Epílogo

O Lourenço parou na entrada do condomínio e deu seu nome e o número da casa onde estava indo. Enquanto esperava permissão para entrar, ele secou as palmas das mãos na calça jeans.

O som alto de uma explosão o fez dar um pulo e ele olhou em volta, pronto para correr ou se defender, mas não era caso nem de um, nem de outro. Foi só um entregador fechando a porta traseira do caminhão com mais força que o necessário.

Ele enfiou a mão pelo visor do capacete e coçou o lado do olho. Tinha sido assim da outra vez também, você saia da cadeia, mas a cadeia demorava uns dias a mais para sair de você.

A cancela levantou e o segurança fez um gesto para o Lourenço passar. Ele parou do lado do homem e pediu instruções de como chegar na casa dela e seguiu depois de ter certeza de ter entendido. Ele tinha estado ali só uma vez, as ruas pareciam todas iguais e ele não queria perder tempo andando em círculos quando ela estava a sua espera.

Não foi com muita esperança que ele tinha feito a ligação no dia anterior, mas não só a Bia ainda tinha o mesmo número de celular, como aceitou se encontrar com ele. Sempre generosa. Sempre o vendo de uma maneira que nenhuma outra pessoa o via.

Ele seguiu devagar pelas ruas calmas do condomínio, passou pela frente da casa dos pais dela e contou as esquinas para não errar, com o coração parecendo querer pular do peito. Depois de tanto tempo, ele estava a menos de um minuto de se encontrar com ela e mais nervoso que em qualquer outra parada que já tinha enfrentado. Talvez ele não tivesse o direito de vir atrapalhar a vida nova que ela tinha construído, mas ele também estava pronto para seguir em frente e não poderia fazer aquilo sem antes vê-la pela última vez.

A Bia o esperava em frente à casa, e a visão foi um choque. Ela estava linda, como sempre, os mesmos cabelos longos caindo em cachos sobre os ombros, o mesmo sorriso no rosto delicado, o vestido justo e comprido, deixando o barrigão bem delineado. Ela apontou a lateral da casa, e ele subiu a pequena rampa da garagem, estacionando a moto no canto, perto da parede.

O Lourenço não tinha vindo de moto só porque precisava de um meio de transporte. Ele sacrificou uma parte do pouco dinheiro que as irmãs tinham lhe mandado e alugou uma, porque queria mostrar a Bia que, por trás do rosto endurecido e da postura defensiva que o tempo na penitenciária tinham deixado nele, ele ainda era o mesmo.

O mesmo cara que tinha pisado na bola com ela, que tinha mentido e feito com que ela fosse presa, mas também o cara que tinha planejado um dia especial para poder dizer que ela era a mulher da sua vida.

Ou, talvez, ele só quisesse fazê-la sorrir e ver o sol brilhando no olhar dela.

Ele tirou o capacete e passou as mãos pelos cabelos algumas vezes. Que aquele seria um encontro difícil, ele não tinha dúvidas, mas nada gritava mais que uma mulher era de um homem do que um filho na barriga. Não que o Lourenço tivesse alguma expectativa de que aquele encontro fosse além de um pedido de desculpas. O playboy tinha vencido e os dois estavam casados.

O Lourenço não costumava dar atenção para as revistas de fofoca que apareciam na sua cela, mas naquele dia, um comentário de um dos companheiros despertou sua curiosidade e, quando a revista foi jogada num canto, ele a pegou. Ele nunca mais ia se esquecer da porra da dor ao ver as fotos do casamento deles. O Diego tinha virado um ator famoso logo no seu primeiro trabalho na TV, queridinho das novelas que o Lourenço se recusava a assistir, mesmo que fosse a única coisa para se fazer na decrépita sala de recreação.

A Bia vestida de noiva estava ainda mais linda do que ele lembrava e, por mais que tivesse sido parecido com arrancar todos os dentes sem anestesia, ele ficou satisfeito com o sorriso iluminando o rosto dela. Tudo o que ele queria, era que ela fosse feliz. Ele tinha começado a rasgar a página com a foto para guardar, mas desistiu. Era melhor fazer como ela e esquecer.

