Capítulo 27
A Bia acompanhou de longe a movimentação do Lourenço, primeiro no banheiro e, depois, na cozinha.
— Você dormiu? — ele perguntou a arrancando do seu torpor.
— Quase.
— Posso acender a luz?
— Espera. — Ela sentou e vestiu a camisa, não por causa dele, mas a janela estava entreaberta e vai que tinha algum vizinho com insônia. — Agora pode.
O estalido do interruptor foi seguido pela claridade invadindo a sala. Ela voltou a fechar os olhos por alguns segundos, antes de os reabrir, devagar. Ele também tinha vestido o moletom e sentou no chão, encostado no sofá, equilibrando uma caixa de pizza, três copos, um deles cheio de guardanapos de papel, e uma garrafa de refrigerante.
— Desculpa a falta de jeito. Se eu tivesse espaço, eu juro que eu comprava uma mesa. — Ele colocou os copos e o litro de refrigerante no chão e a caixa de pizza no colo.
— Eu não me importo. — Ela escorregou para o lado dele, puxando a barra da camisa para se proteger do piso frio. — Pizza de quê?
— Eu não sabia do que você gostava. É metade portuguesa e metade de frango com catupiri. — Ele levantou a tampa da caixa e o cheirinho de queijo se espalhou pelo ar.
— Tá ótimo, obrigada. — Ela pegou uma fatia de pizza de frango e aceitou o copo de guaraná que ele lhe estendeu. — Mas se você tá mesmo interessado em saber, eu prefiro pizza só de queijo.
— Já é — ele prometeu, com um beijo na testa dela. — Você fica bem com a minha camisa, mas, peraí.
Com um sorriso de lado, ele abriu os primeiros botões e afastou um pouco o decote, o suficiente para expor somente o contorno dos seus seios.
— Assim fica melhor.
— Depois você reclama.
— Você achou que eu estava reclamando? Antes? — Ele bebeu um gole de refrigerante e balançou a cabeça com veemência. — De jeito nenhum. Fica à vontade pra me provocar sempre que quiser.
— Já é — ela repetiu a resposta dele com uma gargalhada.
Os dois comeram num silêncio confortável que foi quebrado pelo celular dele vibrando contra a madeira do rack da televisão. Com a testa franzida, o Lourenço o pegou, olhou a tela e apertou o botão que desligava o telefone por completo.
— Por que você não atendeu? — a Bia perguntou com uma fisgada no estômago. — Pode ser alguma coisa urgente?
— Não é importante — ele desconversou, voltando a comer como se nada tivesse acontecido.
Se ele dizia que não era importante, então não era nada importante, e ela não ia insistir. Mesmo que já fossem mais de três da manhã e quem ligava para alguém àquela hora se não fosse um caso de vida ou morte? E isso incluía alguma das antigas mulheres dele que sabia que ele trabalhava até altas horas, procurando, ou oferecendo, companhia.
Se era ou não uma boa ideia se embrenhar por aquele caminho, as palavras escaparam da sua boca antes que ela pudesse evitar.
— Tudo bem se for uma das suas ex... amigas. — Ela jogou o restinho de sua fatia de pizza de volta na caixa, pegou um guardanapo e limpou a boca e a mão. — Eu imagino que muitas delas devem ter seu telefone e eu preferia que você dispensasse ela na minha frente do que ficar me escondendo as coisas.
O olhar genuinamente surpreso que ele lhe lançou a cobriu de vergonha.
— Desculpa — ela balbuciou arrependida por ter estragado o clima tranquilo de poucos minutos antes. — Eu não devia ter falado nada.
Ele também desistiu de comer e colocou a caixa de pizza em cima do sofá, atrás deles, e os copos e o refrigerante em cima do móvel da TV.
— Era um chegado meu e, não me interessa o que ele pode querer comigo a essa hora, o sem noção vai ter que esperar até amanhã. Nenhuma das minhas ex-amigas têm meu telefone.
— Eu não sei o que me deu. — Ela passou as mãos pelo rosto, tentando se reequilibrar. — Ontem mesmo eu te disse que eu não sou controladora, e eu não sou, eu juro. É que com você é... diferente, mas pode ficar tranquilo que você não vai chegar em casa e achar seu coelhinho de estimação cozinhando pro almoço.
