Capítulo 9
O Diego chegou na casa da Bia à tardinha.
Depois da noite movimentada e da exuberância da Vivi que só faltou fazer malabarismo para distrai-la, a Bia tinha voltado para casa exausta, mas nem cogitou ir se deitar. Depois de colocar uma roupa confortável, ela foi direto para o cavalete no seu cantinho preferido do quarto. Ela precisava pensar e era com o cheiro da tinta no nariz e a mão cheia de respingos coloridos que a cabeça funcionava melhor.
A Bia descartou a tela começada num outro dia, num outro estado de espírito, e pegou uma em branco.
Virgem, ela fez uma careta.
Enquanto misturava as cores e inventava tonalidades novas, ela foi separando e organizando os sentimentos confusos dentro de si mesma. Ela jogou fora a frustração de não poder voltar no tempo e fazer tudo diferente, guardou num cantinho a decepção de não ter tido a primeira noite dos seus sonhos e aprendeu a lição, a vida era uma filha da puta que fazia as coisas do jeito dela sem se importar com planos construídos com cuidado.
Esquecer a culpa por ter traído o Diego não seria fácil. Ela ainda não se lembrava do que tinha acontecido entre eles na noite anterior, mas ao checar o celular, doeu ver o descaso na última mensagem que ele tinha enviado. E o namorado não ter se preocupado com uma ligação para saber como ela estava naquele dia era a prova maior que o relacionamento não tinha mais conserto.
Quando a Bia mandou uma mensagem pedindo para ele passar na casa dela mais tarde, ele tinha respondido com um simples, 'lá pelas seis'. A Vivi tentou aliviar sua culpa dizendo que o Diego também devia ter passado a noite com outra, mas não era como as coisas funcionavam para a Bia. Era com a sua consciência que ela tinha que lidar, e saber que tinha errado atrapalharia seu sono por muito tempo.
A Bia até se permitiu imaginar um bebezinho, de sexo indefinido, que fosse, ao mesmo tempo, parecido com ela e o Lourenço. Ela não estava pronta para ser mãe — no fundo, quem estava? — Mas contar com a ajuda dele continuava fora dos seus planos. Os pais dela ficariam desapontados, o que não impediria que eles lhe dessem seu apoio incondicional, e a Bia aprenderia a ser mãe e pai de um filho que mudaria tudo, mas que ela amaria com todo o coração.
Era exatamente nesse ponto que se encontrava o problema maior, o que estava fazendo a Bia usar tons escuros e pinceladas fortes: o fato de que ela nunca mais veria o Lourenço. Era errado e impossível, mas era verdade, ele tinha uma força, um magnetismo que a atraia demais. Toda vez que se lembrava dos olhos intensos queimando enquanto tirava sua calcinha e do abraço forte enquanto ela chorava, a Bia se repetia o mesmo sermão, ela foi só mais uma, não tinha sido especial e ele ia levar várias outras para casa e fazer a mesma coisa.
Não adiantava e ela se pegava pensando na teoria da Vivi. Se a maior merda da sua vida já estava feita, voltar ao bar em busca do Lourenço não seria uma tragédia muito grande, seria?
— Eu adoro como você fica concentrada no seu quadro e esquece tudo. — O Diego a abraçou por trás e a beijou na nuca.
A Bia se assustou e o pincel caiu no chão. Ela usou a desculpa de ter que pegá-lo e se afastou do namorado, mas não se preocupou em limpar o tapete espirrado de tinta. A mãe dela tinha aprendido que era mais fácil trocar um tapete por ano, do que o piso de madeira e delimitou o ateliê da filha a um quadrado perto da janela.
— Oi. — Foi só o que ela foi capaz de dizer, e foi até o banheiro limpar as mãos, com o Diego atrás.
Sob o peso do olhar atento e do silêncio desconfortável, ela usou o removedor de tinta em cada cantinho, lavou e passou hidratante. Quando ela finalmente terminou, ele a pegou pela cintura e a colocou sentada no balcão, ao lado da pia.
— Você gostou do desfile? — Ele aceitou a mão da Bia no peito dele, mantendo-o afastado, como se fosse normal não receber um beijo depois de terem passado o fim de semana praticamente sem se falarem.
— Você nasceu pra isso — ela respondeu com sinceridade, a última fala do papel de namorada compreensiva.
A Bia se sentia distante e, ao mesmo tempo em que queria se jogar nos braços dele e esquecer os últimos acontecimentos ruins, ela também queria terminar logo com tudo e não precisar vê-lo mais.
