Capítulo 31

A movimentação fora do normal para um domingo de manhã, acordou a Bia mais cedo do que ela gostaria. Voltar a dormir seria difícil, ficar na cama significava se obcecar com a chegada do Lourenço, e ela levantou e foi ajudar a mãe com os mil detalhes de última hora.

Apesar de ser um almoço só para a família e amigos próximos, sua mãe caprichou na decoração, e a Bia passou a manhã ajudando a espalhar enfeites prateados pela casa, inclusive os 25 porta-retratos, cada um marcando um ano da história do casal, e arrumando a mesa dos doces, com uma réplica exata do bolo do casamento enfeitado com o arranjo artificial de flores original, guardado carinhosamente aquele tempo todo.

— Ficou bom, não ficou? — Dona Heloísa deu um passo para trás, admirando a mesa.

— Ficou lindo — a Bia concordou.

— Vai se arrumar. — A mãe deu dois tapinhas no ombro dela. — Daqui a pouco os convidados começam a chegar.

E o Lourenço, seu estômago deu um pulo com o lembrete.

As duas seguiram caminhos opostos, a mãe para a cozinha checar o buffet e a filha para as escadas, dando uma paradinha para arrumar um dos porta-retratos muito perto da beirada da mesinha de centro.

A Bia acabou com o porta-retratos na mão, perdida nas lembranças daquela foto. Os pais, o irmão e ela, em frente a uma árvore de natal, todos sorrindo, mas dava para ver seu rosto avermelhado pelo choro. Culpa do Fred que quase estragou seu natal quando entregou que Papai Noel não existia. A decepção da Bia foi rapidamente esquecida, porém, ao ver a quantidade de presentes debaixo da árvore e entender que a inexistência do bom velhinho não significava que ela ia ficar sem ganhar a boneca que tanto queria.

Como seria bom se todos os problemas do mundo pudessem ser resolvidos com a inocência da lógica infantil...

Foi impossível não seguir o trem dos pensamentos para o futuro. Um dia ela teria nas mãos um porta-retratos que a faria sorrir com alguma lembrança construída com sua própria família. Talvez fosse cedo, e muita pretensão, colocar o Lourenço naquela foto imaginária, mas seu peito chegou a doer de vontade que fosse ele. E entre os filhos dos dois — todos parecidos com ele, claro, seria um pecado desperdiçar aquela genética toda — uma menininha chamada Alícia, que ia ganhar um sorriso especial cada vez que ele a chamasse pelo nome.

Não era um objetivo inalcançável, se ele mesmo já estava com o pensamento voltado naquela direção.

— Você ainda tá aí? — A voz da mãe a trouxe de volta à realidade e ela recolocou a foto no lugar.

— Tô indo.

Quando a mensagem do Lourenço chegou, avisando que ele estava na portaria do condomínio, a Bia estava de banho tomado, arrumada e de volta à sala, sentada no sofá, conversando com os avós. Depois de avisá-lo que o porteiro tinha uma lista, e que era só ele dar o nome, ela foi esperá-lo na porta de casa, com o coração batendo a mil.

Finalmente, as duas partes da sua vida iam se misturar.

O Lourenço tinha se esforçado. Apesar do jeans usual, ele tinha abandonado o tênis e usava sapato preto, uma camisa social azul clara com as mangas dobradas e carregava um vaso de orquídeas brancas.

O contraste da delicadeza da flor com as mãos grandes e fortes segurando o vaso prateado, trouxe um sorriso aos seus lábios. Que foi mal interpretado por ele, que parou no meio do caminho.

— O que foi? Eu dei mancada, né?

— Mancada? — A Bia se aproximou. — Com o quê?

— A flor. Foi ideia da Alexa. Ela disse que eu não podia chegar de mão vazia. E que era pra eu trazer alguma coisa prateada, mas de última hora, num domingo de manhã, eu não tive muita opção. E a moça da floricultura...

— Lourenço. — A Bia ficou na ponta dos pés e deu um selinho nele, interrompendo o jorro de palavras nervosas. E ele nem tinha entrado em casa. — Minha mãe vai adorar.

— Sério? — ele perguntou, soltando os ombros. — Porque é aniversário de casamento, mas o presente não é bem pro seu pai.

— Relaxa. — Ela passou o braço pelo dele e o levou em direção à porta. — Você vai agradar a minha mãe, e isso é o presente do meu pai.