E ele nem conseguia desprezar o playboy por ter esperado pacientemente pela chance perfeita de conseguir a garota, porque o Lourenço teria feito a mesma coisa no lugar dele.

Ele respirou fundo, deixou o capacete em cima do banco e foi ao encontro da Bia, que o esperava perto da porta.

— Eu devia saber que você ia chegar em grande estilo. — Ela deu uma risada que encheu seu peito com o som mais bonito que ele já tinha escutado.

— A gente faz o que pode. — Ele se aproximou hesitante.

Como cumprimentá-la? Um aperto de mão? Dois beijinhos?

A Bia não teve o mesmo problema e o abraçou. Ele tentou não se afetar com o calor e com o cheiro que ele se lembrava tão bem, mas ele ficou cinco anos sem abraçar ninguém, sem receber um carinho ou um gesto afetuoso, e tê-la nos braços e não reagir como ele realmente queria foi uma das coisas mais difíceis que ele tinha feito.

— Como você está? — ela perguntou, os olhos interessados e sinceros cravados nele.

— Eu tô bem. — Não era verdade, mas ele não tinha o direito de jogar seus problemas no colo dela. — Obrigado por ter aceitado me ver.

— Lourenço, eu nunca vou me recusar a te ver.

As palavras foram como um soco no estômago. Cinco anos poderia até ser bastante tempo para se ficar magoada com alguém, e ela teria o direito a isso, e muito mais, depois da sacanagem que ele tinha feito, mas ela continuava incapaz de guardar rancor.

— Eu ia entender se você tivesse me mandado a merda. — Ele a acompanhou em direção à porta e resolveu mudar de assunto quando ela não se manifestou. — Menino ou menina?

— Menina. — Ela passou a mão pela barriga, os olhos brilhando. — Minha segunda.

A sala da casa dela era clara, arejada, de bom gosto e elegante e, ao mesmo tempo, despretensiosa e convidativa, como ela. Ele estudou o ambiente que ele nunca poderia proporcionar para ninguém. O playboy cuidava dela como ela merecia.

— Você aceita uma água? Um café? — a Bia perguntou, quando eles se sentaram.

— Não, obrigado. Eu não quero te atrapalhar e nem posso demorar muito. Eu tenho que pegar um avião, hoje ainda.

— Você tá indo embora? — A testa dela franziu, deixando os olhos maiores.

— Você lembra que eu te falei do irmão da minha mãe que morava no Sul? Logo depois do meu julgamento, ele procurou a Mari. A esposa dele tinha acabado de falecer, eles não tinham filhos e ele se tocou que nós três éramos a única família que ele tinha. O tio Rodolfo levou elas pra morar com ele, e eu tô indo também.

— E como elas estão?

— Elas estão ótimas. A Mari trabalha com o meu tio, e a Alexa tá se formando em moda. Ela vai trabalhar desenhando roupas ou alguma coisa do tipo. — Seu peito se esquentou de orgulho e saudade ao falar das irmãs. — Você também já se formou, né?

— No final desse ano. Eu me atrasei um pouco. — A Bia apoiou as mãos na barriga. O Lourenço quis perguntar se o atraso tinha a ver com o que tinha acontecido com eles, mas ele hesitou, ela continuou a falar e o momento passou. — Vai ser bom pra você, sair do Rio. Começar tudo novo, num lugar diferente.

— É por isso que eu tô indo. — Ele respirou fundo. Hora de fazer o que ele tinha ido fazer. — Bia, em primeiro lugar, eu preciso dizer obrigado. Eu sei que o seu pai só bancou o meu advogado porque você pediu. E depois do que eu fiz, foi muito generoso da sua parte.

— Eu vou passar seu agradecimento pra ele. Eu só quis que você não precisasse pagar mais do que o justo por causa da indiferença de um advogado público. — Ela segurou sua mão.

Era errado.

Ela era de outro cara, mas ele estava indo embora e nunca mais teria aquela oportunidade, e agarrou a mão dela com força. Ela não tentou se soltar.

