Capítulo 21

Dentro do carro estava tão gelado quanto fora, mas foi um alívio sair da chuva.

A Bia e o Lourenço passaram as mãos pelo rosto ao mesmo tempo, e ela retorceu os cabelos compridos, o fio de água ensopando mais a calça branca. Ela não se preocupou com a camisa, também branca, o sutiã de bojo não ia ficar transparente e se ele percebeu, não comentou. Ele estava sério e compenetrado, como na conversa que tiveram na manhã seguinte à primeira vez.

A Bia tirou o celular da mochila antes de jogá-la, junto com o jaleco ensopado, no banco de trás, e ligou o ar quente ao notar a pele arrepiada do Lourenço.

— Eu preciso ligar pro meu pai.

— Você quer que eu espere lá fora?

— Não precisa. — A Bia encostou o dedo no nome do pai da tela do telefone, e ele atendeu no primeiro toque. — Oi, pai, tudo bem?

— Tudo, meu amor. Aconteceu alguma coisa? O seu irmão já chegou.

— Pois é, eu me atrasei e ainda tô na faculdade e, com essa chuva, não vai dar pra chegar a tempo.

— Bia, se eu pudesse, eu esperava.

— Eu sei. Não tem problema.

— Talvez seja melhor mesmo, você começar com um procedimento mais simples.

A Bia sentiu o sorriso na voz do pai.

— Eu não tô inventando uma desculpa — ela disse com um suspiro. Era só o que faltava, o pai pensar que ela estava com medo.

— Tudo bem. — Ele deu uma risada. — A gente conversa em casa.

— Boa sorte com o seu transplante.

— Obrigado, dirige com cuidado.

Assim que a Bia desligou, deu de cara com um Lourenço de olhos arregalados.

— Bia, o seu pai vai ser operado? Claro que você vai, a gente conversa outro dia. Eu posso ir com você, se você quiser?

— O meu pai não vai ser operado — a Bia explicou, prendendo o sorriso, porque a preocupação no rosto assustado era sincera. — Ele vai fazer um transplante, como médico. Ele sempre chama o meu irmão pra assistir. Hoje ia ser a minha primeira vez.

— Outra que eu estrago. — Ele respirou fundo, os ombros subindo e descendo em desânimo.

— Eu vou ter outras oportunidades.

Da mesma maneira que ela teve com ele, ela quase disse. E ele não tinha estragado nada, porque era da tarde de domingo que ela lembrava quando pensava na sua primeira vez. A melhor tarde da sua vida, mas ele não merecia saber daquilo.

Ela não ia marcar quinze minutos no relógio, mas também não permitiria que conversa se alongasse demais e foi direto ao assunto.

— Você quer conversar sobre sábado à noite? — Ela estendeu a mão aberta quando o Lourenço abriu a boca para responder, e continuou antes que ele falasse. — O que eu te falei no telefone foi verdade. Você nunca me prometeu nada, a gente não era nada um do outro, você tem o direito de levar quem você quer, pra onde você quiser. Eu não fiquei chateada com você.

— Então, por que você vazou daquele jeito?

Porque eu fiquei com ciúmes...

Porque eu queria que você só tivesse olhos para mim...

Porque eu queria que você fosse só meu...

Nenhuma daquelas respostas podia ser dita em voz alta, e a Bia pensou por alguns segundos numa alternativa que também fosse verdadeira.

— Eu não quero ser sua segunda opção. Se eu ficasse, era o que ia acabar acontecendo.

— Cara, você tá tão errada. Eu não te mandei aquela mensagem no sábado por falta de opção.

— Então, por quê? Por que você me chamou pra te encontrar? Por que você tá aqui, agora?

Ele coçou a cicatriz do lado do olho várias vezes, e respirou fundo antes de responder.

— Desde a primeira vez que eu te vi no bar, eu meio que fiquei obcecado por você. Você sabe quando você vai num lugar e gosta tanto, que acaba criando uma fantasia e aí, no dia que você volta, é uma merda porque a ideia que você fez na sua cabeça era muito melhor que a verdade? — Depois que a Bia assentiu, ele continuou. — Naquele domingo que você voltou lá em casa, eu tive certeza que isso ia acontecer. Que eu ia ver um monte de defeitos em você, e que você não era aquilo tudo que eu lembrava.

— E não foi o que aconteceu?

— Três vezes, Bia. Uma atrás da outra. — Ele segurou a mão dela, e ela se arrependeu de ter ligado o ar quente. O Lourenço como fonte de calor bastava. — Eu queria poder dizer que é sempre assim comigo, mas não é verdade.

Ela sentiu o rosto queimando e não se deixou arrastar para aquela tarde. Ela já estava confusa o suficiente e o que tinha acontecido entre eles não podia influenciar suas decisões naquela conversa.

