- Capítulo III -



Quarta-feira, 25 de julho de 2017

Tarde, 16h11

A porta da casa de Helga Moore estava aberta, convidativa por si só. Suas tonalidades de azul-claro contradiziam a sua estrutura rochosa. Diferentemente da casa dos Grenier, Helga não tinha apreço por jardins. Na frente da casa havia apenas uma bicicleta vermelha, enferrujada, encostada na janela da frente, a qual deixava à vista um sofá marrom com almofadas amarelo-mostarda. Harley checou o celular uma última vez antes de caminhar até a porta da casa. Ainda dentro de seu carro, pensou no que estava fazendo ali, afinal, não havia sido contratada pelos Freemont, na verdade, até mesmo duvidava que seria. Ao bater a porta do carro e sentir o ar fresco da tarde de quarta-feira, Harley teve certeza de que estava ali por pura vontade. Resolver casos era uma paixão sombria e agridoce, que queimava dentro da mulher.

Quando tinha seis anos, seu interesse pelos mistérios começou. Os antigos desenhos de Scooby-Doo a influenciaram, é claro, revelando monstros tão horrendos que, no final, acabavam sempre por ser apenas humanos. Aquilo, agora, a decepcionava. Era tedioso saber que a arte brutal do homem era capaz de dominá-lo, mas também era uma explicação que passaria a ser utilizada por muitos naquela cidadezinha da Inglaterra, afinal quem seria o monstro que arrancaria as orelhas de uma pobre garota?

Harley parou a alguns metros da porta aberta e tocou a campainha, apenas para ver um tufo de cabelo castanho surgir na sua frente.

- Harley! – Festejou Helga com uma voz aguda, como se fossem amigas há muito tempo e aquele fosse seu primeiro encontro a décadas. – Entre, entre! – Pediu a mulher, gesticulando com sua mão direita enquanto segurava a porta para a detetive, embora não houvesse necessidade.

O espaço da casa surpreendia. Era mobiliada de forma discreta, com móveis bem cuidados e um cheiro de lavanda que parecia estar presente em todos os lugares. Harley retirou o par de óculos de sol que usava e o colocou sob os seios, cobertos por um terno preto que marcava sua cintura. No fundo da casa, onde geralmente nada se via, era diferente do comum. Havia uma pequena porta branca que dava espaço a um local desconhecido.

- Fiquei surpresa quando me disse que mudaria a data de nosso chá! – Helga anunciou, colocando-se na frente de Harley novamente. A mulher baixinha usava uma regata preta e um par de jeans velhos.

- Acreditei que não teria sido muito bom nos vermos ontem...devido ao ocorrido na igreja...

Ela escancarou a boca, como se ouvisse aquilo pela primeira vez, como se não soubesse toda a confusão que ocorrera no solo da única igreja que ali havia.

- Ah, sim! Os jovens são terríveis, não? – Helga riu, o que fez seu nariz assumir um formato de gancho. – Venha cá, irei lhe servir um chá.

Harley ainda se mantinha atenta aos detalhes, então perguntou:

- Qual o nome de seu filho? – Harley sentou-se no confortável sofá marrom, sentindo a poeira se levantar ao fazê-lo. Será que aquela mulher não limpava a casa?

- Como é? – Helga engasgou, pálida.

- Seu filho... – Harley prosseguiu – As fotos no corredor da entrada... – Explicou Harley, que tivera um relance das fotografias de Helga abraçando um garoto.

- Ah...quase me esqueci que você é uma detetive. – Brincou a mulher, colocando os fios de seus cabelos para trás. – Pelo visto, é uma das boas. – Helga riu numa tentativa inútil de tornar o clima mais agradável. Qualquer um poderia ver aquelas fotos. – O meu menino se chama Tom. Gosto de chama-lo de Tommy, mas ele detesta que o chamem assim.

- Como o chamam, então?

- Tom.

Harley assimilou aquele nome. Pelas fotos, aparentava ter a mesma idade que Clary Freemont. Talvez ela pudesse conversar com ele em algum momento, mas para isso teria de ficar amiga de sua mãe, embora isso parecesse meramente impossível.