— E eu sei que nada do que eu disser, vai apagar o que aconteceu naquele domingo, mas eu queria me explicar. — Ele coçou a cicatriz do lado do olho. Ele tinha imaginado esse confronto tantas e tantas vezes, e não conseguia se lembrar de uma única frase. Ele procurou por outras e tentou não se afetar com a maneira como o rosto dela tinha se fechado. Relembrar ainda era sofrido para ela também. — Depois da surra, quando eu fui conversar com os caras, eu não te contei toda a verdade. Eles me fizeram mesmo a proposta de me deixar em paz se eu colocasse alguém no bar e na academia, mas eles disseram que enquanto aquilo não acontecesse, eles não podiam ficar no prejuízo, que eu ia ter que continuar passando a mesma grana pra eles. Eu não tinha o dinheiro, Bia, o único jeito foi continuar vendendo. Mas, era provisório, eu ia parar de verdade, depois.

— Você devia ter me contado. Eu podia ter tentado te ajudar. — A voz dela saiu pequena e apertada.

— Eu não queria mais você envolvida naquela porra toda. Era um problema que eu tinha que resolver, e os caras disseram que se eu falhasse um pagamento, que ia ser eu que ia ficar olhando enquanto o Dezinho se divertia com você. Eu não podia deixar acontecer. Eu sei que eu tinha prometido não te esconder mais nada, mas eu também prometi que ninguém mais ia te fazer mal, e essa promessa era mais importante pra mim. Era pra ser só por uns dias. Se o Toninho não tivesse sido um babaca, nada daquilo teria acontecido. A gente tinha acabado de voltar a namorar, eu não queria te perder, de novo.

— Ainda bem que o seu plano funcionou direitinho. — Ela deu uma risada, amarga.

— Não, o meu plano foi uma merda. Não tem uma noite que eu não penso no que você deve ter passado por minha causa. Mas eu não me arrependo. Quando eu estava preso e a tentação de me perder imaginando tudo o que eu podia ter feito diferente era grande, eu me consolava pensando que era melhor eu estar lá com você segura e protegida na sua casa, sem ter passado pelas mãos do Dezinho, do que eu ter me recusado a cair na chantagem deles e você ter sofrido as consequências.

Para sua surpresa, o rosto da Bia mudou e ela abriu um sorriso. Foi lindo ver a tempestade se dissipando nos olhos dela e o sol voltando a aparecer.

— Pois eu também não me arrependo de nada. Quer dizer, eu preferia não ter sido presa, mas eu não faria nada diferente. Como eu poderia, se você me deu o presente mais lindo que eu tenho?

— Um passeio de camburão? — Ele não merecia. Foi atrás do perdão dela que ele tinha ido, mas ele esperava ter que ouvir alguns xingamentos e precisar implorar antes de ganhá-lo.

— Não. — Ela deu dois tapinhas na sua mão. — Eu não sei se ajuda saber, mas o policial não me algemou, nem me colocou num camburão. E eu fiquei esperando numa salinha da delegacia, sozinha. Não foi tão ruim. Agora eu queria que você conhecesse alguém, você tem tempo?

— Pra você? Quanto tempo você quiser.

Como ele podia negar qualquer coisa para a Bia depois de receber tanto dela?

Depois que ela saiu da sala, o Lourenço secou o suor das mãos na calça, de novo. O pior tinha passado. Quando ele entrasse no avião, mais tarde, seria carregando menos duzentos quilos nos ombros, mesmo que o coração estivesse mais despedaçado que nunca.

Ela voltou alguns minutos depois, seguida do marido carregando uma menininha. O Lourenço se levantou pronto para o confronto, que veio assim que os olhos do playboy se encontraram com os seus.

— Eu quero que você saiba que eu sou contra isso — o Diego foi direto ao ponto, a expressão do rosto dura e agressiva. — Você não merece!

O Lourenço ficou calado porque não entendia o que estava acontecendo, mas precisava concordar com o Diego, ele não merecia nada do que a Bia estava fazendo por ele naquele dia.

— Calma, você tá assustando ela. — A Bia passou a mão nas costas da filha, que tinha se agarrado ao pai e escondido o rostinho no pescoço dele. — Confia em mim? Vai dar tudo certo.

— E eu tenho outra opção, Bia? — Ele suavizou a voz e olhou para a esposa com carinho e deu um beijo na cabecinha da filha — Desculpa, meu amor.

