- Capítulo IV -
Quinta-feira, 26 de julho de 2017
Manhã, 05h11
Uma dor na boca do estômago de Harley lembrava-a que deixou de jantar na noite passada. Ela se ergueu, sacudindo os cabelos de seu rosto enquanto tentava adaptar seus olhos naquele ambiente ainda escuro. As cortinas de brocado permitiam a passagem de uma luz fraca, que iluminava o par de sapatos de Harley, no canto da cama.
Ela não conseguira dormir já fazia mais de um ano. O caso que tivera em Painswick a afetara de forma inigualável. Logo após aquele caso horrendo onde duas crianças terminaram em lápides de concreto, Harley se envolvera com o caso de estupro seguido de morte de uma jovem garota chamada Natalie Faz. No fim, ela prendera o estuprador, mas sua lista de inimigos aumentou consideravelmente. Talvez fosse verdade o que aquele garoto loiro lhe dissera na igreja. A morte parecia ter um apreço com as formas do corpo de Harley, deitando-se todas as noites com ela, observando-a adormecer apenas para ser atormentada por pesadelos.
Harley arriou em seus travesseiros encharcados de um suor frio, permitindo que sua mente mergulhasse nas memórias da noite passada. O esquilo decapitado, com seu corpo estrebuchando na mão do garoto enquanto Tom caía de joelhos. Tudo aquilo lhe era muito errado, o que colocava o garoto loiro em primeiro lugar em sua lista de suspeitos ainda precária.
Rolando pela cama, a mulher pensou em apanhar o celular, desculpar-se com Eldric. Não. Não havia necessidade. Ela apenas se virou novamente, fitando o teto branco imaculado enquanto esperava pela hora do café. Precisava alimentar seu corpo, embora sua alma já estivesse morta.
Manhã, 07h01
Ela desceu rapidamente os degraus, deparando-se com um refeitório ainda vazio, com todas as comidas disponíveis a si como se numa recepção angelical. Com dois pratos nas mãos, a mulher apanhou desde pães até massas folhadas, diversificando nas bebidas de sucos naturais até iogurtes sem lactose. Devorando toda aquela comida, Harley sentiu seu estômago acalmando-se, mas sabia que muito provavelmente ele voltaria a incomodá-la em algumas horas.
Caminhando pela calçada estreita e irregular, Harley levantou a gola de seu sobretudo preto até a altura de seu maxilar, protegendo-se dos pingos de chuva tão fina quanto agulhas, que se tornavam quase invisíveis aos olhos ao cruzarem a luz pálida do sol. Olhando rapidamente para os lados, Harley atravessou a rua, indo em uma linha reta até alcançar os portões do condomínio. Com o normal ranger das grades, a recepção no local fora fria, bem diferente do banquete que acabara de ter.
Uma mulher de cabelos curtos a espiava pela janela, escondendo-se atrás de sua cortina transparente. Harley fitou-a durante todo o percurso, pensando se deveria avisá-la que suas feições eram tão visíveis quanto sua casa mal construída, com canos escapando das rochas desgastadas.
Apanhando a chave, ela abriu a porta da frente, deparando-se com a senhora Margeory, seus olhos arredondados ampliados pelas lentes bifocais de seus óculos de leitura. A velha sorriu para ela, mas não conseguiu nada mais do que um bom-dia seco e áspero. A idosa usava uma camisola rosa com algumas flores amarelas e, em suas mãos frágeis e enrugadas, carregava um pote com água.
- Aonde vai com isto? – Indagou Harley, lembrando-se da chuva do lado de fora.
- A senhora Abigail ainda não retornou... – Disse a idosa, referindo-se à sua gata. – Quero que se sinta bem recebida quando voltar.
Harley ergueu as sobrancelhas e conteve a risada. Desde quando gatos se importam com boas-vindas. Enquanto subia as escadas forradas de carpete, Margeory lhe disse:
- Há um homem querendo falar com você.
- Quem? – Perguntou a detetive, parando na metade da subida.