- Gostaria de conhecê-lo? – Indagou Helga, um sorriso largo em seu rosto cansado. Antes que Harley respondesse, a mulher já estava gritando pelo garoto, que desceu as escadas do andar de cima rapidamente. Ao aparecer na sala de estar, seu rosto congelou ao ver Harley, os olhos da mulher fixo nos dele. – Tom, esta é Harley Cleanwater, uma amiga minha.

Harley não revirou os olhos, embora sentisse seus estômago embrulhar enquanto ouvia a voz de Helga.

- Olá, Tom. – Harley forçou um sorriso com os lábios ainda colados.

O garoto parecia paralisado, os cabelos castanhos tinham alguns fios rebeldes, que recusavam a seguir o movimento criado para a esquerda pela escova, os olhos castanhos cor-de-âmbar estavam um tanto aflitos e os lábios finos franzidos. Seu maxilar quadrado simetricamente alinhado com suas orelhas. Mesmo estando mais quente que o dia anterior, o garoto usava uma jaqueta de manga comprida, preta, com a gola levantada até a altura do pescoço, junto a uma calça jeans com alguns rasgos.

- Está indo a algum lugar, querido? – Indagou a mãe, preocupada com o filho ao vê-lo com uma mochila cinza nas costas.

- Não...não...só vou....quer dizer, sim... – Gaguejou o garoto, que devia ter por volta de seus dezoito anos. – Vou....volto mais tarde.

Ouvindo a porta da frente bater, Helga bufou, vencida por uma força imaginária. Seus olhos repousaram sobre a pequena mesa de centro, abarrotada de revistas de mobílias que ela jamais teria dinheiro para comprar.

- Adolescentes, certo? – Indagou a mãe, analisando as palmas das mãos. Ela se considerava uma mãe ruim, isso era um fato.

- Sim. – Harley concordou apenas para fazê-la se sentir mais confortável com sua presença.

- Bom, vamos ao nosso chá! - Anunciou a mulher, batendo as mãos enquanto se levantava, como se aquela ideia tivesse explodido em sua mente.

Enquanto Helga estava na cozinha, Harley apanhou o celular, digitando com dedos ágeis uma mensagem para Eldric:

HARLEY: Está aí? Preciso que faça algo para mim.

ELDRIC: Quando não precisa, não é?

HARLEY: Vá se foder. Preciso que siga uma pessoa.

ELDRIC: Quem?

HARLEY: O nome dele é Tom Moore, conhecido por Tommy ou apenas Tom. Siga-o aonde quer que ele esteja indo.

ELDRIC: Como vou saber que estou seguindo a pessoa certa? Nunca nem ao menos vi o garoto.

Harley bufou, levantando-se de súbito enquanto caminhava até o corredor da entrada, erguendo o celular na altura de uma foto emoldurada na parede. Tom estava sorridente, seus dentes brancos próximos às bochechas da mãe, que parecia rir de alguma piada. No fundo da foto, um céu azulado que já não se via há muito tempo.

HARLEY: Anexo: foto.

                  Satisfeito?

ELDRIC: Aviso assim que conseguir alguma coisa.

Com passos sutis, porém rápidos, Harley sentou-se novamente no sofá, guardando seu celular na bolsa enquanto ouvia Helga colocando o chá em xícaras baratas. O ar da sala permanecia abafado com o cheiro de lavanda, que se misturou com o aroma da bebida fumegante assim que a mãe retornou para a sala de estar.

- Posso te perguntar uma coisa? – Indagou Helga enquanto colocava dois cubos de açúcar na xícara de Harley. A detetive detestava o gosto que aqueles cubinhos artificiais criavam. Mel era muito melhor. – Na sua casa também há muita poeira?

Harley quis rir, mas tratou aquela pergunta com seriedade. Bom, considerando que ela morava num hotel nas noites em que não estava com Eldric, então a resposta não poderia ser diferente:

- Na verdade, não.

- Então não sei o que fazer! – Helga jogou as mãos para trás e riu. – Já perguntei para a senhora Jenkis e nada. Pergunto a você e é a mesma coisa.

