Capítulo 38
— Bia... — O Lourenço percebeu o dilema, assim que o corpo dela começou a tremer. — Eu vou sozinho... de boa. Pode ir... eu te espero lá em cima...
Seria tão fácil concordar e subir as escadas, mas como ela poderia deixá-lo sozinho depois do que ele tinha acabado de passar? E que pessoa patética seria ela, se acovardando com uma ameaça tão inofensiva como uma viagem de elevador depois de ele ter apanhado calado por ela?
— De jeito nenhum. — A Bia respirou fundo e se obrigou a ir em direção ao seu trauma de infância. Ela já tinha subido uma vez com o Lourenço. Uma segunda vez não iria matá-la.
Mas podia chegar bem perto.
Seu estômago embrulhou ao abrir a porta para ele passar e o tamanho minúsculo da cabine ameaçou sufocá-la antes mesmo que ela entrasse. Sorte que ela não tinha comido nada, ou teria colocado tudo para fora, ali mesmo. O Lourenço apertou um botão no painel e a puxou para dentro. Ela caiu contra ele se agarrou ao corpo machucado com força, e se foi mais que o que ele podia suportar, ele não reclamou e a abraçou de volta.
Com o rosto enfiado no pescoço do namorado, os olhos fechados, tentando não pensar onde ela estava, no que estava fazendo, ela se concentrou nas palavras que ele murmurava baixinho, carinhoso, quando era ele quem merecia estar sendo confortado, mas vencer sua fragilidade ia além do que ela seria capaz naquele momento.
— Você foi tão corajosa... eu tive tanto orgulho...isso aqui não é nada, nada... você tá segura...
Um grito escapou, abafado, com um tranco do elevador. Claro que aquilo ia acontecer. Claro que ela ia ficar presa de novo. Era castigo.
Castigo, castigo, castigo...
— A gente chegou. — O Lourenço estendeu o braço e abriu a porta, e foi só então que a Bia voltou a respirar, vendo o corredor do quinto andar na sua frente.
Sem saber de onde vinha a força para colocar um pé na frente do outro e apoiar um homem daquele tamanho ao mesmo tempo, a Bia conseguiu ajudar o Lourenço a chegar até a porta, e depois até a sala.
— Você quer ir pra onde?
— Pro banheiro. Eu preciso de um banho. Me ajuda?
O coração da Bia se partiu quando ele tirou a camisa branca respingada de sangue e ela viu a pele avermelhada, já ficando arroxeada em alguns pontos. Ela deslizou a mão de leve pelas costelas, procurando por fraturas. O abdômen também parecia estar bem — vantagem de se ter músculos firmes na barriga — mas um exame superficial não ia revelar nada grave, ainda mais para alguém inexperiente como ela. Ela só podia rezar para não se arrepender de não ter insistido em levá-lo para o hospital.
A Bia se ajoelhou na frente dele e o ajudou a tirar os sapatos e meias, desabotoou a calça e a puxou junto com a cueca. Quantas vezes ela tinha repetido aquele movimento, em outro estado de espírito, ansiosa em dar prazer a ele? Naquele momento, seu toque não tinha nada de sexual, só carinho, preocupação e vontade de que pudesse livrá-lo de todas as dores que ele devia estar sentindo.
— Daqui, eu consigo sozinho, valeu. — Ele afastou a cortina do chuveiro e abriu a água. — Eu achei que da próxima vez que você estivesse aqui no banheiro comigo, ia ser pra gente tomar banho junto. Eu tinha tantos planos pra essa noite e... Merda!
— Eu sei. — A Bia o abraçou por trás sem apertá-lo. — Mas o importante é que a gente tá bem. Que você tá bem.
Ele não respondeu, e levou uma das mãos dela até os lábios antes de se soltar e entrar no boxe.
— Você tem alguma coisa pra fazer curativo? — a Bia perguntou abrindo o armário de cima da pia, onde ela achou uma escova de dentes, um tubo de pasta, um desodorante, uma lâmina de barbear nova e uma usada, e uma caixa de band-aid.
— Eu acho que eu só tenho band-aid.
— Eu tenho um estojo de primeiros socorros no meu carro.
Como ela foi burra por não ter se lembrado antes do acessório que o pai fazia questão de colocar no porta-malas de todos os carros da família.
— Não! — O rosto molhado e desesperado do Lourenço apareceu por uma abertura da cortina. Se fosse possível, por causa dos machucados, ele estaria com os olhos arregalados. — Você não vai na rua! Promete, Bia.
— Eu não vou. — Ela segurou a mão que ele estendeu na sua direção e roçou seu rosto pela palma molhada, pingando no chão entre eles. Voltar lá embaixo não tinha nem passado pela sua cabeça. Ela não ia deixá-lo sozinho, muito menos se arriscar a descobrir que os caras não tinham ido longe. — Deve ter alguma farmácia 24 horas por aqui. A gente pede pra entregar, mas eu vou precisar do seu celular. Ou eles levaram o seu também?
Com um suspiro, o Lourenço a soltou.
— Eu vou comprar um novo pra você.
— Isso não é importante agora. — A Bia se abaixou e pegou o telefone dele no bolso da calça. — Posso usar?
— Claro — ele concordou e deu a senha de desbloqueio.