- Ora, eu não sei – a velha deixou escapar um risinho -, mas o mandei subir. Ele está esperando por você.
Harley arregalou os olhos.
- Você deixou um completo estranho entrar aqui e ir até o meu escritório sem nem ao menos perguntar-lhe o nome?
- Não precisa repetir o que já falei. – Retrucou a velha enquanto abria a porta, colocando o pequeno pote transparente na beirada dos degraus de concreto que levavam até onde ela estava.
Se eu fosse aquela gata, também iria tentar fugir, pensou Harley enquanto respirava profundamente, começando a ter um vislumbre do corpo do homem que esperava na frente de seu escritório. Era um homem baixo, de terno preto, cabeça um tanto calva, com entradas nítidas que lhe atribuíam alguns anos a mais. Seus cabelos loiros escassos combinavam com os olhos castanhos amendoados. Era Winson Freemont que segurava seu chapéu fedora nas mãos trêmulas.
- Senhor Freemont... – Harley deixou escapar, surpresa. – Não esperava ver o senhor.
O homem se ergueu rapidamente, os lábios gaguejando as palavras:
- Eu...eu...decidi...eu tinha de vir.
Harley caminhou até sua porta, segurando a maçaneta enquanto perguntava:
- O senhor está bem?
Ele assentiu.
- Pre-preciso...preciso de sua ajuda. – Finalizou ele.
...
Harley mexia seu chá com uma colher de metal, segurando sua xícara com mãos firmes enquanto pensava que não tivera tempo o suficiente para retirar todas as bebidas que estavam na prateleira atrás de sua mesa. Bom, ela, de fato, não esperava ter um cliente naquele dia.
- Tem certeza de que está bem, senhor Freemont?
O homem riu, as rugas contornando seus lábios.
- Deveria estar?
Harley franziu o cenho.
- Sei que é uma pergunta estúpida, considerando a situação em que está, mas realmente estou preocupada com o senhor. – Ela sentou-se em sua cadeira acolchoada, tocando a mão de Winson. Harley não ligava para ele, mas sabia que precisava manipulá-lo se quisesse trabalhar no caso da filha dele.
- Obrigado. – Depois disso, ele bebericou seu chá com timidez. – Bom...não tem porque adiarmos isto...quero contratar seus serviços, senhorita Cleanwater.
Harley recostou-se sob a cadeira, a maciez envolvendo suas costas enquanto ela entrelaçava os dedos sob seu colo, coberto por uma calça jeans marrom. Winson provara-se um cliente diferenciado, já que fora direto ao assunto. As muitas poucas pessoas que vinham ali tomavam o tempo da mulher com futilidades, perguntando sobre como deixava seu cabelo tão lindo ou então porque recebia tantas cartas de ódio.
Houve um dia em que um homem simplesmente entrou ali para tirar satisfações com ela. Esbravejando, ele tentara acerta-lhe o rosto com um soco, enquanto berrava xingamentos e a culpava pelo fim de seu noivado. Harley apenas expusera a verdade. Ele era um canalha que traía a esposa duas vezes por semana com uma mulher que morava em Bristol. Bom, Harley não podia culpá-lo, afinal, é da raça humana o desejo de jogar a culpa adiante, poupando-nos de todas os frangalhos de uma bomba que já explodira e, agora, buscava seus alvos com voracidade. Se não fosse por seu conhecimento de defesa pessoal - e Eldric - talvez ela tivesse levado uma surra e tanto.
- Está bem...e a sua esposa? – Harley decidiu prosseguir.
Winson engoliu em seco, olhando para os lados como se Jay fosse aparecer a qualquer instante apenas por terem dito seu nome.
- Ela...bem...ela é contra essa ideia....
Já era de se esperar.
- Então por que está aqui, senhor Freemont?
- Porque Clary também era minha filha e aquela vaca parece se esquecer disso! – Winson explodiu em fúria, erguendo-se de sua cadeira, espalmando sua mão sob a mesa enquanto seu rosto tornava-se tão vermelho quanto os lábios de Harley. A detetive manteve-se imparcial, mas por dentro seu coração palpitava rapidamente. – Perdoe-me...