A Bia voltou a se sentar, e o Diego colocou a filha no colo dela e, esfregando sal na ferida, beijou a esposa de leve nos lábios.

O playboy se virou para ele.

— Você não precisa ficar cheio de ideia. — O tom de voz foi mais calmo, mas a ameaça no olhar estava lá. — Elas são a minha família, tá ouvindo? Minha! Família!

Ele saiu pisando duro.

— Senta aqui — a Bia pediu, tranquila e o coração do Lourenço desacelerou um pouco. Ele fez o que ela pediu enquanto ela virava a menininha de frente para ele.

Ela tinha a pele morena clara, os cabelos longos e lisos, bem escuros, quase pretos e os olhos cor de chocolate, nada parecida com o pai.

Ou talvez, exatamente como o pai...

O Lourenço recebeu um choque e entrou num túnel, sua visão se estreitando, ouvindo a conversa da Bia com a menina de muito longe.

— Esse é o Lourenço, amigo da mamãe. Diz oi pra ele e conta como você se chama.

— Oi. — A menininha obedeceu, a cabeça meio abaixada, e o Lourenço se preparou para ouvir o que ele tinha certeza que ela ia falar, mas a dor no peito foi muito, muito maior do que ele poderia imaginar. — Meu nome é Alícia, e eu tenho isso. — Ela levantou a mão mostrando quatro dedinhos. — Mas eu já tenho quase isso, né, mamãe? — Ela levantou outro dedinho, olhando para a Bia.

— Ainda vai demorar um pouquinho — ela respondeu com uma risada.

O Lourenço continuou paralisado, sem reação e se obrigou a respirar, o ar entrando grosso e pesado nos pulmões. Nas poucas vezes em que tinha ousado imaginar uma filha sua com a Bia, ele tinha visto uma miniatura dela, mas a Alícia era toda ele. Na verdade, ela estava a cara da Mariana criança, numa foto de carnaval, vestida de índia, que ficava num porta-retratos no quarto dela.

Como? Quando? Milhões de perguntas passaram pela sua cabeça, mas nada daquilo interessava. O importante era que eles tinham uma filha e que o Lourenço não só tinha feito a Bia passar por uma situação horrível. Ele a tinha feito passar por tudo aquilo grávida. Dele.

— Ele não fala, mamãe? — a vozinha fina perguntou.

— Ele fala. — A Bia cutucou a canela do Lourenço com o pé. — Ele tá surpreso. Ele não sabia que ia conhecer uma princesa tão linda.

— Não. — Ele se recuperou e olhou nos olhos exatamente iguais aos seus. — Uma princesa linda e com o nome mais lindo de todos.

A Alícia deu uma gargalhada, e se o Lourenço tinha achado que a risada da Bia era a mais perfeita do mundo, era porque ele ainda não tinha escutado a da sua filha.

Sua filha!

— A mamãe diz isso, né, mamãe? Que eu tenho o nome mais lindo de todos?

A Bia confirmou com um sorriso, e os olhos de pai e mãe se encontram cúmplices por cima da cabecinha dela. Não deve ter sido fácil para a Bia contar para os pais que estava grávida de um cara preso por tráfico de drogas. Mais difícil ainda deve ter sido carregar um bebê sem ter o apoio da pessoa responsável por tê-la colocado naquela situação. Mesmo com o ódio e a decepção que ela deve ter sentido por ele, a Bia tinha achado em seu coração a gentileza de colocar o nome da sua mãe na filha dos dois.

O Lourenço podia passar o resto da vida tentando, mas nunca poderia retribuir aquele gesto tão generoso.

— Mas agora, ela também gosta de Amanda — a Alícia continuou, parecendo decepcionada. — Amanda é a minha irmãzinha, que tá na barriga dela.

— Amanda é um nome muito bonito, mas eu acho que Alícia ainda ganha. — Ele não tinha experiência com crianças, mas deve ter dito a coisa certa, porque ganhou outra risada linda.

