Capítulo 44

O tenente Junqueira a entregou para outro policial quando eles chegaram à delegacia, mas não sem antes cumprir a promessa de anotar o telefone do pai da Bia.

Ela acompanhou o policial pelos corredores sem olhar para os lados. Quanto menos detalhes ela assimilasse, mais fácil seria esquecer tudo depois. Ela foi colocada numa salinha de paredes sujas, cheirando a mofo, sem janela e iluminada por duas lâmpadas fluorescentes que não paravam de piscar. A Bia se deixou cair numa das duas cadeiras em frente a uma escrivaninha de ferro cinza, com as gavetas faltando, enterrando o rosto nas mãos.

Seu pai devia estar recebendo a ligação do tenente naquele exato minuto. Ela quase podia o ouvir argumentando com o policial que havia algum engano, a filha dele nunca seria presa. Ainda mais por tráfico de drogas. Que absurdo!

Mas não era absurdo. Estava acontecendo. E tudo por culpa das mentiras do Lourenço. Por que ele tinha feito aquilo com ela? Será que ele pensou que poderia enganá-la para sempre?

No dia anterior, naquela mesma hora, ela estava sentada na garupa da moto, indo para Grumari. Como ela podia continuar acreditando naquela palhaçada de 'mulher da vida dele'? Se ele realmente sentisse alguma coisa por ela, não a teria colocado em risco. Não. Uma pessoa que gosta da outra quer proteger, cuidar, manter longe de qualquer perigo.

Talvez ela fosse só uma distração para ele? A menina riquinha, diferente das outras biscates que ele pegava no bar, a otária que aceitava tudo o que ele falava.

Ela secou o rosto e se sentou mais reta na cadeira ao ouvir o barulho na maçaneta. Por um segundo, ela imaginou o Lourenço entrando com aquele sorriso torto, perguntando, 'Gata, você achou que eu ia mesmo mentir pra você?', mas quem entrou foram dois policiais.

Um ocupou a cadeira vazia na sua frente, enquanto o outro ficou de pé atrás dele, com os braços cruzados, olhando a Bia de cima com a expressão fechada e intimidadora. Eles pediram a senha do seu celular e fizeram várias perguntas, que a Bia respondeu o mais sinceramente que pôde.

Ela só mentiu duas vezes. Ela disse que tinha sido o próprio Lourenço quem tinha contado a ela que vendia drogas. Envolver o Marcelo e o Fred naquela confusão não resolveria o problema de ninguém. E quando contou sobre a noite da surra, ela não mencionou o nome do Dezinho. O Lourenço tinha dito que alguém sempre procurava vingança, e ela não colocaria nem a ela mesma, nem as irmãs dele, em perigo. Se ele quisesse citar nomes, seria escolha dele.

Os dois policias foram embora e a Bia ficou no silêncio da sala, tentando calar o barulho dentro da sua cabeça recitando os nomes de todos os ossos do corpo. Depois, de todos os músculos. Quando ela tentou se lembrar o nome de substâncias químicas e como elas afetavam uma pessoa, a lembrança dos saquinhos que o Lourenço vendia arruinou seu passatempo.

No que devia ser a hora do almoço, um policial entrou na sala e jogou um marmitex, uma banana e uma caixinha de suco de uva em cima da mesa, e saiu sem dizer uma palavra. O cheiro da comida embrulhou mais seu estômago, e para não correr o risco de vomitar, ela comeu só a fruta e bebeu o suco.

Quando o guarda voltou para buscar o lixo, ele a olhou com desprezo.

— Boa demais pra comer comida de delegacia? Se acostuma. Pra onde você vai, é muito pior.

A Bia não caiu na pilha. Ele não devia saber nada sobre a situação dela e queria fazer terrorismo. O único lugar para onde ela ia, era sua casa, porque ela era inocente.

Ela passou a se repetir aquilo no silêncio da sala para não perder o juízo.

Outros dois policias entraram e a fizeram recontar tudo o que ela já tinha contado antes. Ela tentou pedir informações sobre o pai, se ele tinha sido avisado, se ela ia ser solta, mas os dois homens simplesmente ignoraram suas perguntas e foram embora.

Na quarta vez em que a maçaneta da porta girou, a Bia já estava pronta para cair de joelhos e implorar, nem ela mesma sabia pelo quê. Mas o guarda não entrou na sala e fez sinal para que ela o seguisse.

Depois de um longo corredor, ele abriu uma porta e a única coisa que a Bia viu, foi seu pai de braços abertos.

— Pai! — Ela se jogou no refúgio dele, chorando de alívio.

— Meu amor! — Ele a abraçou apertado por um longo tempo, enquanto ela soluçava e tremia. — Tá tudo bem? Olha pra mim. — Ele levantou seu rosto e a olhou atentamente. — Bia?

— Tá tudo bem. — Ela engoliu o choro e procurou se acalmar. O pior já tinha passado. — Desculpa, pai, me desculpa.