A Bia achou o telefone da farmácia e pediu tudo o que ia precisar para cuidar dele. Ela quase caiu para trás com a taxa de entrega absurda, mas como todo mundo desesperado o suficiente para precisar de uma farmácia em plena madrugada, confirmou com o Lourenço que ele tinha dinheiro para pagar e aceitou sem reclamar.
O chuveiro ainda estava ligado quando os tremores violentos começaram. Livre do perigo e com as coisas mais urgentes resolvidas, a Bia entrou em estado de choque. Não que ela já tivesse passado por aquilo antes, mas reconheceu os sintomas de uma de suas aulas.
Ela foi tropeçando até a cozinha e pegou um copo de água, que precisou segurar com as duas mãos para conseguir beber. Uma onda de calor a atingiu e a deixou tonta. Ela tentou respirar fundo e não se entregar, o Lourenço ainda precisava dela, mas suas pernas ficaram moles e ela desabou no chão.
As cenas lá de baixo começaram a passar pela sua cabeça, em replay, sem parar. Os sons dos grunhidos do Lourenço ao receber as pancadas iam assombrá-la por muito tempo. O envolvimento dele com o tráfico de drogas tinha deixado de ser uma história dissociada da sua vida e se tornou real. Ele tinha razão, ela vivia num castelo cor de rosa onde espancamentos e ameaças de estupro eram notícias de jornal, e se os pais não estivessem viajando, ela teria ido correndo procurar o conforto e a segurança do colo deles.
E ela andou de elevador! O que poderia ser considerado uma vitória, não fosse o fato que encarar seu maior medo naquelas circunstâncias provavelmente iria contribuir para aumentar seu trauma, e não o contrário.
Ela se abraçou aos joelhos e se entregou ao choro, o corpo sendo sacudido por soluços. Ela só percebeu que não estava mais sozinha quando o Lourenço sentou do seu lado e a pegou no colo.
— Desculpa, minha linda, desculpa. — Ele a balançou para frente e para trás, enchendo o rosto e a cabeça dela de beijos. — Eu prometo que isso nunca mais vai acontecer. Ninguém nunca mais vai te encostar um dedo. Eu juro. Eu juro!
Mesmo depois que a Bia se acalmou, eles continuaram abraçados no chão da cozinha. Buscando no abraço, no calor, no cheiro e no carinho um do outro a segurança de que, se ainda não estava tudo bem, eles pelo menos estavam ali juntos quando o ataque poderia ter terminado de maneira trágica. Ela não queria nem pensar na possibilidade de perder o Lourenço logo depois de terem se reencontrado.
O mundo se intrometeu com o toque do interfone.
— Deixa que eu recebo — o Lourenço se ofereceu enquanto a Bia tentava secar o rosto.
— Não precisa. — Ela se levantou. — O meu rosto vermelho de choro vai assustar menos o entregador que os seus machucados. Vai deitar, vai. Eu já tô indo.
Ele devia estar pior do que queria deixá-la ver porque, depois de lhe entregar o dinheiro, obedeceu, sem reclamar.
A Bia recebeu a encomenda e colocou as compressas de gel no congelador, levando o resto para o quarto. O Lourenço chegou para o lado dando espaço para ela se sentar na ponta do colchão. Ele aguentou tudo sem reclamar, o ardido do antisséptico nos cortes, o exame da Bia pelo nariz inchado que, por milagre, não tinha quebrado e uma nova inspeção pelas costelas e barriga.
— E então, doutora, eu vou sobreviver? — O sorriso tentativo e a brincadeira não afastaram a angústia e a preocupação do seu peito, mas ela se consolou por ele estar bem o suficiente para tentar aliviar o clima.
— Nada disso. — Ela deitou a cabeça no ombro dele, sem soltar o peso do corpo. — Quando a gente brincar de médico, eu vou ser a paciente.
— Beleza. — Ele passou os dedos pelos cabelos dela. — Mas você precisa saber que os meus tratamentos não vão ser muito tradicionais.
— Tudo pela ciência. — Ela deu um beijo na testa dele e se levantou porque até todo quebrado, ele conseguia atiçar sua imaginação e fazer um arrepio descer pela sua coluna, e não era hora daquilo. — Eu vou buscar as compressas.
Ela pegou também um copo de água, que deu para ele com dois comprimidos analgésicos.
— Põe onde tá doendo mais. — Ela trocou o copo vazio pelas duas compressas que não estavam geladas o suficiente, mas era melhor que nada.
— Tem mais umas dez dessas?
— O comprimido vai ajudar. — Ela se juntou a ele na cama, sentada contra a cabeceira, e puxou a cabeça dele para o seu colo.
— Você não quer tirar essa roupa? Pega uma camiseta no armário.
— Daqui a pouco.
Ele se ajeitou da melhor maneira que pôde, mantendo uma das compressas no rosto e a outra na barriga.
— Eu não tô acreditando que logo hoje que você pode ficar a noite toda, acontece essa porra toda. — Ele afastou a compressa do rosto para olhá-la.
— Shhh... — A Bia recolou a compressa no lugar. — Amanhã a gente conversa. Agora dorme, você precisa descansar.
Com a mão pousada em cima do nome da mãe dele, a Bia esperou as batidas do coração se acalmarem, e quando a respiração regular mostrou que ele tinha dormido, as lágrimas voltaram a cair.
Era a segunda vez que ela passava a noite com ele, e a segunda vez que chorava por causa dele. Será que ela poderia esperar que as coisas fossem ser diferentes se recomeçavam tão iguais?
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