Capítulo 14
O quarto estava tomado pela escuridão quando a Bia acordou. O coração deu um pulo, mas ela se acalmou ao ver que o despertador na mesinha de cabeceira marcava 6:56. Ainda era cedo.
Não era de se espantar que eles tivessem caído no sono. Até o Lourenço, acostumado a malhar, desabou, exausto, depois da terceira vez, que tinha conseguido ser a mais intensa de todas. As carícias provocantes levaram a Bia ao extremo, ao limite do que ela era capaz de aguentar. Por alguns segundos ela teve medo de morrer, literalmente, de prazer.
Será que sexo era sempre daquele jeito?
Ela já tinha escutado os mais diferentes adjetivos para elogiar uma transa, mas nenhum chegava nem perto de descrever o que havia acabado de acontecer. Comparando com as histórias contadas pelas amigas, a Bia teve a certeza que aquela tarde foi uma exceção à regra.
Uma exceção condenada a nunca se repetir.
Com um frio no estômago, ela levantou o braço do Lourenço passado pela sua cintura e, com cuidado para não acordá-lo, saiu da cama. O vestido embolado no chão foi fácil de achar, a calcinha perdida em algum lugar no meio dos lençóis ia ficar de lembrança para ele.
Na ponta dos pés, ela foi até o banheiro e só acendeu a luz depois de fechar a porta. Era a segunda vez que ela se examinava naquele espelho à procura de algum detalhe diferente em si própria e, como no outro dia, encontrou a mesma Bia de sempre a encarando de volta.
Mas era diferente daquela vez. Ela se sentia diferente, difícil explicar com exatidão. Mais completa? Mais madura? Mais mulher?
O fantasma do toque do Lourenço ainda afetava seu corpo, e a imagem da pele avermelhada nos lugares onde a barba por fazer tinha arranhado trouxe um sorriso ao seu rosto. Ele foi tudo o que ela queria e nem encarar a impossibilidade de repetir a experiência conseguiu diminuir sua satisfação, ou trazer algum arrependimento.
A mensagem do Lourenço foi bem clara e direta, ele não tinha tempo, nem queria, um relacionamento. Por mais difícil que fosse aceitar aquilo, ela lidaria sozinha com o aperto no peito, com o bolo na garganta e com a saudade antecipada, e não iria, de maneira nenhuma, exigir nada dele. O que aconteceu entre eles foi exatamente o que ele disse, sexo sem complicação.
Uma chuveirada cairia bem, mas seria muito abuso sair tomando banho sem convite e usar a única toalha no banheiro, que devia ser a dele. A Bia pôs o vestido, penteou o cabelo e jogou uma água no rosto, sem deixar o cérebro criar nenhuma expectativa sobre o futuro.
Ao abrir a porta do banheiro, a faixa de luz chegou no Lourenço, que tinha se esparramado no colchão, de bruços, abraçado ao travesseiro.
Nos filmes, o homem sempre sente falta quando a mulher sai da cama.
Foi tentador ir embora, quietinha, enquanto ele dormia, evitando uma despedida constrangedora, mas ela resistiu. Até para alguém como ela, com quase nada de experiência em como se comportar numa situação daquelas, parecia de mau-caráter sair de fininho como se estivesse fugindo. Seria diminuir o que tinha acontecido entre eles para algo errado ou ordinário. E talvez fosse ingenuidade da sua parte acreditar que homens e mulheres fossem iguais naquele aspecto, mas ela teria se sentido ofendida se a situação fosse inversa e se fosse ela a acordar no apartamento vazio.
Ela sentou na beirada da cama e, depois de calçar as sandálias, acompanhou com a ponta dos dedos a tatuagem do anjo com as asas abertas que se espalhava pela parte de cima das costas largas. Ele também tinha um relógio, daqueles que os homens usavam antigamente no bolso, na panturrilha da perna direita. Não devia ser só no bar que ele tinha facilidade em arrumar companhia, as meninas da academia deviam dar em cima dele o tempo todo.
Você foi só mais uma, não foi especial e ele faz isso sempre. A Bia repetiu dentro da sua cabeça e continuaria repetindo quantas vezes fosse preciso até se convencer.
— Lourenço. — Ela sacudiu o ombro dele, devagar. Ele acordou com um pulo e a Bia se assustou.