— Não precisa pedir desculpas, meu amor. A gente já vai pra casa. — Ele secou o rosto dela e a virou de frente para o resto da sala. — Esse é o Doutor Antônio Carlos, seu advogado. — Ele esperou que ela apertasse a mão do advogado. — E esse é o Doutor Aurélio, o delegado. Ele precisa de você um pouquinho antes de te liberar, tá bom?

A Bia apertou a mão do delegado também e sentou numa das cadeiras colocadas na frente da escrivaninha dele, esperando.

— Boa noite, Biatriz — o Doutor Aurélio falou, e só então a Bia reparou na janela atrás da mesa, emoldurando um estacionamento iluminado pelas luzes amareladas dos postes. Ela respondeu ao cumprimento e ele continuou. — O habeas corpus que o seu advogado impetrou foi concedido, mas você ia ser liberada de qualquer jeito. O rapaz te inocentou de qualquer culpa e nós não temos nenhuma prova contra você. Isso significa que você não vai ser arrolada como ré no processo. Eu só preciso da sua assinatura em alguns documentos.

O advogado pegou os papéis da mão do delegado e depois de examinar, entregou para a Bia, com uma caneta.

— Ela está assinando um recibo pelos pertences dela. Onde eles estão? — o Doutor Antônio Carlos perguntou e um policial entregou a bolsa para a Bia. — Confere, por favor.

A Bia olhou por alto. Sua carteira, celular e chaves estavam lá, o resto ela não se importava.

— Tá tudo certo — ela confirmou para o advogado.

— Pode assinar.

— Obrigado. — O delegado aceitou os documentos de volta. — Você pode ser chamada para prestar novos esclarecimentos. Eu preciso de um aviso antecipado se você precisar fazer alguma viagem prolongada, entendeu?

— Entendi.

— Mais alguma pergunta? — O delegado olhou para os três.

A Bia sabia que não deveria, que o pai iria se decepcionar ainda mais, mas ela precisava saber.

— O que vai acontecer com o Lourenço?

O Doutor Aurélio levantou, deu a volta na mesa e se agachou na sua frente.

— Biatriz, eu tenho uma filha mais ou menos da sua idade. Eu vou te dar o mesmo conselho que eu daria pra ela. A pessoa que vende drogas é sempre carismática, alguém que sabe envolver, conquistar, e nunca faz isso sem um interesse próprio. Você se envolveu com o rapaz errado. Volta a sua cabecinha pros estudos. Você tem a sorte de ter uma família que se importa e se preocupa com você, aproveita isso. Além do mais, ele vai ficar preso por um bom tempo, eu posso te garantir.

— O senhor tá certo, Doutor Aurélio. Obrigada. — A Bia secou as lágrimas e aceitou a mão do pai que a ajudou a levantar.

Eles se despediram e, assim que saíram por uma outra porta, a Bia foi envolvida por mais dois pares de braços.

— Minha filha! — A mãe se agarrou a ela. — Alguém te machucou? Você tá com fome? Com frio? Você tá gelada.

— Biatriz, você quase mata todo mundo do coração! — O Fred deu um beijo na sua cabeça.

— Eu sei, desculpa. — Saiu abafado contra o pescoço da mãe. — E eu tô bem, mãe, fica tranquila.

O advogado se despediu na porta da delegacia, e os quatro foram para o carro. A recriminação poderia vir depois, mas, por enquanto, ela só estava recebendo carinho e preocupação da família.

A Bia olhou para o prédio atrás dela. O Lourenço devia estar ali, em algum lugar, e como o delegado tinha falado, ele não teria a sorte de voltar para casa por um longo tempo. Ela não se permitiu sentir pena, ele estava pagando pelo que ele tinha feito. O que doía era não ter tido tempo de nada. Ele não tinha morrido, mas era quase como se tivesse. Ele foi removido da sua vida abruptamente, sem nenhuma conversa, briga, pedido de desculpas ou despedida. Num minuto ele estava lá, e no seguinte, não.

A mãe entrou no banco de trás e puxou sua cabeça para o ombro dela. O perfume familiar de flores derrubou a fortaleza que a Bia tentava construir em volta de si mesma, e o choro voltou.

— Não fica assim, meu amor. — A mãe passou a mão pelos seus cabelos. — Vai passar.

— Não, mãe, não vai... — ela soluçou.

— Claro que vai. — O pai estendeu a mão do banco da frente e segurou a sua. — A gente vai te ajudar a deixar tudo pra trás.

— Isso nunca vai ficar pra trás. Nunca!

— Claro que vai. Você tá cansada. Amanhã tudo vai parecer mais fácil.

— Não, pai, você não entende... — A Bia se desesperou porque quando ela achou que tudo ia piorar, ela não poderia ter imaginado que chegaria naquele ponto.

— Então me diz, meu amor, me explica.

— Eu acho... — A Bia respirou fundo e olhou nos olhos do pai. — Eu tenho quase certeza que eu tô grávida.

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