— Eu não tô entendendo. Se é desse jeito que você se sente, então por que outra? Você tinha o meu telefone, você não ligou porque não quis.

— Eu quis, pode acreditar. — Ele deu uma risadinha ácida. — Eu voltei pra casa e fiquei olhando o seu quadro e uma coisa que você falou me deixou bolado, que você achou que eu não ia entender e que eu podia jogar fora. Você falou com tão pouco caso, que eu comecei a pensar que você não estava a fim, que o quadro tinha sido uma desculpa pra você me procurar, sei lá, porque você não tinha mais namorado e não era mais virgem e estava curiosa.

— Você achou que eu fui na sua casa pra transar com você? — A indignação fez sua voz sair mais alta do que ela queria. — Lourenço, até você me pedir pra te avisar se eu não quisesse, sexo não tinha passado pela minha cabeça.

— Pode ser, mas foi o que eu pensei. Você mesma disse que foi lá pra fugir do seu ex-namorado, eu tive que insistir pra você me dar o seu telefone e você não pediu o meu. Nem com a minha tatuagem você ficou curiosa. Todas as meninas perguntam quem é Alícia. Sempre. Eu me senti um nada. Eu achei que você não estava nem aí pra mim.

A Bia passou as mãos pelo rosto tentando ordenar os pensamentos. Nenhuma das acusações do Lourenço era verdadeira, o que não impediu que ela fosse tomada pela culpa. Ela tinha se sentido usada e ficou tão envolvida nos próprios sentimentos, que não parou para tentar ver a situação do ponto de vista dele. Que ele também tivesse se sentido usado nunca passou pela sua cabeça. Como poderia? Só se ela soubesse que os sentimentos dele iam além de sexo, uma noção que ela ainda tinha dificuldade para acreditar.

— Lourenço, me desculpa. — Ela envolveu a mão dele entre as suas. Era hora da sua confissão. — Eu nunca pensei que você pudesse se sentir desse jeito. Eu fui na sua casa porque eu também estava meio obcecada com você, mas você mesmo falou que só queria sexo sem complicação. Você não faz ideia de como eu lutei pra não criar nenhuma expectativa. E eu quis saber quem é a Alícia, sim, mas eu não sou intrometida. Se fosse alguma coisa que você quisesse me contar, você ia falar. — Ela apertou as mãos dele, para ter coragem. — Eu me importo com você. Até mais do que eu deveria.

— Eu sei. — Ele tentou passar a mão pelo cabelo dela, mas os dedos ficaram presos nos nós. Um pequeno suspiro de prazer escapou dos lábios dela quando ele desistiu dos cabelos e moveu as pontas dos dedos suavemente pelo seu pescoço, espalhando arrepios pelo seu corpo inteiro. — Você não teria ido embora tão puta, no sábado, se não se importasse. Eu nem consegui ficar bravo com o mermão depois de ver que você ficou com ciúmes.

— Quem disse que eu fiquei com ciúmes?

— Não ficou? — ele se inclinou para o lado dela, a voz grave.

— Talvez — ela admitiu. — Só um pouquinho.

Será que seus olhos estavam brilhando tanto quanto os dele?

Um caminho, que até há alguns minutos não existia, começava a se abrir na sua frente e ela estava quase pronta para dar o primeiro passo. Ele abriu um sorriso e começou a se aproximar, os olhos grudados nos seus lábios. A Bia podia morrer por aquele beijo, mas ele estava muito enganado se achava que ela ia deixá-lo escapar tão fácil e colocou a mão por cima do coração que batia forte.

— Não. — Ela firmou o braço e o manteve afastado. — Você ainda não me disse o porquê.

— Da outra? — Ele se encostou no banco ao receber o aceno afirmativo que ela deu, esfregando o indicador do lado do olho. — Porque depois de passar a semana toda tentando me convencer que mulher é igual a ônibus, que você não precisa se preocupar se perdeu uma porque logo atrás vem outra, eu precisava lembrar pra mim mesmo que sexo é sexo, e sexo você pode fazer com qualquer uma.

A Bia cruzou os braços, o corpo rígido e queimando de ódio com os comentários machistas e preconceituosos.

— Eu espero que você tenha conseguido, porque daqui a um segundo, eu vou te jogar pra fora desse carro e vou embora.

Ele deu uma gargalhada.

— A única coisa que eu consegui provar é que eu sou um otário. — Ele tentou segurar as mãos dela, mas ela resistiu. — Não rolou nada. Ela não era você, e eu não fui em frente.

A irritação da Bia desapareceu num passe de mágica, e ela o deixou descruzar seus braços e entrelaçar os dedos nos dela.

— Então, vocês não transaram? — Ela precisava ter certeza, antes de colocar o pé no caminho.

— Não. Quer dizer, eu cuidei dela, claro. Era o mínimo que eu podia fazer...