Nossa, que impressionante. A resposta de duas pessoas numa cidade inteira era capaz de convencer Helga de que sua casa tinha problemas.

- Senhora Jenkis? A mãe de...

- Sim! – Helga a interrompeu. – A mãe de Edgar Jenkis! Não é emocionante? Sou amiga dos dois melhores detetives dessa cidade!

A mulher realmente parecia acreditar que aquilo era verdade, então Harley apenas deu um sorriso amarelado e apanhou a xícara de chá, entretendo-se com as curvas sinuosas formadas pela fumaça que subia verticalmente.

- Bom, na verdade amiga sou apenas sua e da mãe de Edgar. Nunca tive a oportunidade de falar com ele pessoalmente. – Admitiu a mulher, como se estivesse envergonhada. – Você já falou com ele? – Ela indagou com a curiosidade de uma criança que conhece o personagem de seu desenho favorito.

- Na verdade, sim.

Infelizmente, sim.

- E como foi?

Harley não sabia responder àquelas perguntas e nem a menos sentia vontade para tal. Ela precisava saber mais sobre a mulher, sobre o que ela fazia e o que sabia sobre as outras pessoas daquela cidade.

- Por que há uma porta no final do corredor, se me permite perguntar? – Indagou Harley tentando imitar o mesmo ar de inocência da mulher, bebericando seu chá.

- Ah, você reparou? – Helga sentiu-se feliz. – Foi ideia minha. Não queria que a minha casa fosse como todas as outras, então construí um pequeno jardim aos fundos, assim não há como ninguém o machucar, sabe, há pessoas que não se importam com o trabalho dos outros.

- Conheço muitas que são assim. – Respondeu Harley apenas para manter a conversa em aberto. Ela sabia que era uma daquelas pessoas que roubavam flores e chutavam anões de jardim.

- E, cá entre nós – Helga abaixou-se, curvando seu corpo na direção de Harley. – O fundo da casa dá em direção ao terreno do novo solteiro da cidade. – Ela admitiu enquanto ria. – Ah, Deus, me perdoe, mas me rendi ao pecado. – Ela continuou rindo.

- Novo solteiro? Quem?

- Você ainda não sabe?

- Creio que não.

- Daniel Ellenclair. – Helga contorceu o rosto num biquinho forçado. – Um pedaço de mal caminho que eu adoraria seguir.

Harley fez uma anotação mental. Quem era ele e por que ela não soubera nada previamente?

- Fui falar com ele.

- Aposto que sim. – Harley deixou escapar por entre seus lábios brilhosos de chá, desmontando o sorriso de Helga.

- Perdão?

- Quero dizer, se ele é como você diz, eu certamente também iria. – A detetive fora rápida de pensamento, concertando seu erro. Era difícil conter sua ironia, todo o sarcasmo estava sendo engolido e agora corroía seu estomago. Mas estava valendo apena.

- Ele me contou que mudou para cá há duas semanas. É divorciado e ama cães. – Helga prosseguiu com a conversa para alívio da detetive. O perfil que a mãe estava descrevendo batia com um personagem cafona de um filme dos anos noventa. – Me parece muito legal.

Harley concordou com um movimento de cabeça.

- Hã...o seu filho...Tom. Ele estudava com Clary? – Harley acabou de beber seu chá e o colocou sob a mesa de centro. Era melhor acelerar aquele assunto, ao contrário perderia o resto de seu dia apenas com futilidades de uma solteirona.

- Sim, estudava sim. A White Hills é uma escola pública muito boa. Me orgulho das notas que ele tira.

Seja rápida, Cleanwater, não deixe-a mudar de assunto.

- Você diria que eles eram amigos?

A mulher também acabou de beber seu chá, virando um último gole com a cabeça jogada para trás, quase como um personagem teatral.

- Não, creio que não. – Certa tristeza assumiu o controle de sua voz. – Tom...ele é diferente, sabe. Não tem muitos amigos.

- Diferente como?