— Ela já vai ter nascido no meu aniversário, e a mamãe disse que eu tenho que convidar ela, mesmo que ela vai ser só um bebezinho que não vai nem poder brincar comigo. O meu aniversário vai ser de Frozen, e eu vou ser a Elsa. O papai disse que eu tinha que ser a Ana, mas a mamãe disse que não tem problema que o meu cabelo não é amarelo, eu posso ser a Elsa de cabelo preto — ela disparou, entusiasmada, e mesmo sem entender uma palavra do que ela dizia, o Lourenço tentou acompanhar o raciocínio, ainda mais quando no meio do discurso, ela desceu do colo da Bia e veio se sentar no seu colo. Com as mãos em volta da cintura da filha pela primeira vez, ele desejou mais que qualquer outra coisa, poder fazer aquilo todo dia, o resto da vida. Ela continuou. — Se você quiser, você pode vir na minha festa e trazer o seu filhinho ou a sua filhinha também, não pode, mamãe?

O Lourenço perdeu o fôlego. Como uma menina tão pequenininha era capaz de lhe dar uma pancada tão forte?

— Claro que pode — a Bia confirmou.

O Lourenço não se atreveria, claro. Aquela prima dela ia assassiná-lo assim que ele desse as caras, mas ele viu no olhar da Bia que ela estava disposta a enfrentar a família toda por ele, se fosse preciso. Ele nunca conseguiu entender o que ela via nele que inspirava aquela coragem toda.

— Você quer me ver fazer bolinha de sabão? — A Alícia quis a atenção de volta nela.

— Você se importa? — a Bia perguntou. — Eu sei que você tem que ir.

— Eu posso ficar mais um pouco. — Ele ficaria para sempre, se pudesse.

A Alícia pulou do seu colo e correu para uma porta.

— Alícia! Aí não, esqueceu? — a Bia chamou e a filha voltou rindo com a mão na cabeça como se tivesse cometido o erro mais bobo do mundo. — A piscina tá em reforma, a gente vai ter que ficar ali na frente.

Eles refizeram o caminho até a porta da frente, agora com uma Alícia pulando em volta deles. Quando se viu livre, ela correu até um banco e pegou uma garrafinha. O Lourenço foi com ela, incapaz de ver outra coisa no mundo.

— Você tem que fazer assim — sua filha ensinou, soprando a varinha e fazendo várias bolinhas de sabão. Ela deu para ele tentar. — Mas não pode encostar na boca. Uma vez eu esqueci e fiquei com um gosto ruim até de noite.

O Lourenço soprou, e ela saiu correndo, tentando estourar as bolinhas. Quando se cansou, ela subiu numa bicicletinha e começou a dar voltas na rampa da garagem.

— Ela não para nunca? — O Lourenço acompanhou com o olhar, a filha pedalando.

— Graças a Deus, de vez em quando ela dorme. — A Bia deu uma gargalhada.

Impossível saber qual a melhor. As duas mulheres da sua vida tinham o riso igualmente perfeito.

— Ela não vai cair? — Ele deu um passo à frente, com o coração na boca, ao ver a Alícia indo perigosamente perto da rua antes de voltar.

— Ela tá acostumada — a Bia o tranquilizou, mas ela também estava com os olhos grudados na filha.

— Ela é incrível. — Ele olhou para a Bia, sua garganta apertada com um nó. Ele tinha perdido tanto, o primeiro sorriso, engatinhar, andar, o primeiro aniversário... tantos momentos irrecuperáveis. — Bia...

A Bia o cortou, com um gesto firme e decidido da mão.

— Lourenço, a culpa foi minha. Eu tomava meu anticoncepcional todo dia de manhã. Naquele final de semana da sua surra foi tanta confusão, que eu esqueci. Eu tinha um alarme no meu celular pra me lembrar, mas...

— O Dezinho levou sua bolsa — o Lourenço terminou por ela.

— Onde minha cartela de pílula também estava. Eu me lembrei no dia seguinte, e voltei a tomar. Eu sei que eu devia ter te contado, mas foi um dia só e eu achei que não ia ter problema. E você já estava passando por tanta dificuldade, eu não quis acrescentar mais uma enquanto eu não tivesse certeza.

— Eu te entendo, mas Bia? Quando você fala culpa, parece que alguém fez alguma coisa errada, e não tem nada de errado ali. — O Lourenço apontou a Alícia dando voltas na garagem, rindo e fugindo de um perseguidor imaginário. — Mas se você quer falar de responsabilidade, então eu tenho que assumir a minha parte. Ninguém teria roubado a sua bolsa, se não fosse por minha causa.

