Capítulo 7

— Bia, acorda.

Ela se espreguiçou. O corpo dolorido da maneira mais deliciosa possível.

Eu devo ter dançado a noite inteira.

E se ela estava na casa do Diego, significava que ela não teve condições de voltar para a própria casa. E daí se ela tinha bebido um pouco a mais? Mesmo com o clima meio esquisito entre eles, o Diego não deixaria de cuidar dela direitinho. Ela sorriu e abriu os olhos, o bom dia do namorado na ponta da língua, mas os olhos que a fitavam de volta eram da cor errada.

Com um gritinho e um pulo, a Bia se sentou encolhida contra a cabeceira e segurou a cabeça que deu uma pontada aguda com o movimento súbito. O lençol que a cobria escorregou, e o rapaz nem tentou disfarçar o olhar na direção dos seios expostos. Com o rosto queimando, ela se cobriu outra vez, e...

Droga! O que foi que ela tinha feito?

A camisa não era a única peça de roupa que tinha desaparecido. Com o som do coração disparado retumbando nos ouvidos e o corpo subitamente gelado, ela examinou o quarto estranho.

Onde ela foi parar?

Lembrar passou a ser fundamental, e ela fechou os olhos. Ela tinha assistido ao desfile do Diego, até ali tudo bem. Depois, tudo ficava confuso. Um flash clareou sua memória por um segundo, um rapaz andando ao seu lado pela rua. O mesmo rapaz que a acordou. Respirando fundo, a Bia reabriu os olhos e encontrou o rosto familiar e desconhecido a fitando com pena.

— A gente precisa conversar — ele disse com a voz suave, mas se o objetivo era acalmá-la, não funcionou.

Como não entrar em pânico numa situação daquelas?

Ele precisava ir embora. Fugir. Tentar lembrar do que tinha acontecido e se fosse tão ruim como parecia, esquecer tudo de novo. Parecendo ler seus pensamentos, o rapaz estendeu o braço, entregando sua bolsa.

— Uma coisa de cada vez. Primeiro, você tem que cuidar disso aqui. — Como se só estivesse esperando pela fala dele, uma música abafada começou a escapar de dentro da bolsa. — Seu celular não para de tocar.

A Bia pegou e abriu a bolsa com as mãos trêmulas, já bolando o que dizer para o Diego. Sem outra palavra, o rapaz saiu do quarto e fechou a porta. Pelo menos, ele não era um sem noção completo e parecia estar tão constrangido quanto ela.

Não ver o nome do namorado na tela provocou outro flash, o Diego cercado por estranhos e um copo grande com um líquido transparente na mesa à sua frente. Pelo leve latejar irritante na sua cabeça, água é que não era.

— Bia, o que aconteceu? — A voz apavorada e alta do irmão fez a Bia afastar o celular do ouvido. — Eu te liguei umas trinta vezes e a Vivi também não atende o celular dela. Por que você me ligou de madrugada?

— Calma, Fred. — A Bia colocou no viva voz e tentou soar normal. — Não foi nada. Eu e o Diego discutimos, mas foi bobeira e eu tinha bebido um pouco. Não se preocupa, a Vivi me pegou.

— Eu odeio saber que você precisou de mim e eu não te ajudei. Eu só vi a ligação agora, foi mal.

— Tá tudo bem. — Não estava, mas o irmão ia pirar se a Bia contasse como estava em maus lençóis. Literalmente. — Eu tô na casa da Vivi. Avisa a mamãe?

— Pode deixar.

Eles se despediram e a Bia ligou para a Vivi. O celular dela ainda estava desligado e a Bia enviou uma mensagem.

Bia: Se alguém perguntar, PRINCIPALMENTE O DIEGO, eu dormi na sua casa, entendeu? Me liga. AGORA!

Com sorte, a Vivi leria a mensagem assim que ligasse o celular e seria seu álibi.

A Bia não estava com sorte era naquele momento, porque precisava dar o fora dali e nada das suas roupas. Será que o rapaz tinha feito de propósito, para obrigá-la a andar nua pela casa? Ela levantou e se enrolou no lençol. O coração quase parou ao ver a mancha de sangue na cama. Tanta espera pela pessoa certa, pela hora certa, para quê? Para nem se lembrar da sua primeira vez.

Você é uma idiota, Biatriz! A maior imbecil do mundo!