— Você tá chateada, por causa de ontem — ele acusou, e a resposta da Bia foi desviar o olhar. — Você tá esquecendo que eu estava trabalhando, não dava pra ficar te dando atenção. Eu fiz uns contatos ótimos. A Vera me apresentou um cara que pode ser meu empresário. Ele disse que me arruma até um teste pra televisão, se eu quiser.
— Eu fico feliz por você, mas não muda você ter me deixado ir embora sozinha e passando mal.
— Você não estava passando mal. Você acha que eu não te vi bebendo?
A Bia o empurrou com força e desceu do balcão.
— Eu não sei se é pior você insinuar que eu fiz pra chamar sua atenção ou você saber que eu estava bêbada e ter me deixado sozinha mesmo assim. — Ela andou até o meio do quarto e se virou para ele, muito mais calma do que deveria estar depois de ouvir a confissão que, no fim, só reforçava sua resolução. — De qualquer maneira, fica tudo mais fácil. É melhor a gente terminar por aqui.
— Isso é muita injustiça, Bia. Eu sei que o tempo tá escasso, mas é tudo novo pra mim. Eu ainda tô aprendendo a me organizar, você não pode ser tão radical. — Ele a segurou pelos ombros. — Esse cara vai me ajudar a selecionar os trabalhos, as coisas vão melhorar. Escuta? Por que a gente não viaja no fim de semana que vem? Eu e você, dois dias inteiros. O que você acha?
— Que transar não vai resolver nossos problemas. — Ela se soltou. — Como vai ser especial com um cara que não se importou comigo bêbada atrás de um volante?
O Diego teve a decência de ficar com o rosto avermelhado.
— Mas não aconteceu nada. Você tá bem.
— Porque eu achei alguém pra me ajudar. — O Lourenço não era nenhum santo, mas entre perder a virgindade ou causar a morte de alguém, a Bia preferia a primeira opção. — Diego, a gente não tá terminando por causa de ontem, o nosso namoro já estava acabado há muito tempo, só faltava alguém ter coragem de dizer.
— É isso mesmo que você quer? — ele balançou a cabeça, o olhar incrédulo e machucado, e por pouco a Bia não desistiu, mas tinha aquele negócio de ela ter transado com outro cara.
— É — ela afirmou com mais segurança que sentia.
O Diego a encarou por alguns segundos, até parecer convencido de que não adiantava argumentar.
— Beleza. — Ele virou as costas e foi embora.
A Bia soltou a respiração que nem tinha percebido que tinha prendido, mas não voltou para o cavalete, o que ela precisava era da cama para chorar. Ela se abraçou com as almofadas e deixou as lágrimas caírem. Não pelo Diego que tinha acabado de sair, mas por aquele que ela tinha conhecido no churrasco e que foi o namorado perfeito nos primeiros meses do relacionamento.
— Posso deitar com você? — A voz suave da mãe viajou pela penumbra da noite que tinha chegado de mansinho, e quando ela se ajeitou do lado da filha, sem esperar resposta, a Bia trocou as almofadas pelo colo familiar e confortável. — O Diego disse que vocês terminaram?
A Bia chorou mais. Dona Heloísa ficou fazendo carinho nos cabelos dela, esperando com paciência que ela se acalmasse.
— O que aconteceu?
— Não aconteceu nada, ele só tá mais preocupado com o trabalho do que comigo.
— Minha filha, você não pode esquecer que o Diego não tem a mesma sorte que você, ele não trabalha porque quer. Ele precisa.
A mãe defender o Diego não era surpreendente. Ela era uma pessoa justa que sempre tentava ver o lado certo da situação. Qual seria o conselho dela se a Bia se abrisse da mesma maneira que tinha feito mais cedo com a Vivi?
A Bia ia continuar sem saber, porque ela não podia fazer aquilo, pelo mesmo motivo que não tinha sido completamente honesta com o Diego. Ela não queria ver a reprovação nos olhos deles. Ela não queria deixar de ser a boa menina, aquela com pecados bobos como comer demais, ou contar uma mentirinha sem consequência uma vez ou outra.
Se ela estivesse grávida, aquilo mudaria, mas como tinha prometido à Vivi, ela não ia pensar naquela possibilidade por enquanto.
— Não é só isso, tem outras coisas também — a Bia desconversou.
— Tudo bem, você não precisa falar se não quiser, mas lembra que eu tô aqui pra você, tá? — A mãe aceitou a evasiva e não pressionou. — Eu sei do que você precisa. De uma pizza gigante, só de queijo.
— Com borda de catupiri? — A Bia sorriu entre as lágrimas.
— Com borda de catupiri. — A mãe deu um beijo na cabeça da filha e se levantou. — Eu te chamo quando chegar.
A Bia secou os olhos, acompanhando a mulher admirável saindo do quarto. Talvez, ser mãe não fosse o fim do mundo. Ela tinha um ótimo exemplo para seguir.