Ele entrou na casa, a olhando de lado, como se estivesse pesando a sua sinceridade contra sua vontade de não o deixar sem graça, mas antes que ela pudesse confirmar que era a pura verdade, deram de cara com seus pais esperando logo na entrada.

A Bia prendeu o sorriso com a falta de sutileza. Os dois estavam tão ansiosos para conhecer o Lourenço que deviam estar vigiando seus passos e viram quando ela saiu. Como aquilo era muito melhor do que ficar escondido na cozinha se fingindo de ocupado, a Bia ia deixar passar.

— Lourenço! — A mãe da Bia deu um passo à frente. Todo mundo ali sabia quem era quem, o que economizou o tempo da Bia. — Que bom que você veio!

— Parabéns, Dona Heloísa. — O Lourenço estendeu as flores para ela. — É um prazer conhecer a senhora.

— Muito obrigada! — Ela pegou o vaso com um sorriso radiante e o cumprimentou com dois beijinhos. — São as minhas flores preferidas.

A Bia levantou as duas mãos com as palmas para a frente quando a sua mãe a olhou.

— Eu não tenho nada com isso, eu juro. Ele fez tudo sozinho.

— E já conquistou as duas mulheres da minha vida. — O pai da Bia deu uma gargalhada e estendeu a mão. — Bem-vindo, Lourenço.

— Obrigado, Dr. Edson. — O Lourenço aceitou o cumprimento e eles trocaram um aperto de mão. — Parabéns pro senhor também.

— Obrigado. E eu te devo um agradecimento. A Bia me contou que vocês se conheceram quando ela precisou de ajuda com o carro. Ela teve muita sorte de encontrar alguém bem-intencionado pra ajudar.

A Bia usou toda a sua concentração para manter a cara de paisagem. Das boas intenções do Lourenço, ela não tinha dúvidas, mas seu pai nunca teria falado aquilo, se soubesse a verdade.

Os pais gostam de achar que precisam saber de tudo que acontece na vida dos filhos, mas eles nunca mais iam deitar a cabeça no travesseiro e dormir tranquilos se o desejo deles se realizasse. Se dependesse da Bia, seu pai iria continuar dormindo feito um anjinho, para sempre.

— Não foi nada, e quem teve a sorte maior, fui eu. — O Lourenço se saiu bem da saia justa.

— Isso, eu não vou contestar. — O pai deu um passo para o lado, a atenção se desviando para o casal de amigos que chegava e estava sendo recebido pela esposa. — Entra e fica à vontade, depois nós conversamos mais.

A Bia passou o braço pela cintura do Lourenço e o puxou para a sala.

— E aí? Fui bem? — ele brincou.

— Para a sua primeira vez, não foi tão mal.

Meio formal, já esperado, e menos nervoso do que ela tinha imaginado. Só faltava ele ter a mesma desenvoltura para enfrentar o verdadeiro desafio do dia, a Vivi, que estava para chegar a qualquer momento.

A Bia começou as apresentações justamente pelos pais dela, sentados no sofá com seus avós maternos. Entre os apertos de mãos e a troca de gentilezas, qualquer receio que a Bia ainda tivesse sobre o Lourenço não estar preparado para uma festa de família foi afastado pela maneira casual e simpática com que ele levava a situação, se não de todo relaxado, também sem parecer prestes a sair correndo.

Alguns minutos de conversa e ela pediu licença e o levou para conhecer uma de suas pessoas preferidas no mundo todo, sua avó paterna. As melhores lembranças de infância da Bia eram das férias que costumava passar na casa dela, em Friburgo e, apesar de não poder mais visitá-la tanto quanto gostaria, sua adoração por ela não tinha diminuído.

A avó estava sentada numa poltrona com as duas mãos apoiadas numa bengala na frente do corpo. Ela tinha precisado da bengala no ano anterior, por causa de uma cirurgia no quadril, mas continuava usando o acessório porque dizia que, além de charmoso, servia de arma no caso de precisar se defender. Apesar de todos os avisos sobre como ela nunca deveria reagir a um assalto, a Bia não tinha a menor dificuldade em imaginá-la atacando um pivete com bengaladas na cabeça.

— Essa é minha avó, Célia. — A Bia parou com o Lourenço na frente dela. — Vó, esse é o meu namorado, Lourenço.

Ela virou a cabeça de lado e olhou para a neta.

— No Natal, o seu namorado era louro, Biatriz — ela comentou.

Ela era extrovertida e não tinha problemas em falar o que pensava. Aliás, todo mundo dizia que a Vivi era a cópia jovem dela.