A merda estava feita e ela ia resolver tudo com maturidade. Uma coisa de cada vez, ele tinha dito. A primeira coisa que ela precisava fazer era recuperar a dignidade e afastar a impressão de que era costume seu andar por aí bêbada transando com qualquer um. Ela saiu do quarto com a cabeça erguida e dois passos depois chegou na sala minúscula, onde encontrou o rapaz esperando por ela.

— Eu não achei minhas roupas — ela disse com toda a compostura que uma mulher nua, enrolada num lençol, pode conseguir.

— Eu coloquei no banheiro, com uma toalha limpa, se você quiser tomar banho.

— Obrigada. — A Bia se virou para a porta que ele tinha apontado. O rapaz tocou seu ombro tão de leve que ela olhou de volta mais para checar se tinha sentido certo do que para ver o que ele queria.

— Enquanto você toma banho, eu vou buscar pão pro café. Você vai ficar trancada...

— Trancada? Trancada, por quê? – A voz dela atingiu um tom super agudo e ela deu um passo na direção provável da porta da rua. Melhor sair daquele apartamento enrolada num lençol, nua e respirando, do que em pedacinhos dentro de um saco de lixo.

— Não é o que você tá pensando. — Ele levantou as duas mãos com as palmas viradas para fora. — É que eu prefiro não deixar a porta destrancada. É perigoso. E eu preciso da chave pra abrir a portaria lá embaixo quando eu voltar.

— Se você esperar dois minutos, eu desço com você. Eu não vou tomar banho. Nem café.

— Olha, você tem todos os motivos pra estar pensando o pior de mim, mas a gente precisa conversar, de boa.  A padaria é aqui pertinho, eu não demoro. Eu volto, a gente troca uma ideia, eu te levo no seu carro e você vai embora. Eu prometo.

O pedido não era absurdo, quer dizer os dois dormiram juntos e uma conversa no dia seguinte devia ser normal? Além do mais, se ele tivesse tendências psicopatas ela já estaria esquartejada há muito tempo. Aproveitando da sua hesitação, ele insistiu.

— É importante, por favor?

— Tudo bem, eu espero — ela concordou. — Mas eu não posso demorar.

Ele soltou um longo suspiro e sorriu. Um sorriso que esquentou a pele da Bia da cabeça aos pés, e pela primeira vez, ela o olhou. Realmente o olhou. Ele era bonito. Intenso. Sexy.

A sensação de ter rido muito com ele na noite anterior a atingiu com força. Será que ele também estava bêbado? Será que ele também era modelo? Ele era totalmente bad boy em contraste com a beleza de príncipe encantado do Diego...

Não, ela não ia pensar no Diego. Ainda. Uma coisa de cada vez.

Depois de reforçar a promessa de ir e voltar rápido, ele saiu e a Bia foi para o banheiro.  A calcinha de renda branca por cima das roupas dobradas trouxe outra lembrança, os olhos do rapaz pegando fogo ao descer aquela mesma calcinha devagar pelas suas pernas, enquanto ela implorava para ele andar mais rápido porque queria as mãos dele de volta onde estavam antes.  Seus joelhos amoleceram a ponto de ela precisar se apoiar na pia.

A imagem refletida no espelho era a mesma que ela costumava ver todos os dias, a menina sensata que não fazia escolhas inconsequentes. Ir para a casa de um desconhecido? Só muito bêbada mesmo. E ela não queria pensar no Diego, mas onde ele esteve que não a impediu de fazer uma besteira tão enorme?

Além da mesma cena de antes, do namorado cercado de pessoas, ela não conseguiu lembrar mais nada. O esforço aumentou o latejar dolorido na sua cabeça, e a Bia desistiu. Melhor deixar as lembranças virem quando elas quisessem. Como se ela tivesse outra escolha.

Ela colocou o lençol em cima da tampa do vaso sanitário e, com as mãos trêmulas, pegou a calcinha, mas desistiu de vesti-la ao ver o sangue escorrido pelas coxas. Uma chuveirada não seria má ideia.

Depois de amarrar o cabelo num coque no alto da cabeça, a Bia abriu a água bem quente, e deixou escorrer pelo corpo dolorido. O pior eram as pontadas entre as pernas, não porque estivesse doendo muito, mas porque eram um lembrete constante de sua própria estupidez.

Podia ter sido pior.

De tantos lugares no Rio de Janeiro onde ela poderia ter ido parar, até que a casa do rapaz não era horrível. Como tudo no apartamento dele, o banheiro era apertadinho, mas limpo e organizado, e a toalha tinha um perfume delicado de amaciante. E não tinha nada de errado em cheirar a toalha antes de usar. Era o que todo mundo faria.