— Não adianta discutir quem fez o quê, mas eu vou entender se for demais pra você. Um dos motivos pra eu querer que você conhecesse a Alícia, é porque ela é sua. Sua filha. E ninguém vai te tirar esse direito, nunca. — Ela fez uma pausa, mordendo os lábios e deu uma olhada de lado para ele, antes de continuar. — Mas se você me disser que prefere ir embora, recomeçar a sua vida do zero, esquecer que ela existe, eu dou ao Diego permissão pra entrar com o processo de adoção que ele tanto quer e ela nunca vai ficar sabendo sobre você.

— Claro que não! Ela é minha. Minha! — Ele bateu a mão no peito, feroz, pronto para defender seu direito de qualquer um que tivesse a ousadia de dizer o contrário. O playboy podia ameaçar o quanto quisesse, mas a Alícia era sua! — Ela chama ele de pai. — Ele não conseguiu evitar que soasse como uma acusação.

— Eu não posso negar isso pra nenhum dos dois. Ele é muito bom pra ela... Um dia você me acusou de viver num castelo cor de rosa, e você estava certo. — A Bia levantou a mão, interrompendo seu protesto. — Sair do castelo e cair de cara no mundo real dói muito. Eu não quero que as minhas filhas passem por isso. Eu não minto pra Alícia. A certidão de nascimento dela diz 'pai desconhecido'. Outro dia, ela me perguntou porque o cabelo dela não era amarelo igual ao do pai dela, e eu respondi que era porque o cabelo dela era preto igual ao do pai dela. Ela me olhou por um segundo e voltou a brincar com as bonecas. Ela é pequenininha, mas, aos poucos, essas coisinhas vão começar a fazer sentido, e quando ela estiver pronta, ela vai saber de tudo. Tudo.

O Lourenço concordou com a cabeça, sem fala. Não ia ser fácil para a filha saber como o pai era um bosta, mas o passado estava ali, irremediável, e a única coisa que ele esperava, era que a filha fosse tão generosa quanto a mãe.

— E esse é o outro motivo pra eu ter te mostrado a Alícia hoje. — A Bia segurou a mão dele, com força. — Você tá tendo uma terceira chance. Você sabe como isso é raro? Não desperdiça, Lourenço. O que você fez, tá feito, mas você pode controlar o que você vai fazer daqui em diante. Se você tiver a tentação de seguir o caminho errado outra vez, pensa nela. Pensa em como ela vai reagir quando souber.

Não que ele tivesse a intenção de voltar a fazer mais besteiras na vida, mas o pedido da Bia fortaleceu sua resolução.

— Eu não vou te decepcionar de novo, Bia. Eu vou ser um cara que a minha filha, e a mãe dela também, não tenham vergonha de apresentar pra ninguém.

— Eu nunca tive vergonha de você, Lourenço. — O olhar dela se embaçou ao receber a acusação injusta.

— Foi modo de falar. — Ele se desculpou com o olhar. — Mas, Bia, eu já perdi tanto...

— Eu sei que eu não vou te pedir uma coisa fácil. — Ela apertou a mão dele que ela não tinha soltado. — Se você quiser sair daqui agora e procurar um advogado pra colocar seu nome na certidão dela, eu vou fazer tudo o que estiver ao meu alcance pra te ajudar, mas eu queria que você pensasse um pouco, antes. O Diego tá fazendo um ótimo trabalho de me ajudar a segurar a rede de proteção da Alícia. O dia que você me disser que você tá pronto, ele vai te dar o lugar dele ou, pelo menos, chegar pro lado pra te deixar ajudar, mas eu preciso que você tenha certeza que você vai segurar forte, que não vai deixar ela cair. Você me entende?

Como não entender?

Ele tinha acabado de sair da cadeia. O tio prometeu ajudá-lo, mas ele não sabia se ia ganhar um trabalho de faxineiro só para não morrer de fome, ou se receberia mais do que merecia da sua própria família também. Primeiro ele precisava se firmar nas suas próprias pernas e só depois oferecer sua ajuda para apoiar e proteger a Alícia. Não seria correto entrar na vida dela e bagunçar uma cabecinha frágil com um futuro que ele não podia garantir nem para si mesmo.