- Não há nada para perdoar. - Harley respirou profundamente, pensando em que tipos de problemas conjugais eles teriam:
A) Sexo ruim?
B) Esposa controladora?
C) Traição (menos provável)?
Mas antes que chegasse à uma conclusão, Winson retomou a conversa, a voz acalmando-se, assumindo tom grave já de costume.
- Eu vi o que a senhorita fez na igreja...
- Creio que todo mundo viu. – Harley deixou escapar enquanto maneava a cabeça, lembrando-se do barulho dos ossos do garoto quebrando-se e, na noite anterior, de sua mão enfaixada, sujando-se dos respingos do sangue do esquilo.
- Exatamente! – Winson gesticulou, apontando para ela. – Todos naquela maldita igreja viram o que aqueles garotos estavam fazendo! E....e ni-ninguém.... – Sua voz baixou um tom. – E ninguém fez nada para proteger a Clary.
- O que exatamente gostaria que eu fizesse pelo senhor? – Harley engoliu em seco, observando o chá de Winson já pela metade.
- Você me pareceu uma heroína, sabe.
Harley cravou as unhas em sua própria pele.
- Não sou heroína, senhor Freemont, e peço desde já que, ao se referir a mim, não use esse termo.
O homem engoliu em seco, seu pomo de adão subindo e descendo, como a água de um chafariz quebrado. Temerosa de que ele fosse embora, Harley resolveu se justificar, dizendo:
- Heróis poupam os outros da dor. Eu trago a dor às pessoas. Muitos que entram aqui querem saber a verdade, mas temem que ela não seja do jeito que gostariam que fosse.
- Perdão? – Ele ergueu os olhos de rato. Estava aflito. O suor em suas mãos escorria pelos pulsos, grudando sua camisa social sobre sua pele.
Harley se levantou apenas para, em seguida, sentar na beirada de sua mesa de mogno, podendo olhar Winson de cima, avaliando-o. Ele estava tão destruído quanto ela estivera mais cedo naquela manhã.
- Senhor Freemont, quero que tenha a plena consciência de que, se contratar meus serviços, talvez mais dor esteja em seu caminho. – Explicitou a detetive, os braços cruzados por debaixo dos seios, tornando-os ainda mais voluptuosos.
O homem olhou para seu chá, a marca de seus lábios na xícara de porcelana barata enquanto sua mente divagava.
- Não há maior dor do que perder um filho, senhorita Cleanwater.
Assumindo aquilo como uma resposta consciente, a mulher prosseguiu, o clima na sala tornando-se mais abafado, o que fez Harley caminhar até a janela no lado direito da sala, abrindo-a e sentindo instantaneamente uma brisa gélida envolvendo seu corpo. Pessoas começavam a caminhar pelas calçadas esburacadas com seus cachorros, os rabos agitados indicavam diversidade de cheiros.
- Então, o que gostaria que eu fizesse pelo senhor?
- Quero que encontre quem fez aquilo à minha filha. – Disse ele sem pestanejar.
Harley baixou os olhos. Estava feito. Ela assumiria aquele caso.
- Creio que saiba a taxa para os serviços...
- Dinheiro não será um problema. – Sua voz adquiriu seriedade, o que fez Harley engolir em seco. Parecia que o doce e abalado senhor Freemont havia desaparecido. No lugar dele, o próprio demônio estava sentado. – Só quero que encontre o filho da puta que matou minha filha.
...
O pai abalado saíra mancando pela porta do escritório de Harley, e essa imagem, junto às suas últimas frases, não saíam da mente da mulher:
- Sugiro que comece pelo ex-namorado dela. – Ele disse, seu rosto vermelho como se tivesse mordido algo apimentado demais. – Aquele desgraçado está envolvido, disso tenho certeza.