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Os dias seguintes não foram fáceis. Pela primeira vez a Bia sofria, de verdade, a perda de um namorado. A única razão que a impedia de voltar atrás e ligar para o Diego era saber que ela teria que confessar sobre a noite com o Lourenço. Ele não ia aceitar, e eles iam continuar separados do mesmo jeito. Um dia depois do outro, uma coisa de cada vez, e a Bia seguia em frente, triste, mas conformada.
A Vivi levou três dias para convencer a Bia a mudar seu status no Facebook para solteira. Com a prima do lado dando apoio, ela aproveitou e excluiu todas as fotos do Diego. A surpresa foi a solicitação de amizade do Lourenço, que a Bia recusou e bloqueou para não sofrer a tentação de aceitar mais tarde, quando a Vivi não estivesse olhando para ela de cara feia.
Ela respirou bem mais tranquila ao ter a confirmação de que não estava grávida. E alguns dias depois, o resultado do exame de sangue, negativo para tudo, foi o que faltava para que a Bia começasse a deixar todos os acontecimentos daquela noite para trás.
A Vivi cumpriu a promessa e as duas passaram a noite seguinte dançando sob a supervisão do Marcelo. A Vivi bebeu todas, a Bia virou um shot de tequila, e só.
Chega de fazer bobagem!
Com a faculdade durante a semana, e os fins de semana movimentados, aos poucos, a vida da Bia foi reencontrando um novo normal. Depois que o mundo descobriu que ela estava solteira, os convites começaram a aparecer e ela abraçou a distração com entusiasmo. Ela começou a sair com as colegas da faculdade, e a Vivi e o Marcelo sempre apareciam com algum programa.
O caminho tranquilo que a Bia seguia, fez uma curva inesperada num sábado, na festa de aniversário de um amigo de faculdade. Ela estava distraída e precisou olhar duas vezes para ter certeza de que estava enxergando certo quando o Diego chegou, acompanhado da Simone.
Vê-lo com outra, pouco mais de um mês depois do fim do namoro, partiu seu coração, mas ele era livre e a Bia disfarçou o choque, foi superior e os cumprimentou com naturalidade. Quando os dois começaram a se agarrar na frente de todo mundo, foi mais que ela podia aguentar. Estava na cara que era provocação. Ela se despediu e foi embora, e dane-se a satisfação que o ex-namorado ia sentir ao ver que tinha conseguido seu objetivo.
A Bia só percebeu aonde estava indo, ao se ver em Copacabana.
Ela encostou o carro numa vaga qualquer, pegou o celular e abriu a foto que tinha tirado com o Lourenço e os seguranças. Toda vez que ela pensava no garçom, fazia a mesma coisa, o rosto dele estava se desfazendo na sua memória e ela precisava da foto para se lembrar. Como alguém que fica arrancando a casquinha do machucado mesmo sabendo que adiava a cicatrização, a Bia não queria deixar que ele se apagasse de suas recordações. E isso tinha piorado depois de um flash do Lourenço entregando um isopor de comida para um morador de rua.
Alguém que se preocupava em alimentar um morador de rua era melhor que muitas pessoas que a Bia conhecia, e talvez o Lourenço tivesse boas intenções ao levá-la para casa com ele? Ele até podia não ser totalmente inocente, mas a Bia precisava assumir sua parcela de culpa, ainda mais se ela tinha tirado a blusa e se oferecido para ele, como ele tinha alegado. Só um santo para resistir a um convite daqueles e uma ofensa à Bia se ele tivesse conseguido.
A lógica feminina é mesmo muito complexa, ela riu de si mesma.
Ela fechou a foto e ligou para a Vivi.
— Eu preciso que você me ajude a não fazer uma bobagem — a Bia pediu assim que a prima atendeu o telefone.
— Uma bobagem com o idiota que não te valorizou enquanto teve a chance ou com o babaca que se aproveitou de você, na primeira que teve?
A vantagem de se ter alguém que conhecia você melhor do que você mesma, era que economizava tempo e explicações.
— Obrigada, já mudei de ideia.
— Onde você tá?
— Copacabana.
— A gente tá no Leblon. Tô te passando o endereço, vem pra cá.
A Bia ligou o carro e deu meia volta, para o Leblon e para longe da tentação.
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A Bia levantou tarde no domingo. Ela tinha ficado até de madrugada com a Vivi, o Marcelo e uns amigos deles. Um dos rapazes tinha passado a noite paquerando a Bia, e ela aproveitou o clima descontraído para não pensar num certo moreno que insistia em aparecer do nada nos seus pensamentos. Quando o amigo do Marcelo pediu seu telefone, ela desconversou. Uma paquera na mesa de um bar era tudo que ela podia, por enquanto.