A decisão veio clara e fácil enquanto ele observava a menininha de vestido cor de rosa e sandália branca que tinha descido da bicicletinha e estava perto de um arbusto, cheirando as flores.

— Tudo bem, Bia, eu vou fazer o que você tá me pedindo. Eu vou me preparar.

— Eu sempre soube que você ia ser um ótimo pai.

O Lourenço deu um passo para trás. A última coisa que ele esperava dela, era deboche, mas ela o olhava orgulhosa, mais uma vez enxergando nele algo que ninguém mais enxergava.

— Não tem nem uma hora que você descobriu que tem uma filha e já parou de pensar no que você quer fazer, pra pensar no que é melhor pra ela.

— É o que você faz? Pensa no que é melhor pra ela, sem pensar em você?

— Desde o primeiro segundo que eu tive certeza que ela estava dentro de mim.

Ela lhe deu um olhar tão resignado, tão triste, que se ela não estivesse grávida, ele teria colocado as duas em cima da moto e caído no mundo. Como ele não podia mais fazer o que queria, se contentou com um abraço onde tentou mostrar a ela toda a sua saudade e pesar por ter sido um imbecil que não soube aproveitar a melhor chance que a vida tinha lhe dado.

— Ele é bom pra você também? — ele sussurrou no ouvido dela.

— Ele é — ela respondeu, um engasgo na voz que poderia ter sido imperceptível para outro, mas que o Lourenço ouviu muito bem.

Ele apertou o abraço, recebendo o mesmo de volta e, de repente, sentiu um movimento estranho. A Bia se soltou, rindo da sua cara de espanto.

— Você apertou ela. — Ela fez carinho na própria barriga. — Ela não gostou.

— Desculpa, bebezinha, mas eu não sei nada sobre...

— Alícia! — O grito da Bia o assustou, e ele se virou rápido, pronto para ir salvar sua filha do que quer que estivesse acontecendo.

Ela estava com a mãozinha estendida, quase tocando o cano de descarga da moto e, felizmente, parou como uma estátua com o grito da mãe. Era verdade então, o que se dizia sobre não poder se piscar um olho que a criança aprontava uma.

Eles se aproximaram e o coração do Lourenço se apertou ao ver os olhinhos arregalados cheios de lágrimas.

— O que a mamãe te ensinou? — A Bia se ajoelhou e segurou a mão da Alícia, falando com carinho. — Se você quiser mexer numa coisa que você não conhece, tem que chamar um adulto.

— Desculpa, mamãe. Eu não ia quebrar, eu só queria ver.

— Eu sei, meu amor, mas a moto é grande, se cair em você, machuca muito. E se estiver quente, faz dodói nessa mãozinha linda. — A Bia deu um beijinho na palma da mão dela.

O Lourenço sorriu, o peito sendo tomado por um calor bom e reconfortante. Se ele não podia estar com a filha, ele não precisava se preocupar, ela tinha a melhor mãe do mundo cuidando dela.

— Você quer sentar na moto? — ele ofereceu.

A Alícia deu uma olhadinha para a Bia, e ao receber o aceno de permissão, estendeu os bracinhos para ele. O Lourenço ajudou a Bia a se levantar e enfiou o capacete no braço, antes de pegar a menina. Ele sentou e colocou a filha na sua frente, segurando firme quando ela tentou alcançar o guidom.

— Mamãe, quando eu crescer eu quero um carro assim.

Ele não conseguiu segurar a gargalhada. A primeira que ele dava em cinco longos anos.

— Não tem como negar que ela é sua filha, Biatriz com 'i'.

— A gente faz o que pode — ela respondeu com as mesmas palavras que ele tinha dito ao chegar, enxugando uma lágrima.

O Lourenço levantou a filha e a colocou de pé no tanque da moto virada para ele.

— Quando você for maior, eu vou comprar um capacete rosa cheio de florzinhas roxas pra você e te levar pra passear comigo. Você quer?

— Eu posso, mamãe?