- Ah, bem...como posso explicar? Tom perdeu o pai muito cedo e....prefere se esconder em pilhas de livros do que conversar com alguém. – Helga diminuiu o tom de sua voz, passando seu tom agudo para um sussurro abafado. – É triste eu dizer isso, mas acho que ele até mesmo sofre algum tipo de bullying.

Harley ergueu as sobrancelhas.

- Alguma vez...ele disse isso para você?

- Não. – Helga sorriu, magoada consigo mesma. – Tom é orgulhoso. Não diria uma coisa assim.

- Então porque desconfia do bullying?

- Ele é meu filho. Sei quando há algo de errado com ele.

Harley soube que naquele instante atingira uma barreira que Helga não estava disposta a quebrar.

- Acho que ele nem ao menos tenha beijado uma garota. – Uma lágrima escorreu por seu rosto, mas fora rapidamente enxuta pelos dedos ossudos da mulher. – É por isso que acho muito difícil que uma garota como Clary Freemont teria tido algum tipo de ligação com Tom.

- Uma garota como Clary...você quer dizer...popular?

- Exatamente. E me entristece dizer que todos os jovens daquela escola ficarão abalados com o que aconteceu. Clary era aquilo que chamam de rainha social.

Harley nunca nem ouvira aquele termo. Talvez Helga estivesse começando a inventar os fatos para proteger a frágil autoestima de seu filho e de si mesma. Seu tempo ali já havia acabado. Não conseguiria nada mais daquela mulher, bom, não naquele dia ao menos. Sempre haveriam novas fofocas espalhadas pelas frestas das paredes.

- Sem uma rainha, os jovens ficarão perdidos. – Os olhos da mulher se entortavam com as lágrimas.

- Tenho que ir, senhora Moore.

- Não, fique! – A mulher agarrou a mão de Harley no instante em que ela fizera menção de se levantar. – Farei mais um chá...ou então...fique para jantar conosco!

Jantar? Que horas eram?

Harley olhou para a janela ao seu lado, percebendo pela primeira vez o pôr do sol, as pinceladas de um laranja vibrante abrindo espaço para o azulado da noite, as estrelas ainda tímidas. Seu celular vibrou em sua bolsa. Eldric?

- Eu realmente tenho que ir. – Harley reforçou, apontando para a bolsa, indicando que o barulho do celular significava algo importante. – Não se preocupe, ainda nos veremos de novo. Muito obrigada pelo chá. – Harley esboçou um sorriso, sentindo pena daquela pobre mulher.

Do lado de fora, os ventos se tornavam mais intensos com o dominar da noite, mas o clima, surpreendentemente, permaneceu o mesmo, o que fez Harley querer retirar seu terno. Ela não o fez, apenas entrou no carro e apanhou o celular. Havia uma mensagem para ela:

ELDRIC: Venha para minha casa.

...

Noite, 19h42

Para chegar à casa de Eldric, bastava passar pelo The Manor House Hotel, seguindo por mais alguns minutos você se depararia com uma fileira de casas, de frente para árvores altas e de folhas largas, irrigadas constantemente pela água do rio que fluía mais para baixo. Harley estacionou seu carro apenas para, em seguida, ligar seu alarme, abrindo a pequena cerca de madeira que dava acesso ao terreno de Eldric.

Passando pelos bizarros anões de jardim que ele expunha na frente da casa, Harley bateu duas vezes na porta de madeira, vendo-a se abrir rapidamente. Ele a recebera com um sorriso e uma blusa azul de algodão, macia e confortável.

- Conseguiu algo? – Ela indagou, largando sua bolsa sob a cadeira da mesa de entrada, a qual tinha um vaso branco leitoso sustentando camélias amarelas.

- É sempre ótimo te receber aqui. – Zombou ele, fechando a porta com o pé. Harley ergueu uma sobrancelha. – Eu encontrei o seu garoto.

O coração de Harley começou a bater mais rapidamente, mas sua fala manteve-se inalterada.

- E?

Eldric se aproximou dela, tocando-lhe o corpo, envolvendo suas cochas com as mãos curiosas.

- Eldric, responda.

- Não...faz tempo que você não vem aqui...