A mãe veio lhe fazer companhia na mesa do café da manhã.
— Você quer uma vitamina de banana?
— Não precisa, mãe, obrigada. — A Bia continuou passando manteiga no pão.
— Você precisa comer melhor, tá muito magra.
— E desde quando existe 'muito magra'?
Dona Heloísa sorriu e não começou a discussão que elas sempre tinham sobre alimentação com qualidade.
— De qualquer maneira, você anda muito triste, mas eu tenho a impressão que isso acaba hoje. — O tom de voz de quem estava aprontando alguma fez um arrepio descer pela coluna da Bia.
— O que você fez?
— Não demora pra se arrumar, o Diego vem almoçar com a gente.
A Bia se engasgou com o pão e a mãe veio bater nas suas costas.
— Você não tá falando sério, tá? — a Bia perguntou quando se recuperou o suficiente para falar.
— Eu liguei e convidei. Um mês de castigo tá de bom tamanho, você não acha?
— E ele vem sozinho ou vai trazer a menina que estava se esfregando nele ontem à noite? — A Bia ficou de pé num pulo e só não gritou porque nunca tinha feito aquilo com a mãe.
— Eu não sabia... — A mãe levou a mão ao peito, o rosto cheio de remorso.
— Você ia saber se tivesse me perguntado! Ele vai pensar que eu fiquei com ciúmes e pedi pra você armar esse almoço. — Um suspiro frustrado escapou dos seus lábios. Ela tinha ficado incomodada, mas era mais orgulho ferido que ciúmes, e de jeito nenhum motivo justificável para reatar o namoro.
— Eu invento uma desculpa e desconvido — a mãe ofereceu, o celular na mão para desfazer a besteira.
— Não! Vai ser pior. — A Bia a impediu e voltou para o quarto com a cabeça trabalhando a mil em busca de uma saída para aquela furada.
Só tinha um jeito de não parecer que ela tinha armado o almoço, ela não podia estar em casa quando o Diego chegasse.
A Bia tomou uma chuveirada rápida e colocou seu vestido preferido, comprido e florido, que a fazia parecer mais alta e mais magra. Num impulso, pegou a pintura terminada no cavalete.
— Você vai sair? — A mãe se aproximou ao vê-la pegando a chave do carro na mesinha perto da porta. — E o que eu faço com o Diego?
— Você tá tendo tantas ideias inspiradas hoje, eu tenho certeza que vai pensar em alguma coisa. — A Bia se arrependeu do tom debochado quando viu a expressão magoada no rosto da mãe. De um jeito todo errado, ela só tinha tentado ajudar. — Desculpa, mãe, mas eu não posso ficar.
— Tudo bem, eu me viro. E onde você tá indo com esse quadro?
— Eu preciso agradecer a uma pessoa, por um favor.
— E você vai dar um dos seus quadros pra ela? — ela perguntou com os olhos arregalados.
A Bia entendia o espanto da mãe, ela nunca dava seus quadros para ninguém. Ela só tinha se separado de duas de suas pinturas até aquele dia, uma foi presente para os pais num dos aniversários de casamento e a outra ela deu para a Vivi, que pediu tanto, que venceu a Bia pelo cansaço. Por exigência da Bia, os quadros ficavam pendurados nos respectivos quartos de dormir de cada um. As pinturas eram seus horcruxes, cada uma tinha um pedacinho da sua alma, e a Bia se incomodaria profundamente de vê-las expostas à análise de qualquer um.
— Eu vou dar um dos meus quadros pra ele — a Bia corrigiu, um sorriso escapando contra a sua vontade.
Ela não podia ficar em casa e tinha um lugar que lhe chamava há vários dias, como o canto de uma sereia, e ela estava cansada de resistir.
A Bia queria ver o Lourenço.
Depois de pensar e repensar em como o Diego não tinha feito o mínimo que um namorado faz por uma namorada bêbada em comparação com toda a preocupação que o Lourenço teve em ajudar uma desconhecida, a maneira como a Bia tinha ido embora na manhã seguinte a estava atormentando. O mínimo que o Lourenço merecia era um agradecimento. Ela não queria pensar no porquê de estar levando o quadro que tinha pintado depois da noite que eles passaram juntos. Talvez fosse porque ele não a conhecia bem e ia achar que era apenas um quadro, talvez fosse porque ela queria que ele tivesse um pedacinho da sua alma.
O rosto da mãe da Bia se iluminou.
— Ele deve ser muito especial. Quem sabe da próxima vez, ele não vem almoçar?
— Quem sabe? — A Bia piscou o olho e saiu antes que mudasse de ideia.
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