Agora, Harley caminhava até uma pequena cafeteria ao lado de um bar conhecido por The White Hart. O café era tranquilo, com um aroma achocolatado que difundia-se com o cheiro de massa fresca, os pães saindo dos fornos prontos para serem comidos. Uma mulher abaixou o jornal que lia com olhos arregalados apenas para ter um vislumbre de Harley. Quando a detetive fez menção de olhar para ela, a mulher se escondeu atrás das notícias da manhã, na qual se lia em letras exageradamente grandes: Morte de Clary Freemont abala cidade.
Um tanto prematuro e exagerado, não? As pessoas daquela cidade pareciam tão frias e calculistas quanto uma erva daninha, que se enrosca na primeira coisa em seu caminho.
- Então, você conseguiu. – Eldric a olhou de cima a baixo enquanto ela se sentava na frente dele, numa mesa encostada à janela aberta.
- Não me olhe assim. – Ela pediu, a cadeira de metal gelando suas pernas. – Precisamos do dinheiro.
Ele riu, um deboche sarcástico que vinha de sua alma.
- Continue dizendo que isso é pelo dinheiro, se precisar, mas não vai me enganar, Harley. – Eldric cruzou os braços, sua blusa de manga curta azul tornando-se justa em seus bíceps. – Você irá se envolver demais, mais uma vez...
Antes que ele terminasse, Harley deu um tapa sob a mesa de vidro, o que fez o pequeno prato na frente dele tremer em sua base, mexendo as poucas uvas que ainda restavam ali. Alguns olhares viraram-se para eles, mas ninguém disse nada abertamente, apenas fizeram como sempre; julgaram em silêncio.
- Não vamos começar com isso, Eldric.
- Você já começou, Harley, ao fazê-lo te contratar.
- Eu não o obriguei. Ele apareceu em meu escritório hoje, há alguns minutos atrás... – Ela gesticulou com as mãos, os raios de sol começando a ganhar força, esquentando seu braço, a única parte do corpo de Harley que se banhava naquela luz por cima da mesa.
- E toda aquela sua cena na igreja?
- Sabe como igrejas me deixam, Eldric...
Ele esticou seu braço, batendo seu peito na beirada da mesa, empurrando seu prato, fazendo com que uma uva rolasse até a mulher, que a apanhou e colocou na boca, sentindo seu gosto doce, porém amadurado.
- Sei que está tentando ser melhor depois do que houve em Painswick... – Ela baixou o olhar. – Mas talvez esse caso não seja a melhor forma de começar...
- Você sabe o que tentei fazer. Tentei ajudar Natalie. Agora ela está morta. – A voz da mulher saiu de forma tão seca quanto o gosto que ficou em sua boca. – Não posso me culpar por tudo o resto da vida, Eldric. Vou ajudar essa família.
Com um som agudo e incômodo, Eldric empurrou-se para trás, as mãos indo em direção à nuca enquanto bocejava, a bocarra abrindo-se em formato oval.
- Já que está decidida – ele recomeçou. – O que quer que eu faça?
Harley lembrou-se da noite passada. O esquilo morto ainda a estava assombrando, o que a fez pensar que a família Moore deveria ficar sob sua investigação.
- Precisamos criar uma lista de possíveis suspeitos. Estudar as relações de Clary com os outros.
- Quer que eu baixe a lista escolar dela? Posso ver quais aulas ela frequentava. – Ele se ofereceu.
- Já seria bom. – Harley tocou os lábios com os dedos, pensativa.
- O que foi?
- Há algo estranho nessa cidade, Eldric.
Ele riu.
- Todos somos estranhos. – Concluiu ele, retirando o celular de seu bolso.
Os cílios da mulher se agitaram. Harley passou a mão pelo pescoço, sentindo a tensão em suas costas, tentando relaxar com um respirar longo e profundo.
- O que quero dizer é que...o que faria alguém decepar as orelhas de uma garota?
*Surpresaaaaaa, hoje tem capítulo duplooooo, então corre que a continuação já está disponível!!!!!
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