Harley mordiscou seu lábio inferior antes de agarrar o maxilar dele, levantando-o até seu rosto, apenas para beijá-lo, o gosto do álcool estava presente em sua língua, que dominava cada vez mais espaço na boca da detive.

- Andou bebendo?

- Você não está em posição de me julgar.

Harley concordou.

- Eldric - ela o impediu de continuar com as provocações tão desejadas por seu corpo. – Aonde ele estava?

Bufando, o homem se afastou, passando a mão sob seus cabelos castanhos rasos quase sempre à escovinha.

A casa de Eldric era fria devido às árvores, mas a iluminação amarelada tendia a tornar o ambiente mais agradável. O sofá da sala de estar, na opinião de Harley, era o melhor lugar de toda a casa.

- Sabe os garotos da igreja?

- Os que choravam?

Eldric riu como se tossisse.

- Quem dera fosse. Ele foi se encontrar com os garotos que você, bem...não sei se posso chamar aquilo de uma briga. Você apenas quebrou o dedo do cara.

O rosto de Harley empalideceu.

- Como assim foi...se encontrar?

Eldric bocejou e esticou seus braços antes de responder:

- Acho que eles são amigos, não sei. Eles o receberam com aplausos.

Num estalo súbito em seu subconsciente, Harley lembrou-se de sua conversa com Helga Moore. Ele não é popular, sabe...acho que ele pode estar sofrendo bullying...

- E....? – Harley indagou na esperança de que o relatório embriagado de Eldric não terminasse ali.

- Foi só. - Afirmou o homem para o desespero da detetive.

- Porra! Por que não ficou vigiando-os!? – Harley deu um tapa sobre a mesa da entrada, que repercutiu pela casa. – Sabe o que pode estar acontecendo nesse exato momento!?

- Eles podem estar se masturbando em grupo? – Caçoou Eldric apenas para, em seguida, levar um tapa que ficaria dolorido pelo resto da noite. Harley respirava pesadamente e o braço ainda estava no ar. Num gesto rápido, Harley segurou as feições de seu amante, aproximando-o de seu rosto, deixando que seus olhos focalizassem-se nos dele.

- Leve-me até ele.

Eldric hesitou antes de responder, como se estivesse considerando todas as possibilidades.

- Não.

- Eldric...

- Você ainda não está bem.

Harley engoliu sem eco.

- Estou ótima, Eldric, mas aquele garoto talvez não esteja. Preciso que me leve até ele.

- Você sempre teve essa mania de colocar o caso dos outros na frente de sua saúde. – Ele continuou, como se ignorando tudo o que ela acabara de dizer. – Nós nem ao menos fomos contratados, Harley! – A voz calma foi substituída pelo grito rouco de sua garganta. – Não há porque ajudar!

Harley endireitou os ombros, o queixo erguido enquanto tentava ficar na mesma altura de Eldric.

- Você queria que eu os ajudasse!

- Mas não se isso significar a negligencia da sua saúde, porra!

- Eu vou atrás desse garoto, Eldric. Aqui é uma cidade pequena, mas eu ainda vou encontrá-lo. Sem a sua ajuda, demorarei um pouco mais, e talvez Tom não tenha esse tempo! Eldric, por favor, me diga aonde ele está!

De olhos baixos, o homem sibilou quase que envergonhado:

- Se eu disser, terá de me prometer que não irá confundir as coisas.

- O que quer dizer?

Eldric ergueu seus olhos castanhos, permitindo-os entrar na alma de Harley assim que estabeleceram contato visual.

- Não esqueça que ele não é o seu filho.

...

Noite, 21h58

Tom Moore estava numa área aberta, com o chão forrado de uma grama rasa e seca, conhecida como Upper Castle Combe, a qual se tinha acesso pela estrada B4039, que cortava praticamente todo o território, dividindo-o em dois.

Harley estacionou seu carro atrás das árvores que circundavam o local. Os garotos, como dito por Eldric, estavam reunidos num círculo, quase no meio do campo, iluminando uma pequena faixa de grama com a lanterna de seus celulares. Eram tão estúpidos de ficarem numa área aberta? O mais alto tinha a mão enfaixada. Harley esboçou um sorriso enquanto o via tendo dificuldade em coçar o saco com a mão esquerda.

