Capítulo 34
A Bia tamborilou com os dedos no granito da bancada da cozinha, acompanhando o ritmo dos pingos da cafeteira.
Sete e meia da manhã de um sábado era muito cedo para estar de pé, ainda mais porque ela não tinha nada para fazer. Absolutamente nada. E nem adiantava ligar para ninguém procurando companhia porque todo mundo que era normal tinha saído na noite anterior e estava dormindo. Diferente dela que antes das nove da noite de uma sexta-feira tinha apagado o abajur e se enfiado na cama.
A verdade era que ela estava exausta. Não fisicamente, mas de manter a fachada de normalidade, de esconder a tristeza e fingir que estava melhor, de prender o choro que sempre arrancava um olhar preocupado da mãe. A tal história que o tempo cura qualquer ferida estava se provando uma enganação total. Há exatos 41 dias do término do seu namoro — não que ela estivesse marcando no calendário, nem nada — a saudade doía mais do que nunca e as raízes que o Lourenço tinha plantado no seu coração, continuavam cravadas fundo, sem dar sinais de que iam enfraquecer num futuro próximo.
No dia anterior, depois de se despedir dos pais, que tinham ido passar o fim de semana fora, a Bia entrou na casa silenciosa e vazia, e foi atingida em cheio pelo pensamento de que se ela ainda namorasse o Lourenço, teria duas noites inteiras para ficar com ele, como eles desejaram tantas vezes. Mas naquela vida injusta, era outra que ocuparia a cama dele. Uma mulher que ia escutar a falsa história da Alícia, uma mulher que ia ter o Lourenço superficialmente, uma mulher de uma noite só, mas com quem a Bia trocaria de lugar em um segundo, se as circunstância fossem outras.
Ela tentou ignorar a dor no peito e o vazio que a engoliu, e se obrigou a separar a roupa que ia usar para sair com as amigas, a tomar banho e a secar o cabelo, mas na hora de se maquiar, ela se olhou no espelho e foi honesta consigo mesma. Cancelou os planos. Se enfiou entre suas almofadas. E se permitiu chorar até dormir.
E estava de pé cedo demais.
O que fazer numa manhã de sábado para se distrair?
Os livros, tanto os de estudo quanto os de ficção, não estavam prendendo sua atenção. Televisão, menos ainda. Sem falar das redes sociais, onde todo mundo estava feliz e namorando e se gabando de como a vida deles era tão melhor do que a sua. Até de pintar, ela tinha dado um tempo.
Ao voltar de Friburgo, ela tentou sua terapia usual de pensar e resolver problemas. Ela pintou um caminho longo, sinuoso, tomado de pedras e buracos, por entre um jardim lindo, exuberante, cheio de pássaros voando e flores coloridas. Era a sua vida naquele momento, feia, triste e indo para lugar nenhum, sem se afetar pela beleza das coisas acontecendo ao redor.
Foi a primeira vez que uma de suas pinturas a fez se sentir pior do que antes e, num acesso de raiva, ela pegou uma tesoura, cortou a tela em mil pedacinhos e colocou as tintas e pincéis de quarentena.
— Você fez café que dá pra três? — a voz do Fred a tirou de seus devaneios.
— Três? — Ela levantou as sobrancelhas.
— A Roberta dormiu aqui. Você não se importa, né?
— Claro que eu não me importo. — Ela revirou os olhos. A Roberta era um amor e a Bia não podia estar mais feliz por ela não ter se assustado e sumido depois da cena que presenciou no almoço de bodas dos pais. — E cadê ela?
— Tá dormindo — o Fred respondeu e foi até um dos armários da cozinha, pegando a bandeja grande que a mãe usava para levar comida na cama para os filhos quando eles estavam doentes.
— Café na cama?
— Me ajuda? — ele sorriu, tímido.
Foi impossível não sorrir também, com a fofura do irmão.
O Fred queria suco de caixinha, mas a Bia o obrigou a usar o espremedor de laranjas. Enquanto ele trabalhava, ela arrumou a bandeja com algumas fatias de queijo branco, manteiga, uma cesta pequena com cream crackers e pão de forma cortado em triângulos, porque era o único pão que tinha, alguns morangos e duas xícaras.