Ao sair do banheiro, a movimentação na cozinha indicou que ele tinha sido mesmo rápido e já estava de volta. A Bia passou pelo quarto e pegou sua bolsa, dando uma checadinha no celular. Nada da Vivi, ainda.

Ela deixou a bolsa no braço do sofá e seguiu o cheirinho gostoso pelo ar.

— Você quer café? — ele ofereceu quando a Bia parou na porta, até porque a cozinha era tão pequena que mal caberia os dois.

— Por favor.

Ele despejou o líquido escuro num copo de vidro com o rótulo mal arrancado e começou a tirar vários saquinhos de papel de dentro de uma sacola de plástico.

— Eu esqueci de perguntar do que você gostava. Eu trouxe pão de sal, pão doce, bolo e pão de queijo. Eu não achei batata frita. — Ele a olhou de lado com um meio sorriso, e um dos mistérios da noite anterior foi esclarecido.

— Você é o garçom. Do bar. Você colocou alguma droga na minha bebida, não foi? Um Boa Noite Cinderela? Meu Deus, você deve fazer isso sempre!

Esquece bolsa, esquece que ela estava descalça, ela precisava fugir dali. Ela virou as costas e correu, mas só conseguiu chegar até a porta antes que ele a alcançasse.

— Eu não coloquei nada na sua bebida. — Ele tentou segurá-la e impedi-la de girar a chave.

— Eu vou na polícia. Você nunca mais vai se aproveitar de  ninguém.

Ameaçar ir na polícia não tinha sido inteligente. Se ele fosse culpado, seria aquele o momento de dar um fim nela, mas como parecia estar acontecendo com frequência nas últimas horas, o cérebro dela não estava funcionando muito bem.

Ele a segurou por trás, prendendo os dois braços dela junto do corpo, e a imprensou contra a porta. A Bia tomou fôlego, enchendo os pulmões de ar. Eles estavam num prédio, alguém ia escutar se ela gritasse, mas os gritos saíram abafados contra a mão que tampou sua boca.

Ela ia morrer! Ela ia desaparecer e ninguém iria saber o que tinha acontecido com ela. Por que ela não tinha contado a verdade para o Fred? O garçom podia fazer o que quisesse, ela estava completamente indefesa, e os olhos dela se encheram de lágrimas.

— Por favor, se acalma. — Quase não dava para acreditar que a voz suave sussurrando no seu ouvido estivesse vindo do mesmo cara que usava de tanta força para dominá-la. — Eu não coloquei nada na sua bebida. Eu vi você no estacionamento tentando entrar no seu carro e eu sabia que você tinha bebido. Eu falei pra você ligar pra alguém, lembra? Eu disse pra você voltar pra festa e ia deixar a chave do seu carro com o segurança até alguém ir te buscar, você não quis. Você tirou uma foto e mandou pra sua amiga. Se eu tivesse colocado alguma parada na sua bebida, eu não ia ter deixado você tirar aquela foto. Nem mandar.

A Bia parou de se debater. Como num filme antigo, veio a imagem desfocada dos seguranças na frente do bar, um deles dizendo que o rapaz ia cuidar dela. E da foto. Ela tinha mesmo tirado uma foto com eles e mandado para a Vivi.

— Você não precisa ficar com medo — ele continuou a falar como se estivesse lidando com um bichinho machucado e assustado. — Eu vou te soltar agora. Por favor, não grita.

A Bia concordou com um aceno de cabeça e o rapaz cumpriu a palavra, se afastando, mas não muito. O calor do corpo dele ainda esquentava suas costas. Ela se apoiou na porta por alguns segundos e limpou o rosto antes de se virar para ele.

— Eu só te faço chorar, né? — Com um sorriso triste, ele passou a mão de leve no rosto dela.

Outro flash. A expressão de surpresa no rosto encoberto pela semiescuridão do quarto. 'Você era virgem?' E os braços apertados em volta dela enquanto ela chorava.

— Eu tô super confusa. — A Bia coçou os olhos como se fosse a mágica que ela precisava para clarear a memória. — Eu não tô lembrando de quase nada que aconteceu ontem.

— Vodca é uma filha da puta desse jeito. — Ele pegou a mão dela e a levou até o sofá. — Espera que eu trago o seu café.