— O Natal foi há mais de seis meses — a Bia replicou e recebeu uma gargalhada da avó.

— Faz bem, minha filha. — A avó se virou para o Lourenço e estendeu uma das mãos, não da maneira normal para um aperto, mas meio curvada com a palma virada para baixo. — Muito prazer, Lourenço.

— O prazer é todo meu. — Sem um segundo de hesitação, o Lourenço segurou a mão dela e beijou a parte de cima.

De onde ele tinha tirado a inspiração para fazer aquilo, a Bia não fazia a menor ideia, mas que ele tinha acabado de ganhar uns mil pontos com a avó, ele tinha.

— Ah, Biatriz. — Sem soltar a mão do Lourenço, a avó abriu um sorriso. — Você tem muita sorte. Se eu fosse uns quarenta anos mais nova, eu roubava esse aqui de você.

Foi a vez do Lourenço rir alto.

— Dona Célia, se eu já não tivesse um compromisso muito sério com aquela moça ali, uns anos a mais ou a menos não iam fazer a menor diferença.

— Eu ia mostrar pra você o que é diversão de verdade. — Ela balançou a mão do Lourenço, que ela ainda não tinha soltado.

— Vó! A senhora não tem vergonha de paquerar o meu namorado na minha frente?

— Nem um pouco. Eu tô velha, mas não tô morta — ela disse, com a mão do Lourenço ainda firmemente na dela. — Vai conhecer o resto do pessoal, vai, meu filho, mas depois volta pra conversar comigo.

— Sim, senhora.

— Cuida bem dele, viu, Biatriz? — A dona Célia suspirou. — Não se fazem mais homens assim.

Dona Célia finalmente soltou o Lourenço e a Bia o levou para o quintal.

— Era só o que me faltava, perder pra minha avó.

— Você sabe que não perde pra ninguém, né, gata? — Ele passou o braço pela cintura dela.

— Só pra minha avó.

Ainda rindo, os dois se aproximaram do doutor Macedo e da esposa, vigiando os netinhos corajosos brincando na piscina com o sol fraco do começo de julho. Depois de outra rodada de apresentações, eles foram até a mesa que ficava na área coberta perto da churrasqueira, onde ela e o irmão costumavam se sentar nos almoços e festas em casa.

O Fred já estava lá, com uma menina que a Bia não conhecia e que devia ter chegado enquanto ela estava se arrumando.

— Lourenço, esse é o meu irmão, Fred.

O Lourenço estendeu a mão, mas o Fred continuou sentado, o encarando com a testa franzida. A Bia deu um chute nem um pouco sutil na canela do irmão.

— Foi mal. — Ele acordou e levantou, retribuindo o aperto de mão. — Eu achei que eu te conhecia de algum lugar, mas acho que não?

— Se eu te conheço, não tô lembrando — o Lourenço se desculpou.

— Tô confundindo com alguém, esquece. Essa é a Roberta. — O Fred se virou para a menina do lado dele, que também se levantou. — Minha irmã, Biatriz, e o namorado dela, Lourenço.

Depois da troca de beijinhos, eles se sentaram, menos a Bia, que colocou a mão no ombro do Lourenço.

— Você quer beber o quê?

— Pode ser cerveja. — Ele apontou para a garrafa na mesa.

— Essa tá quente. — O Fred se levantou. — Eu vou pegar uma gelada.

Agradecendo ao irmão, a Bia se sentou e se virou para a Roberta.

— Você conhece o Fred da faculdade?

— Ahã — ela confirmou, balançando a cabeça. — Eu faço psicologia.

— Psicologia, hein? — A Bia sorriu.

Ela não ia falar nada na frente da menina, que apesar de não ter sido apresentada como namorada, devia ser mais que ficante do Fred, se estava ali no almoço de família, mas, com certeza, mais tarde, o irmão seria submetido a várias piadinhas sobre livros de autoajuda e filosofia barata.

— Vocês também estudam juntos? — a Roberta perguntou, apontando para a Bia e o Lourenço.

Antes que ela pudesse responder, um grito atrás dela fez um fio de nervoso descer pela sua espinha.

— Até que enfim! — A Vivi passou pela porta do quintal como um furacão.

Ela mal parou para cumprimentar o Dr. Macedo, que não ia se importar com a pressa e agitação da Vivi porque estava acostumado com o jeito doido dela.