— Coelhinho? — Ele franziu a testa. — Isso é código pra alguma coisa?
— Não. Deixa pra lá. — Ela deu uma risada. — É um filme que eu vi com a minha mãe, uma vez. O que eu tô querendo dizer, é que você não precisa ficar se explicando pra mim. Eu vou me controlar melhor.
— O pior é que eu te entendo. Vem cá. — Ele a puxou para o colo dele, onde ela se ajeitou com um joelho de cada lado de uma das coxas grossas. Ele a encarou com uma seriedade que fez um fio de gelo descer pela sua espinha. — Eu passei a noite toda pensando em você e no seu playboy na mesma festa. Ele te encheu o saco?
Na noite anterior, a Bia foi franca com o Lourenço sobre tudo o que tinha acontecido entre ela e o Diego, explicando, inclusive, que eles tinham vários amigos em comum o que tornava impossível não se encontrarem de vez em quando, como na festa do Marcelo. O Lourenço não pareceu ter se importado, mas, ou a Bia tinha se enganado, ou algo tinha mudado desde então.
— Em primeiro lugar, ele não é meu. — Ela não conseguiu evitar o tom defensivo na voz. — E ele estava acompanhado. A gente nem conversou. Se você preferia que eu não tivesse ido porque não falou nada ontem?
— Nada a ver. Claro que não tem problema você sair com os seus amigos. — Ele fez uma pausa, os lábios apertados um contra o outro, como quisesse impedir as palavras erradas de escapulirem contra a vontade dele. — É que eu fiquei imaginando você na sua festa, e como você se encaixa bem melhor com os seus amigos e com o seu ex-namorado do que em qualquer lugar comigo e... sei lá... esquece.
— Não esqueço, não. — A Bia passou a mão pelo rosto dele. Talvez não fosse certo, aquela satisfação secreta em ver que ele também tinha inseguranças em relação a ela, mesmo que de naturezas diferentes, e no caso dele, completamente infundadas. — Se tá te incomodando, eu quero saber.
— Só pode ter alguma coisa errada, Bia. Você só pode ser louca por querer um cara como eu. — Ele coçou o lado do olho. — Eu fico pensando se você não tá entusiasmada porque o sexo é maneiro demais e é tudo novidade pra você. Eu imagino que não vai ser assim pra sempre? O que vai acontecer quando você se tocar que eu não passo da porra de um assistente de personal trainer e um garçom de merda e...
A Bia estava treinada para aquela conversa graças às desconfianças da Vivi. Que ela precisasse defender o Lourenço para a prima não era estranho, ela só nunca pensou ter que defendê-lo para ele mesmo.
— Um cara como você? — Ela sorriu. A lista de qualidades que a atraíam nele era enorme. — Um cara generoso que se preocupa com os outros, super esforçado, que rala em dois empregos, inteligente, carinhoso e que eu tô começando a ver que é muito mais bonito por dentro do que por fora? E olha que o por fora é de tirar o fôlego. Me diz de novo o que tem de errado com um cara como você?
— É disso que eu tô falando. Por enquanto você só vê minhas qualidades, o que vai acontecer quando você começar a enxergar a porra dos meus defeitos?
— O que vai acontecer quando você começar a ver os meus defeitos?
— Você não tem defeitos. — Ele escorregou as mãos pelas coxas dela até chegar ao limite da barra da camisa.
— Claro que tenho. Montes. — A Bia revirou os olhos e segurou as mãos dele antes que elas continuassem subindo, porque aquela era uma conversa em que ela precisava focar toda a sua atenção nele, sem se distrair com os carinhos que ele fazia nela. — Lourenço, eu não tenho experiência com relacionamentos longos. Meu exemplo mais próximo é o dos meus pais. Mês que vem eles fazem vinte e cinco anos de casados. Claro que esse entusiasmo inicial já passou há muito tempo, mas qualquer um que fica perto deles por cinco minutos, percebe que eles não estão juntos por acomodação. Eu imagino que é uma questão de fazer os sentimentos se transformarem e evoluírem ao invés de deixar eles acabarem.
— Do jeito que você fala parece que é fácil.
— Não é nem um pouco fácil. Sabe como eles fazem? Eles não são só um casal. Eles são companheiros. Eles se respeitam, acima de tudo. Eles nunca se colocam como adversários um do outro, sempre jogando no mesmo time, mesmo quando discordam de alguma coisa. A gente pode tentar fazer como eles.