— Foi mal. — Ele se virou esfregando os olhos. — Eu acho que eu estava sonhando. Você tá indo?
— Os meus pais não pegam no meu pé, mas eles se preocupam, e eu saí de casa antes do almoço.
— Você não quer sair pra comer? Você deve estar com fome, o almoço não foi grande coisa.
— Obrigada, mas eu tenho que ir. — Seus olhos estavam ardendo, a garganta arranhando, e não era porque ela estava ficando resfriada. Melhor não prolongar a despedida além do necessário.
— Deixa o seu telefone? — Ele segurou a mão dela.
A tentação era enorme, mas era uma péssima ideia. Se ele não tivesse seu número, ela não precisaria ficar checando o telefone de cinco em cinco minutos para ver se ele tinha ligado.
— Lourenço, você não tem que fazer isso. Tá tranquilo. — Ela não resistiu e passou a mão no rosto dele pela última vez. — Não precisa levantar, eu só queria me despedir.
Num movimento super-rápido, ele passou o braço pela sua cintura, a puxou por cima dele e a deitou na cama. Seu gritinho de surpresa ecoou no quarto silencioso.
Quando ele se deitou sobre ela e segurou suas mãos contra o colchão, a Bia não sentiu medo por estar completamente indefesa nos braços dele. Ele não precisava de força bruta para conseguir o que queria. Ela sabia daquilo. E ele também.
— Um beijo de despedida? — o Lourenço pediu e mesmo no escuro a Bia pôde ver o sorriso no rosto dele.
Ela esperou por um beijo que fosse começar a quarta vez, mas não. Foi um beijo calmo, suave, carinhoso. Digno de um príncipe acordando a princesa.
— Eu tenho que te contar uma coisa. — Ele a soltou e correu os dedos pelos cabelos dela. — Eu não me ligo nessas paradas de rede social, mas eu achei que você devia ser a única Biatriz com 'i' do Facebook, e abri uma conta só pra te achar.
— Sério? — Ela tentou não ficar feliz com a confissão. Seu corpo a ignorou e foi tomado por uma sensação deliciosa chamada esperança.
— Sério — ele confirmou, dando outro beijo nela. — Você não é a única, mas não foi difícil te achar. Quando você não aceitou nenhum dos meus vários pedidos de amizade, eu fiz o meu cunhado olhar as imagens das câmeras do estacionamento daquele dia pra eu pegar a placa do seu carro.
— O que você fez com a placa do meu carro?
— Eu estava tentando descobrir se alguém que eu conheço podia me arrumar um telefone, um endereço, qualquer coisa. Eu queria muito te ver de novo.
— Você me viu de novo.
— Eu vi, mas eu quero ver de novo. Deixa o seu telefone?
Se desastre tinha cheiro, deveria ser parecido com aquele que ela sentia naquele momento, mas a vontade de vê-lo outra vez vibrava dentro dela e como resistir à intensidade daquele olhar que parecia lhe implorar?
— Tudo bem, mas eu preciso mesmo ir embora.
— Sem problema. — Ele tateou pelo chão até encontrar a calça jeans, de onde tirou o celular do bolso. Ele abriu um contato e ela digitou o número. Depois de olhar e se certificar que estava tudo certo, ele se levantou. — Eu vou te levar no seu carro.
— Não precisa. — Ela se levantou também.
— Claro que precisa. Domingo à noite a rua tá vazia. É perigoso.
O coração da Bia pulou outra batida quando o Lourenço andou até a porta de metal, sem hesitação, sem questionamento, e a abriu para ela passar. Os dois desceram as escadas de mãos dadas e em silêncio. Ao chegarem no carro, ele a abraçou.
— Eu tenho dois empregos e trabalho o dia inteiro e à noite, mas eu vou pensar em alguma coisa e te ligo.
A Bia concordou com um aceno de cabeça.
— E obrigado pelo presente. — Ele deu uma gargalhada quando a viu ficando vermelha. — Deixa de pensar bobagem, eu tô falando do quadro.
O rosto dela queimou mais ainda. Depois de tudo o que tinha acontecido, ela tinha se esquecido do quadro.
— Você pode jogar fora se você quiser. Eu não achei que você ia entender e claro que não vai querer ficar se lembrando daquela noite toda hora que olhar pra ele.