A Bia virou para a frente e encontrou o Fred lhe estendendo um copo de cerveja com um sorriso divertido no rosto. A Bia não era fã de cerveja, mas álcool era álcool, e ela ia precisar de uma dose para encarar a Vivi, e bebeu meio copo de uma vez, o que fez o sorriso do Fred aumentar.

Ignorando todo mundo, a Vivi foi direto até o Lourenço.

— Eu já estava achando que você era inventado. — Ela deu dois beijinhos nele. — Se bem que a imaginação nem um pouco fértil da Biatriz nunca seria capaz de aparecer com tantos detalhes interessantes.

Sem uma palavra, a Bia secou o resto do copo.

— E você, é? — O Lourenço virou a cabeça de lado.

— Não! — A Vivi colocou a mão no peito e olhou para a Bia como se a prima tivesse cometido o pior pecado do mundo. — Ele não sabe quem eu sou?

— Eu tô brincando. — O Lourenço deu uma risada. — Você deve ser a famosa Vivian.

— Acertou no 'famosa'. — Ela caiu sentada na cadeira vazia do outro lado do Lourenço. — Mas pode me chamar de Vivi.

— Oi, Vivi, tudo bem? — A Bia deu um tchauzinho, chamando a atenção da prima. — E o Fred tá ali. E você não conhece a Roberta.

— Quem quer saber de você e do Fred? — A Vivi fez um gesto desdenhoso, mas se levantou e foi cumprimentar a Roberta. — Olha só, os dois irmãos trazendo os namorados novos pra conhecer a família no mesmo dia.

O Fred, que estava no meio de um gole de cerveja, engasgou e começou a tossir, enquanto uma Roberta de rosto todo vermelho se levantou para trocar dois beijinhos com a sem noção da Vivi.

— A gente não tá namorando — a Roberta explicou, toda sem graça.

— Ainda. — A Vivi levantou as sobrancelhas e voltou para o lugar dela.

— O Marcelo não veio? — a Bia perguntou. Não que o namorado tivesse algum controle sobre ela, mas a Vivi se comportava um pouco melhor na frente dele.

— Caiu nas garras da vovó Célia — ela respondeu, puxando a cadeira para mais perto do Lourenço. — Então, Lourenço, eu tenho um monte de perguntas pra te fazer...

— Vivi! — a Bia exclamou, no que sabia ser somente a primeira das muitas interferências que precisaria fazer na conversa naquele dia.

— O quê? — A Vivi a olhou com cara de inocente. — Você disse que ele trabalha numa academia e eu tô pensando em fazer Crossfit e...

— Se comporta — a Bia falou séria, esperando que a prima entendesse que ela não ia deixá-la colocar o Lourenço no centro das atenções.

— É verdade. — Ela se virou para o Marcelo que vinha se aproximando. — Não é, amor? Eu não disse ontem que eu queria começar a fazer Crossfit?

— Começar hoje e largar a semana que vem. — O Marcelo trocou o sorriso de implicância com a namorada por uma expressão confusa ao olhar os outros convidados na mesa. — Ué? Lôro? O que você tá fazendo perdido aqui?

— Você conhece o Lourenço? — a Bia perguntou mais surpresa que ele.

— Lourenço? — O Marcelo a encarou com os olhos arregalados. — Esse é o seu namorado? Lourenço?

— Qual o problema?

O rosto do Marcelo se endureceu e ele olhou para o Lourenço friamente.

— É melhor você ir embora agora, brother.

O Lourenço levantou, e a Bia o imitou.

— Você tá doido, Marcelo? — A vontade da Bia era gritar, mas manteve o tom baixo para não chamar a atenção. — Ninguém vai embora.

— Claro! — O Fred também ficou de pé, apontando para o Lourenço. — Eu já sei de onde eu te conheço. É que tem tempo, você andou sumido. Eu ouvi dizer que você estava preso, é verdade?

— Claro que não! — A Bia segurou o braço do namorado, estranhamente quieto. — Você tá confundindo ele com outra pessoa!

— Não tá não, Bia. — O olhar do Marcelo a deixou paralisada de medo de escutar o que ele estava prestes a falar. — O Lôro é o meu fornecedor.

— Fornecedor? — Ela olhou para os rostos consternados, esperando uma explicação. — Fornecedor de quê?

O Marcelo não respondeu.

Ninguém precisou responder.

A Bia entendeu sozinha e foi como ser atingida por um raio.

Drogas. Fornecedor de drogas.

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