— Açúcar ou adoçante? — a Bia perguntou.
— Adoçante.
O Fred colocou os copos de suco na bandeja e a Bia espremeu a garrafinha de adoçante num cantinho.
— Peraí. Já volto.
Ela correu até um arbusto cheio de flores cor de rosa no quintal, pegou a mais bonita e, de volta à cozinha, a colocou entre as duas xícaras cheias de café.
— Uau. Você já fez isso antes? — o Fred elogiou e, passando o braço pelos ombros dela, a puxou para perto e deu um beijo da cabeça da irmã. — Valeu.
— Não. Eu que agradeço. — A Bia passou os braços pela cintura dele e deu um abraço apertado.
— Por quê?
— Por não me deixar perder a fé em vocês, homens. Por me lembrar que ainda existem caras decentes e que um dia eu posso achar um que também vai levar café da manhã na cama pra mim.
— É claro que você vai ganhar café na cama, um dia. — Ele colou os lábios no alto da cabeça dela.
Depois de alguns segundos aproveitando o abraço do irmão, ela deu um passo para trás.
— Agora vai, senão o café esfria.
Ele pegou a bandeja, e parou na porta, antes de sair da cozinha.
— Eu e a Beta vamos pra praia, você quer ir com a gente? — Ele ficou com o rosto todo vermelho. — Não agora, agora. Mais tarde um pouquinho.
— E ficar segurando vela? — Ela deu uma daquelas risadas falsas que já estava virando hábito. — Pode tomar seu café tranquilo, mas eu vou sair, sim. Talvez pro shopping, almoçar por lá.
— Se você mudar de ideia, eu vou estar no lugar de sempre.
A Bia entornou o restinho que sobrou do café numa xícara, colocou açúcar e se deixou cair numa das cadeiras da mesa da cozinha, enfiando o rosto nas mãos para não gritar.
Por que essa sensação de estar envolvida em um manto escuro e pesado não passava? Por que não podia ser seis meses, um ano, na frente e tudo aquilo ser só uma lembrança ruim? Por que ela não estava na casa do Lourenço ganhando seu próprio café na cama, como ele tinha prometido, uma vez?
Não. Ela afastou as perguntas sem resposta da cabeça. Aquele tipo de pensamento a colocava numa espiral sem fim de tristeza e desânimo e mal eram oito horas da manhã!
A ideia de ir para o shopping a animava tanto quanto uma visita ao dentista, mas quem sabe ela não se distraía? Pelo menos até poder ir para a casa da Vivi sem correr o risco de ser assassinada por acordá-la cedo demais num sábado.
A notificação de mensagem chegando no seu celular fez seu coração dar um pulo de animação. O tédio era tanto que ela toparia até ajudar alguém a medir a orla da Barra da Tijuca com palitinhos de fósforo, desde que tivesse companhia. Ela murchou o ver o número desconhecido. O dedo para apagar a mensagem recebida por engano se congelou quando a Bia leu de relance a primeira frase, 'Eu escolho você'.
Ainda bem que ela estava sentada, ou teria caído no chão. Mas não podia ser. Devia ser um engano, e mesmo que não fosse, ela não tinha certeza se queria saber. Mas ela precisava saber ou ia passar o resto do dia revirando aquilo dentro da cabeça.
Inspirando fundo, ela abriu o texto.
Número desconhecido: Eu escolho você. Será que a gente pode trocar uma ideia? Se você apagar essa mensagem 100 vezes, eu mando 101
Não era um engano. A mensagem não estava assinada, mas só podia ser uma pessoa.
Quando voltou das férias, ela tinha se enchido de coragem para religar o celular e os pedaços do seu coração viraram pó ao ver que entre as inúmeras mensagens de voz e texto, nenhuma era do Lourenço. Ele tinha saído da sua vida com a convicção plena de ser a melhor atitude, e a Bia acabou não bloqueando o número dele, porque, mesmo sem a intenção de responder, ela queria saber se ele tentasse um contato.
E ele estava tentando. Com outro número, mas era ele.