— Agora que eu sei o que ele significa é que amanhã mesmo eu vou arrumar um martelo e um prego. Eu nem sei qual foi a última vez que eu ganhei um presente que não fosse das minhas irmãs. Eu gostei muito, de verdade.
— Nesse caso, de nada. — A Bia ficou na ponta dos pés e deu um selinho nele.
— Vai com cuidado — ele disse e a Bia deu um último tchauzinho antes de arrancar.
No primeiro sinal fechado, ela ia dar um jeito de pegar o celular de dentro da bolsa e ligá-lo. Vai que ele resolvia telefonar.
Droga!
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O carro do pai da Bia não estava na garagem e as luzes da casa estavam quase todas apagadas. Ótimo. Ela realmente precisava de um banho e de um tempo sozinha. A conversa com a mãe sobre como tinha sido o almoço com o Diego exigiria que ela estivesse com as emoções em ordem.
Uma fresta de luz escapava por debaixo da porta do Fred. Ela bateu e esperou. Várias situações constrangedoras ensinaram a Bia a nunca, mas nunca mesmo, entrar no quarto do irmão antes de receber permissão clara e explícita.
— Pode entrar!
Só então ela abriu a porta e o encontrou sentado na cama, cercado por livros, com o notebook no colo.
— Olha quem resolveu aparecer. — Ele colocou o computador de lado.
— O almoço foi tão ruim?
— Sorte sua ter escapado. Não, peraí, o almoço foi horrível porque você não estava aqui.
A Bia arrumou um espacinho desocupado na cama e sentou.
— O almoço teria sido pior se eu tivesse ficado.
— Pode ser — ele concordou, massageando o pescoço. — Não fica chateada com a mamãe, ela viu que fez merda.
— Eu não tô chateada. — A Bia passou a página de um livro, sem prestar atenção no que fazia. — Ele falou alguma coisa?
— Não, mas ficou bem contrariado quando descobriu que você tinha saído.
— Não mais contrariado do que eu quando ele ficou se agarrando com uma colega minha, na minha frente, ontem à noite. — Ela olhou o irmão e estendeu a mão, impedindo que ele fizesse o comentário que ela podia ver na ponta da língua dele. — Eu disse contrariada, não com ciúmes. Será que ele achou que uma atitude infantil ia me fazer querer voltar pra ele?
— E não fez?
— Nem um pouco. — Principalmente depois da tarde que ela tinha passado com o Lourenço, reatar o namoro com o Diego estava fora de cogitação.
— Eu tô precisando de um break. — O Fred voltou a massagear o pescoço e ela notou a fisionomia cansada pesando no rosto dele.
Os cabelos castanhos estavam todos bagunçados como se ele tivesse passado a mão várias vezes e ele estava com uma leve olheira — que podia tanto ser resultado da noite na farra ou culpa dos estudos. Ele era só quatro anos mais velho que a Bia, mas com a barba que tinha começado a usar recentemente, parecia ter mais que seus vinte e dois anos.
— Prova amanhã?
— Fisiopatologia, e eu não tenho hora pra parar. — Assim como ela, o Fred tinha escolhido medicina, influenciado pelo pai, médico e a mãe, nutricionista. — O papai deixou dinheiro pra gente pedir comida. Eu pensei naquele frango chinês?
— Pode ser. E yakisoba. — O estômago da Bia roncou alto concordando com ela. — E não esquece a minha banana caramelada.
— Eu nunca mais esqueço a sua banana caramelada, Biatriz. — Ele revirou os olhos. — Uma noite inteira escutando você resmungar por causa de uma banana caramelada vale pro resto da vida.
— Eu vou tomar banho. — A Bia levantou e foi em direção à porta. — Me chama quando a comida chegar.
— Folgada! Você que não presta atenção na campainha pra ver só. Eu como a sua banana toda.
— Encosta na minha banana e você tá morto! Pede uma pra você.
— Mas aí você não fica pilhada.
A Bia entrou no quarto dela e fechou a porta, abafando as gargalhadas do irmão.
Depois de um banho demorado, em que foi impossível não se lembrar de cada coisinha que o Lourenço tinha feito com o seu corpo enquanto ia substituindo o cheiro dele agarrado na sua pele pelo perfume sem graça do sabonete, ela sentou na cama com o celular na mão.
Hora de encarar uma tarefa que ela não podia mais adiar. Cinco ligações perdidas da Vivi, que devia estar uma fera.