— Você acha que me aguentava vinte e cinco anos? — ele perguntou com um sorriso, o olhar livre do tumulto em que estava alguns minutos antes.
— Eu aposto que eu aguentava muito mais. — A Bia se deitou no peito dele e ele a apertou num abraço.
Quando eles se conheceram ela tinha lutado para não criar nenhuma expectativa em relação a ele. A vida bagunçou tudo de um jeito maravilhoso, e ela não tinha nenhuma dificuldade em se imaginar com o Lourenço num futuro muito mais distante que vinte e cinco anos. Se eles eram diferentes, podiam usar aquilo como vantagem e aprender com as diferenças um do outro, sem contar que seus sentimentos por ele se aprofundavam mais e mais, a cada dia.
Fazia mesmo sentido que ela terminasse com seu tipo preferido, bad boy na aparência e, por dentro, tudo o que ela sempre quis de um namorado.
— Alguma chance de você comprar uma moto nos próximos vinte e cinco anos? — Ela acompanhou a tatuagem no peito dele com a ponta dos dedos.
— Uma moto? — Ele se sacudiu com uma risada. — De onde você tirou essa parada?
— Eu acho que combina com você. Eu sempre tive uma quedinha pelos morenos, tatuados, andando de moto usando jaqueta de couro.
— Jaqueta de couro no Rio de Janeiro?
— Tudo bem. Eu aceito uma jaqueta jeans.
— Eu já tive moto.
A confissão fez a Bia se levantar da sua posição superconfortável, com os olhos arregalados.
— Por que não tem mais?
— O sonho de todo moleque é tirar carteira. Eu sabia que carro não ia rolar e tirei carteira de moto. O primeiro dinheiro que eu ganhei foi pra comprar uma. — Ele balançou a cabeça, com um sorriso divertido. — Não tem nada disso que você tá imaginando. Era um bagaço. Eu gastava mais dinheiro com oficina que com gasolina e acabei vendendo.
— Então você já sabe qual o meu voto se algum dia você estiver pensando em adquirir um meio de transporte. — Ela deu um beijo no coração desenhado no peito dele. — Por enquanto, eu me contento com as tatuagens.
— Você pode perguntar, se quiser — ele ofereceu quando ela voltou a se deitar sobre ele.
— Eu já disse que eu não sou intrometida.
Ela estava se mordendo de vontade de saber a história da Alícia, mas nem morta que ia forçá-lo a fazer alguma coisa que ele não queria.
— Alícia foi a minha primeira namorada. — A confissão dele a percorreu como um choque elétrico, só que gelado. Ela se desencostou dele e o encarou, cruzando os braços. — A gente começou a namorar quando eu tinha quinze anos, e eu tenho certeza que a gente teria ficado juntos pra sempre, se o câncer não tivesse tomado ela de mim, um ano depois.
— Você disse que nunca teve uma namorada. — A acusação pulou antes que ela pudesse pensar em como aquilo era insensível.
— Eu nunca tive — ele explicou, multiplicando a confusão dela por mil. — Isso é o que eu falo pras intrometidas.
Se ele achou que ia melhorar a situação, se enganou redondamente.
Ela tentou sair do colo dele, mas ele a impediu, a segurando pela cintura.
— Eu não acredito que você fez uma tatuagem pra se dar bem. — Ela afinou a voz e continuou extravasando sua indignação, debochando das idiotas que caiam na conversa fiada dele. — Tadinho, o que eu posso fazer pra te consolar? Um boquete? Talvez dois?
A cabeça dele caiu para trás numa gargalhada e a Bia continuou tentando afastar as mãos dele da sua cintura. Claro que a noite não podia terminar bem. Não era aquele o padrão com o Lourenço, um pequeno avanço seguido de um enorme retrocesso?
— Deixa de ser boba, Bia. Eu não fiz tatuagem pra me aproveitar de ninguém. — Ele a abraçou e a obrigou a se deitar sobre ele novamente. A Bia não teve outra escolha porque não tinha como competir com a força dele, mas ficou tensa e atenta pela primeira oportunidade de escapulir. — E como você não é intrometida, eu vou te contar a verdade. Alícia era a minha mãe.
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