— Quando você for maior, pode. Agora dá um abraço bem apertado no Lourenço que ele tem que ir embora.

A Alícia apertou seu pescoço com os bracinhos fininhos enquanto ele tentava não esmagar a filha no seu abraço, respirando fundo e guardando na memória o perfume delicado, talco e algodão-doce, para se lembrar nos momentos em que a saudade ficasse insuportável.

— Tchau. — Ela deu um beijinho no rosto dele.

— Tchau, minha linda. — Ele retribuiu o beijo, os olhos ardendo. Como era possível se importar tanto uma pessoa menos de uma hora depois de conhecê-la? Ele não devia ter se espantado, não era a primeira vez que acontecia com ele. — Cuida bem da sua mamãe e da sua irmãzinha, tá?

— Tá — ela respondeu, indo para o colo da Bia.

— Escuta. — O Lourenço quis pegar a mão da Bia, mas ela estava segurando a Alícia apoiada no quadril, o que não devia ser fácil com o barrigão, e ele se contentou em apoiar sua mão no braço dela, suavemente. — Quem sou eu pra te fazer exigências, Bia, mas eu só vou embora tranquilo se você me fizer uma promessa. Quando eu chegar em Porto Alegre, eu vou te mandar um contato. Um telefone ou um endereço. Se a Alícia e você precisarem de qualquer coisa, me procura? Mesmo se for amanhã, eu dou um jeito, mas eu não vou deixar vocês na mão, por favor?

— Eu prometo, mas vai tranquilo. A Alícia tá muito bem cuidada. Essa menina fala um ai aqui e a minha mãe escuta lá da casa dela e vem correndo. Sem contar o resto da família babona.

— Obrigado. Por tudo.

Ele colocou o capacete antes que ela visse nos seus olhos cheios de lágrimas como era difícil deixar as duas para trás. Ele tinha se preparado para dizer adeus para a Bia, não para a dupla crueldade de ter que se despedir de mãe e filha.

Quando o Lourenço deu partida na moto, a Alícia tampou os ouvidos, daquele jeito exagerado que toda criança tem, e a Bia chegou para trás. Na saída da garagem, ele deu uma olhadinha por cima do ombro e retribuiu ao aceno delas.

A história estava terminando como tinha que terminar, a princesa com o príncipe e a família perfeita vivendo no castelo encantado, enquanto o vilão ia embora sozinho e amargurado por saber que suas maldades, no final, só tinham prejudicado a ele mesmo.

E todos foram felizes para sempre?


***

Nota da Autora:

Eu sei que esse não é o final que vocês queriam...

Não pensem que eu não estou ouvindo vocês me xingando, porque eu estou, kkkk.

Quando eu tive a ideia de escrever "Mau Amor", eu queria uma história "pé no chão". Não que eu também não goste de ler sobre CEO's bilionários, mas eu queria uma história que pudesse acontecer com qualquer uma de nós, com personagens não tão perfeitinhos, que fizessem as mesmas merdas que nós também, de vez em quando, fazemos, e que, como na vida real, sofressem as consequências dos seus erros.

Ver vocês se apaixonarem pela Bia e pelo Lourenço nos comentários que me deixavam me fez pensar muito. Quem também é autor sabe que o que eu vou falar agora é verdade: às vezes somos nós que guiamos uma história, mas também acontece de uma história nos fazer de refém e exigir ser contada da maneira que precisa ser contada. Várias vezes cogitei mudar o final, mas nada do que eu imaginava se encaixava bem. Ficava falso, forçado.

Daí, num comentário, minha leitora LolaNigth me disse que "super apoiava eu continuar escrevendo para sempre", e me veio a solução. Apesar de "Mau Amor" ter sido criado inicialmente para ser um livro único, por que não dar uma segunda chance para o nosso querido casal numa continuação?

"Bem te Quero" já está sendo postada, então, quem quiser mais da Bia e do Lourenço, rever o Fred e conhecer melhor a Alícia e a Amanda, procurem pela história no meu perfil.

De qualquer maneira foi um prazer ter vocês comigo nessa jornada. Obrigada por tirar um pouquinho do seu tempo pra ler meu livro. Amei todos os comentários e espero ver vocês em breve.

Beijos, Luciana.



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