— Alô, quem fala? — A prima atendeu no último toque antes da ligação cair na caixa postal.
— Deixa de ser otária. — A Bia riu da implicância boba.
— Biatriz? Minha prima, Bia? Meu Deus, quanto tempo! O que você conta de novo?
— Desculpa não ter ligado antes. Eu estava ocupada.
— Disso, eu tenho certeza. — A Vivi parou com a palhaçada e, com a voz dura, foi direto ao assunto. — Quantas vezes vocês transaram?
Ainda bem que a prima não podia ver seu rosto cheio de culpa.
— Não foi assim. Eu fui lá agradecer pela ajuda dele.
— Agradecer? Fala sério, Bia. — A Vivi deu uma risadinha, que mesmo pelo telefone, ela podia dizer que era de puro desprezo. — Agradecer por ele ter te dado o que você mesma chamou de a pior primeira vez do mundo? Não é porque você não se lembra que não aconteceu.
— Eu não me lembro de tudo, mas eu lembro de alguma coisa. Não foi assim. Ele não é assim.
— Tem razão, eu não conheço ele pra falar, e eu não quero ter essa discussão de novo. Agora me diz, quantas vezes vocês transaram?
— A irmã dele estava lá. Eles estavam cozinhando e me convidaram pra almoçar...
— Conhecer a família por acidente, não conta. Ele te apresentou a irmã porque não teve outro jeito. — A Vivi jogou a realidade na cara da Bia sem piedade. — Quantas vezes vocês transaram?
— Que saco, Vivi! — A Bia extravasou sua frustração socando uma das almofadas que enfeitavam a cama. A Vivi não tinha o direito de estragar o que tinha acontecido, mas não ia desistir do assunto enquanto não recebesse a resposta e a Bia se entregou. — Três.
— Três, hã? — Ela parecia impressionada. — Pelo menos foi bom pra você?
— Todas as três vezes foram ótimas. E com camisinha.
— Menos mal. Agora que você matou a sua curiosidade, você põe isso na sua gavetinha de 'bobagens que você não vai fazer mais' e esquece esse cara, por favor.
— Ele pediu o meu telefone.
A Vivi suspirou tão alto que doeu no ouvido da Bia.
— Eu entendo seu fascínio, juro. Você tá descobrindo uma coisa nova e teve a sorte de achar uma cara que é muito bom. E você sabe por que ele é muito bom? Porque ele faz muito. Com uma mulher diferente por dia! — Cada palavra da Vivi ia matando a esperança dentro da Bia. A Vivi não era a dona da verdade e não era sempre que a Bia acatava a opinião dela, mas, naquele caso, a prima estava certa. — Ele não vai ligar.
— Eu não quis deixar o número, mas ele insistiu. — A Bia jogou sua última carta na mesa, mas ela própria via a fragilidade daquele argumento.
— Ele não vai ligar e, se ligar, é porque o esquema dele não deu certo e ele tá precisando de uma substituta. — A Vivi fez uma pausa e suavizou o tom de voz. — Eu te amo de verdade, Bia, e queria estar errada. Não faz isso com você mesma. Ele não é único bom de transa no mundo, e me acredita, vai ficar melhor quando você fizer com um cara de quem você goste e que também goste de você. Sexo casual não é pra você.
— Eu sei. Você tem razão. — A Bia aceitou a derrota.
Ela concordava com tudo o que a prima tinha falado, exceto com a parte que o sexo podia melhorar. Impossível. A Bia guardou aquela opinião para si própria porque não queria prolongar o assunto. E porque precisava continuar acreditando que tinha sido, pelo menos, um pouquinhozinho especial.
Não foi especial, você foi só mais uma e ele faz isso sempre!
— A comida chegou! — O grito do Fred veio abafado pela porta fechada.
Ela tampou o microfone do celular.
— Já vou! — ela respondeu com outro grito e voltou a falar com a prima. — Eu tenho que ir, senão o Fred come a minha banana.
— Aquele cretino. — A Vivi aceitou a mudança de assunto sem se apertar. — Amanhã eu te ligo.
As duas se despediram e a Bia se deixou cair na cama, o corpo pesado, subitamente sem apetite.
A ligação da Vivi era uma que ela não precisava ter dúvidas que iria receber, mas, por algum motivo, pensar naquilo não fez nada por ela.
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