— Sério, Lourenço. — A Bia puxou as mãos de novo, porque talvez para ele o que aconteceu com a tal mulher não contasse como sexo, mas ainda era mais que ela conseguia aceitar. — A minha cabeça vai explodir. Eu não sei o que pensar. Eu não entendo o que você quer.

Aquela conversa tinha mais altos e baixos que montanha-russa, com direito a friozinho na barriga e tudo.

— Eu quero você. — Ele desistiu das mãos e envolveu o rosto dela. A Bia não teve alternativa a não ser encará-lo e ver um milhão de emoções queimando nos olhos castanhos. — Você quer exclusividade? Você já tem, nenhuma outra faz comigo o que você faz. Você quer só ficar? A gente fica. Você quer chamar de namoro? Tudo bem, pra mim. Se você quiser casar, a gente vai no cartório agora...

— Deixa de ser ridículo, ninguém vai casar. — Ela tentou soar brava, mas tudo por dentro dela borbulhava com aquele oferecimento exagerado que era o que ela menos tinha esperado ouvir, e o efeito se estragou com o sorriso que escapou pelos seus lábios.

— E aí? O que você quer?

Ele colocou o mundo aos seus pés e ninguém seria capaz de resistir. Aquela história de ficar um tempo sozinha só era válido enquanto ela não tinha a opção de explorar a sua paisagem, sem pressa e, quem sabe, encontrar tudo o que estava procurando.

A Bia acabou com o suspense o empurrando para trás e colocando um joelho de cada lado do quadril dele. As mãos que seguravam seu rosto foram parar na sua cintura, queimando por cima da blusa úmida. Com os vidros do carro embaçados e o barulho da chuva batendo no teto, era como se eles estivessem isolados do resto do mundo.

— Exclusividade, eu quero, com certeza. — As mãos dela subiram pelos braços fortes, passando pelos ombros e foram emoldurar o rosto dele, da mesma maneira que ele tinha feito com ela. — O resto não precisa ter nome, a gente sai, conversa, se conhece melhor e vê aonde vai.

Apesar da enorme vontade de ir com tudo, o sofrimento de sábado à noite ainda estava muito vívido. Ela não ia se arriscar a se quebrar novamente quando nem tinha certeza de ter conseguido colar seus pedaços de volta. Melhor dar um passo de cada vez. O Lourenço era o cara que pegava todas, se comprometer significaria uma mudança radical na vida dele e ir devagar seria bom para os dois.

— Beleza. — Se ele ficou decepcionado, escondeu muito bem. — Mas antes, eu preciso te dizer uma parada. Não. Duas. A primeira é que você me contou que terminou com o seu namorado porque ele não tinha tempo pra você. Bia, eu queria muito poder largar um dos meus empregos pra ter mais tempo, mas eu não posso. Eu preciso dos dois.

— O meu problema com o Diego não foi o tempo que ele passava trabalhando, mas você viu o que ele fez comigo no bar depois que o desfile acabou. — Ela se ajeitou, apoiando as mãos nos ombros dele. — Eu também não acho que você tem que passar todas as suas horas de folga comigo, você tem as suas coisas pra resolver. O que eu espero é que, se você me levar com você em algum lugar, você não me largue num canto, sozinha, a noite toda. Só isso.

— E arriscar que algum garçom abusado fique de gracinha pra cima de você? Nem pensar. — Ele deu um sorriso carinhoso fazendo o coração dela disparar.

— E a segunda coisa? — ela perguntou ansiosa para saber logo e ganhar aquele beijo que ela não o deixou dar.

— Eu nunca fiz nada parecido com isso, Biatriz com 'i'. Eu vou fazer muita merda, até aprender.

— Não tem problema. — Ela riu, tão feliz que podia até flutuar não fossem as mãos dele ancoradas na sua cintura. — Eu já fiz isso muitas vezes e ainda faço merda. A única coisa que a gente tem que lembrar é de continuar com o nosso acordo, conversar com honestidade, sempre.

— Pode ser — ele concordou e vidrou os olhos nos lábios dela de novo.

A respiração da Bia se acelerou e sua boca se entreabriu, involuntariamente, esperando por ele. Ela estava com tantas saudades que o resto da tarde de beijos e carinhos e abraços não seria suficiente para satisfazê-la. E o pior é que nem aquilo ia acontecer, porque antes que pudesse se aproximar, o Lourenço virou de lado e espirrou.

— Foi mal — ele pediu, o rosto espelhando o mesmo desapontamento que a fez murchar como um balão furado. — Eu acho que eu peguei um resfriado.

— Você precisa de um banho quente e de uma roupa seca. — Ela deu um beijo no rosto dele e voltou para o seu banco. — Hoje, quem vai te levar pra casa, sou eu.

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