O rapaz voltou com dois copos de café e um prato com algumas fatias de bolo de chocolate e um monte de pão de queijo. Eles comeram num silêncio desconfortável. A Bia sempre ouviu dizer que a manhã seguinte era constrangedora, mas aquilo estava ficando ridículo.

— Eu preciso ir. — Ela começou a se levantar.

— Não. — Ele a segurou pelo ombro e pegou o copo vazio da mão dela. Sem levantar do sofá, se esticou e colocou os copos e o prato no móvel da televisão. Ao se virar para ela de novo, estava esfregando o canto do olho, onde ela notou uma pequena cicatriz.  — Eu nunca fiz isso, eu tô meio sem jeito.

Ele estava. Nervoso e com o rosto coberto por um leve rubor. Se fosse possível pensar que uma cara tão forte e tão... homem, pudesse ser fofo, seria exatamente o que a Bia estaria pensando.

— Bom, eu não posso te ajudar. Como você deve ter percebido, eu nunca estive numa situação dessas, também.

A tentativa de humor para deixá-lo à vontade, foi apreciada com um sorriso rápido, mas não funcionou. Ele continuava tenso.

— Se eu soubesse que você era virgem... Não, isso não é verdade. Eu sabia que você estava bêbada e devia ter sido suficiente. — Ele desviou o olhar para algum ponto atrás dela. — Você disse que não lembra, mas eu tentei resistir, eu juro. Eu mandei você ir se trancar no quarto e você tirou a blusa e...

— Você tá tentando dizer que a culpa é minha? — A Bia chegou para trás, as mãos se fechando em punhos e se sua cota de violência do dia já não tivesse sido preenchida ela poderia ter extravasado a raiva socando o cafajeste.

— Não, não! A culpa é minha, eu sei, mas eu queria não estar me sentindo culpado, porque ontem foi muito, muito bom... Quer dizer, pra mim. Até você chorar. E eu sei que não foi bom pra você, mas eu queria que tivesse sido... — Ele respirou fundo, e pegou as mãos dela, a obrigando a desfazer os punhos e a segurando com firmeza. — O que eu tô querendo dizer, é que eu queria te ver de novo. Eu não trabalho hoje, se você quiser a gente pode se encontrar mais tarde? Tomar um sorvete, ou um suco, você escolhe.

— Desculpa... — A Bia se perdeu por alguns segundos. — Droga! Eu não me lembro do seu nome.

Como ela podia não saber o nome do seu primeiro cara?

— Lourenço. — O olhar dele se abrandou. — Os meus amigos me chamam de Lôro.

— Desculpa, Lourenço. — Ela fez questão de usar o nome que os não-amigos usavam. — Eu não posso. Sair com você, eu quero dizer.

— Tô ligado. Eu achei que você ia dizer isso mesmo. Você não é o tipo de menina que olha pra um cara como eu. — Ele deu uma risada irônica e se levantou. — Você só me deu ideia depois de ficar bêbada.

Ele foi até a janela, o olhar perdido em algo do lado de fora. O coração da Bia se apertou. O convite para sair foi a última coisa que ela tinha esperado ouvir e a surpresa pela decepção dele ao receber sua recusa foi ainda maior.

Apesar de terem compartilhado uma das experiências mais íntimas entre duas pessoas, a Bia não o conhecia. Não da maneira que realmente importava. Mas ele era bonito e cheio de músculos, dono de uma segurança que só a experiência trazia. Atrair mulheres não devia ser nenhuma dificuldade. A única explicação para o convite, era que ele estava se sentindo culpado.

A Bia não devia nada a ele. O melhor a fazer era ir embora deixando ele acreditar que ela era uma esnobe. Eles nunca mais iam se ver mesmo. Mas o impulso de se justificar venceu e ela foi até ele.

— Escuta. — Ela tocou o ombro dele, de leve. Ele não se virou. — Eu tenho namorado. — Ela tentou não perder a coragem ao senti-lo ficar tenso. — Não por muito mais tempo, é verdade. E eu sei que é ridículo o que eu vou falar agora, por causa de ontem, mas eu não posso aceitar um convite pra sair enquanto eu não resolver as coisas com ele.

Ele finalmente se virou com o rosto impassível, todas as emoções guardadas dentro dele.

— Tem uma parada que você precisa saber. Aliás, esse papo era pra ser sobre isso, desde o início. — O olhar duro fez um calafrio passar pela Bia. Não de uma maneira boa. — A gente não usou camisinha.

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top