Tom era o menor deles, exprimido no meio da roda como se estivesse ali contra a sua vontade. Talvez, de fato, estivesse. Harley caminhou ainda pelas árvores, abaixando-se atrás de seus troncos, esgueirando sua cabeça para a direita a fim de ter uma visão melhor dos garotos. O suor escorria pelas suas costas enquanto os ventos batiam contra seu cabelo. O que eles estariam fazendo ali?

Não se conseguia ouvir muito, apenas palavras trazidas pelo vento: cachorra, casa, puta e entre palavrões desnecessários que fluíam de suas bocas refrescadas pelo álcool das garrafas em suas mãos. Tom não bebia, apenas mantinha os olhos baixos, fitando seus sapatos desamarrados. O mais alto, de cabelos loiros, o empurrou para a direita. Harley cerrou o punho, mas antes que fizesse algo, os garotos pararam, sérios, olhando na direção da árvore em que ela estava escondida, o ar congelando ao seu arredor. Eles sabiam que ela estava ali? Seu coração bateu mais rápido enquanto os via jogando suas mochilas no chão. Todos eles.

O gordo com a cara cheia de espinhas abriu sua mochila primeiro, ajoelhando-se na grama, rindo enquanto apanhava um esquilo de dentro dela, vivo, a pequena criaturinha se debatendo contra as mãos gordurosas. O mais alto abaixou-se também. Tudo estava silencioso, apenas os batimentos dolorosos do coração de Harley ecoavam naquela noite abafada. Uma faca reluziu à fraca luz das escassas estrelas daquela noite e à doentia claridade da lanterna. Ele a apanhou, não sabendo ao certo como manuseá-la com a mão que lhe era forçado a usar. A adrenalina fluía por cada fibra do corpo da mulher.

Sem saber o que falavam, Harley sentia-se incapaz de fazer algo, então apenas permaneceu ali, uma espectadora de um encontro bizarro, feito às escuras.

Conforme os outros retiravam bebidas de suas malas, um deles, de cabelo raso e com uma argola na orelha esquerda, retirou uma caixa de fósforo. Uma mistura perigosa na mão de idiotas. Ele riscou um fósforo, uma súbita fagulha refletindo nos olhos de Harley, fazendo-a lembrar-se das labaredas dançantes que devoraram sua alma em Painswick. Ela franziu o cenho, desnorteando-se nas imagens violentas que surgiam em sua memória. Um menino morto. As lágrimas pesadas das mães desoladas. Uma cruz. As diversas pílulas...todas as imagens fazendo sua mente girar infinitamente sem nunca chegar a algum lugar.

Respirando profundamente, Harley reabriu os olhos a tempo de ver a faca sendo passada de mão em mão até repousar nas de Tom, que a segurou como se fosse um brinquedo pesado demais para se brincar, estranhando-o. O mais alto apontou para o esquilo e Harley entendeu o que era aquele encontro. Um ritual cruel de humilhação social. Tom não queria fazer aquilo. Ela via isso mesmo àquela distância. Os outros riram de sua incapacidade de ferir uma criaturinha tão insignificante como um esquilo. Mal sabiam eles que suas almas estavam condenadas.

Impaciente, o loiro apanhou a faca com sua mão esquerda, fazendo um arco no ar, decepando a cabeça da pobre criatura, que nem ao menos tivera a chance de se defender, o sangue espirrando por todos os lados enquanto o corpo tombava na grama rasa e dura. Harley tapou seus lábios, receosa de que um grito cortaria a noite. Tom caiu de joelhos, uma bile viscosa escorrendo por seus lábios finos até tocar o solo.

Harley ergueu-se, cambaleando pelas árvores de folhas largas até cair sob o capô de seu carro, retomando suas forças para abrir a porta do mesmo. A noite estava calma e solitária, sem nenhuma alma boa o bastante para iluminá-la. Ela sentou-se diante da estrada. O ar lhe faltava nos pulmões, o que a fazia ter inspirações curtas e descontrolados. Por fim, Harley apenas recostou a cabeça no volante, chorando.

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