadores, pois era ali que se encontravam suas peças mais caras: coroas, anéis de diamante solitário, pulseiras cravejadas e até conjuntos raros de taças e xícaras. Havia ainda, debaixo da estante principal, um pequeno alçapão que dava para o cofre, compartimento esse que nem a secretária sabia da existência.

Logo que se acomodou no balcão, a secretária informou a Isaac que o fornecedor de rubis estava tentando manter contato: um leilão seria marcado em breve e os Latov não poderiam faltar. Isaac se perguntou onde estaria Bernardo àquela altura: resolver isso era função dele! Isaac correu 12 km, alimentou e arrumou o filho, deixou-o na escola e ainda conseguiu chegar antes do irmão. A única função de Bernardo era acordar cedo e nem isso ele conseguia fazer. Isaac chegava ali às 07:30 e saía às 20:00. A quantidade de coisas que tinha que fazer sozinho era absurda, ainda mais quando se tem um filho pequeno para cuidar quando se chega em casa. Isaac deu um suspiro profundo: nunca esperou nem por um segundo que fosse que sua vida chegaria a esse ponto.

Ele foi conversar com o fornecedor, que enfatizou que ele deveria estar no leilão. Isaac era um homem honrado e responsável, como o seu pai, e seu fascínio pelo trabalho bem feito era o que garantia que ele pudesse tocar aquele lugar. Queria servir de exemplo para Joaquim de como ser um trabalhador íntegro, e iria trazê-lo para a joalheria assim que ele completasse 16 anos, como seu pai fez consigo e com Bernardo. Porém, esperava que, diferente dele, Joaquim tivesse sorte em outras áreas da vida que não só a carreira. Isaac era um homem corroído pela desesperança, assim como o zinabre corroía as joias falsas.

8:00 e Bernardo não tinha chegado. Isaac às vezes se pegava pensando se um dia poderia dar um irmão para Joaquim. Ele se sentia um homem incompleto por não realizar o seu sonho de ter muitos filhos. Mas quando pensava na dor de cabeça que Bernardo lhe dava – sempre deu, diga-se de passagem -, chegava à conclusão de que Joaquim estava bem sozinho.

De repente, a porta se abre num estalido, e um Bernardo sem fôlego entra, assustando os clientes que estavam de costas para a vitrine. Isaac olhou para o irmão de forma sarcástica, sabendo que Bernardo só não ia escutar o que merecia por causa das pessoas ali. Bernardo Latov abriu um sorriso amarelo com seus lábios grossos. Os olhos castanhos evitavam encarar o irmão três anos mais velho. Ele herdara aqueles olhos da mãe, mas não enxergava o mundo da mesma maneira que ela.

Isaac pôs uma mão no ombro do mais novo. – Depois nós conversamos!

Bernardo virou o rosto pequeno na direção do irmão, com aquele olhar doce de quem não é tão dono de si quanto deveria. Devido a todo aquele aconchego na fisionomia de Bernardo, ninguém conseguia ter raiva de verdade dele, nem mesmo Isaac. Incrivelmente, aquela barba cheia, mas não grande, dava a ele um aspecto ainda mais amigável.

- São só 08:30, Isaac!

- Depois. Nós. Conversamos! – E saiu.

Bernardo foi até a sala da gerência para concluir as planilhas pendentes da noite anterior – e aproveitar para vestir seu terno. O rapaz também era herdeiro dali, mas como Isaac tinha 32 anos e ele 29, havia uma hierarquia. Essa regra foi colocada pelo pai, que foi colocada pela tradição familiar, que no final era melhor assim porque no fundo Isaac é quem tinha habilidade. Bernardo admirava o homem que Isaac era, mas não aguentaria ser aquele homem por cinco minutos que fosse. Alguns achavam que ele tinha ciúmes, mas não, estava feliz em não ser o mais velho. Ele chegava a ter pena de Isaac, e não era só por causa do excesso de trabalho, mas pelo que aconteceu com a vida dele, e ainda vinha acontecendo. Seu irmão era um bom homem e não merecia passar por aquilo.

Os dois eram tão diferentes quanto dois irmãos são capazes de ser, a não ser pela pele branca e pelos caracóis dos cabelos – os de Bernardo eram escuros. Isaac era alto, o que lhe dava certa imponência, só que Bernardo era mais forte. Isaac era o homem que resolvia tudo, já Bernardo ainda estava preso na barra da saia da mãe e, preocupantemente, não fazia nada para mudar aquela situação. O mais novo era tímido – não tanto quanto a irmã – e meio relaxado. Ele parecia não perceber que já estava entrando na casa dos 30 e precisava tomar um rumo.

Ainda que os dois fossem herdeiros, só um se tocou que sem esforço aquilo não ia andar. O pai deles nasceu numa época em que uma joalheria podia passar 40 anos funcionando do mesmo jeito que tudo daria certo. Mas agora não é mais assim. Também não se pode mais criar filhos como se fazia há 40 anos, mas Isaac e o pai pareciam não compreender. Bernardo lembra-se de quando o irmão passou em administração aos 17 anos. Dois anos depois, Bernardo foi chamado para ajudar o pai na loja, e lembra bem da cara de decepção que este lhe oferecia. Talvez ele nunca tivesse imaginado criar um filho tão incompetente e disperso - trocá-lo-ia por Isaac sem pensar nem duas vezes. E Bernardo não se importava. Queria mesmo era que o pai desistisse dele e enxergasse que ele não servia para aquilo. Talvez simplesmente o deixasse ir para a faculdade que ele queria, como acontece nas famílias normais. Mas os Latov não eram assim. Bernardo era um filho homem e tinha que seguir os passos do pai.

E era por isso que Isaac era honrado. Não era só por seus próprios atos, mas porque era filho do seu pai. E pior, ele gostava dessa ideia, dessas tradições, da hierarquia, da hereditariedade... E não era só em relação à loja. Isaac sempre sonhou em ter um casamento como o dos seus pais. Talvez, por ter alimentado essa ideologia, o baque que ele recebeu foi tão grande. 

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