Tremendo dos pés à cabeça, ela pousou o celular na mesa, como se afastar as mãos, afastasse também a tentação de escrever uma mensagem de volta.
Ela leu e releu a primeira frase. Aquela era uma situação com todo o potencial de trazer arrependimentos futuros, e ela pesou suas duas únicas opções. Ignorar significava passar o resto da vida se debatendo com aquela perguntinha irritante que seguia todas as oportunidades perdidas, 'E se?'.
Ou ela podia responder e ver o que ele queria. Uma conversa não significava nada. Ela podia escutar o que ele tinha para dizer e se decidir depois.
Outra mensagem apareceu na tela.
Número desconhecido: Apagou a outra? Não tem problema, eu repito: eu escolho você. Faltam só mais 100
Não tinha outro jeito. Ela não podia ficar sem a explicação do que 'eu escolho você' realmente significava.
Bia: Quem é?
Número desconhecido: De boa, gata, quantos otários você tem escolhendo entre você e outra coisa?
Eram apenas palavras escritas na tela do celular, mas a Bia podia ouvi-lo dentro da sua cabeça, com aquela voz grossa, o sotaque carioca arrastado e a sombra de um sorriso nos lábios. Um arrepio desceu pela sua coluna.
Bia: Tem razão. Os outros não levam tanto tempo para me colocar em primeiro lugar
— Toma! — Ela apertou enviar com um resmungo de revolta. Ela podia estar considerando conversar com ele, o que não significava que ela ia facilitar.
Número desconhecido: Você entende que esse é um assunto que tem que ser conversado pessoalmente, né?
Ela entendia e foi com as mãos tremendo que ela se rendeu.
Bia: E quando vc tá pensando em ter essa conversa?
Número desconhecido: Agora. Eu tô na portaria do seu condomínio. Vc tá em casa?
— Droga! — Ela deu um pulo da cadeira.
O Lourenço estava ali, a alguns passos de distância. Tudo bem, a muitos passos de distância, mas muito mais perto do que eles tinham estado por 41 longos dias. Com o coração aos pulos, seus dedos voaram pela tela do celular.
Bia: Não pede pro porteiro tocar o interfone. Eu não posso deixar vc entrar. Meu irmão tá em casa. Me espera aí
Número desconhecido: eu não tô indo pra lugar nenhum
Antes de a resposta chegar, ela já estava subindo as escadas. Ela escovou os dentes escolhendo mentalmente a roupa, detalhe superimportante na hora de reencontrar um ex. E a estratégia do dia seria provocação.
A Bia vestiu sua minissaia mais curta e a camisa larguinha que ele mesmo tinha admitido que o deixava louco. Sem sutiã, claro. Rímel, batom e como perfume era muito óbvio, ela passou um hidratante de cheirinho suave nas pernas e braços.
Seu estômago era um nó de nervoso, o coração querendo saltar do peito quando ela parou o carro ao lado dele, e seu corpo inteiro formigou com o sorriso que ele deu ao vê-la. A Bia segurou o volante com força, lutando pelo controle das emoções. Outra estratégia fundamental era não permitir que ele percebesse como a afetava. Quanto mais desinteresse ela aparentasse, melhor.
— Oi — a Bia cumprimentou depois que ele sentou do seu lado, sem conseguir evitar o leve tremor na voz.
— Eu fiz uma aposta comigo mesmo sobre a sua roupa. — O sorriso dele se transformou de satisfeito em arrogante em menos de um segundo. — Eu ganhei.
Metido, como sempre, mas a Bia era perita em conversas com exes. Virar o jogo não seria problema.
— Eu não me vesti pra você. Eu já estava com essa roupa quando eu recebi a sua mensagem. — Ela arrancou devagar, para não passar vergonha deixando o carro engasgar por causa das pernas trêmulas. — A nossa conversa vai ter que ser rápida. Eu tenho outro compromisso.
Com uma olhadinha de lado, a Bia viu que sua mentira tinha tido o efeito desejado e a expressão de vitória no rosto dele por ter conseguido a conversa tão rápido tinha sumido.
Ótimo!
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