Capítulo 10

Não foi difícil achar a rua e o prédio. O desafio foi o painel do interfone cheio de botões. Em seu estado de embriaguez na chegada, e no desespero da hora de ir embora, a Bia não fazia a menor ideia do número do apartamento do Lourenço.

Um botão. O que tiver que ser, será.

Ela fechou os olhos e apertou qualquer um. Uma voz masculina, e desconhecida, atendeu.

— Eu tô procurando o Lourenço? — a Bia perguntou.

— O Lôro?

— Isso.

— 504 — a voz informou e o portão eletrônico destravou.

Ela pausou por um segundo segurando a porta entreaberta, ir ou não ir? Mas ela já tinha chegado até ali e subiu as escadas com passos firmes. Ela ia entregar a pintura, agradecer e dependendo da reação dele, e da conversa, talvez convidá-lo para almoçar. O pior que podia acontecer era ele dizer não. Pelo menos, ela ia voltar para casa sabendo que tinha tentado e poderia esquecer de vez que ele existia.

Apesar do auto incentivo, as mãos dela suavam frio ao tocar a campainha. A porta abriu e revelou uma moça morena, mais ou menos da sua idade.

— Oi? — Ela sorriu, simpática e curiosa.

Você é mesmo uma idiota, Biatriz. Como você esqueceu que você foi só mais uma e que ele faz isso sempre?

Claro que ele não estava sozinho.

— Desculpa. Eu toquei no apartamento errado. — A Bia começou sua retirada estratégica e estava abrindo a porta de metal que levava às escadas quando ouviu passos apressados.

— Não! Peraí, Bia! — Alguém segurou o braço dela e a virou.

Ela deu de cara com um Lourenço afoito e atordoado e que, aos poucos, foi abrindo um sorriso.

A Bia achou que se lembrava dele pela foto. Como ela estava enganada...

Ao vivo e de perto, ele era muito mais. Mais alto, mais forte, mais bonito e todos os pelinhos do braço dela se levantaram com o contato da mão grande que a segurava com suavidade. Ela só conseguiu se manter impassível por causa da moça parada na porta dele, acompanhando atentamente a cena no corredor.

— Desculpa — a Bia repetiu, se xingando por dentro por ter se metido naquela situação constrangedora. — Eu não devia ter vindo sem avisar. Quer dizer, eu não podia avisar porque eu não tenho o seu telefone. Eu não devia ter vindo.

— Fica, de boa. — Ele escorregou os dedos pelo braço delicado até segurar a mão dela, como se estivesse com medo de outra fuga.

— Eu não quero atrapalhar.

— Você não tá atrapalhando. — Ele acompanhou o olhar que ela deu na direção da moça. — Eu e a minha irmã estamos tentando cozinhar. Você pode ficar e almoçar com a gente, se você quiser.

Os pés da Bia só se desgrudaram do chão e o acompanharam até a porta depois que ela ouviu a palavra 'irmã'.

— Alexa, minha irmã caçula. Essa é a Bia.

— Oi, Bia. — A Alexa a cumprimentou com dois beijinhos. — Vai ser um prazer ter você pro almoço, mas se prepara, a comida tá ficando uma gororoba.

— Mentira. — O Lourenço deu uma cotovelada de leve ao passar pela irmã, que talvez fosse para ser discreta, mas que a Bia percebeu. — O frango assado que eu comprei tá beleza, e a sua salada também tá ficando ótima, o problema é o arroz. — Ele olhou para a Bia. — Você sabe fazer arroz?

— Eu sou uma negação na cozinha. — Ela acabou com as esperanças nos dois rostos ansiosos pela sua resposta.

— Tranquilo. — Ele fez sinal para a Bia colocar as coisas dela no sofá. — Eu já vi a Mariana, minha irmã mais velha, fazendo arroz milhões de vezes. Eu tenho certeza que o meu vai ficar melhor.

A Bia colocou a bolsa no encosto do sofá e agarrou a pintura com as duas mãos. Ela quase tinha deixado no carro, e a insegurança estava tomando conta dela de novo, mas não dava para dizer que a tela tinha vindo passear.

— É pra você. — Ela entregou o quadro para o Lourenço. — No outro dia eu saí sem agradecer pela sua ajuda, e eu lembrei que você não tinha nenhum quadro na parede, e tá sem moldura, desculpa, mas eu espero que você goste.

Ele apoiou a pintura na frente da televisão.

— Foi você que pintou? — a Alexa perguntou, parada ao lado deles.

— Foi.

— É muito bonita — ela elogiou e foi para a cozinha, deixando os dois sozinhos.

O Lourenço estava com os olhos fixos no desenho e ficou calado por tanto tempo que a Bia começou a retorcer as mãos resistindo ao impulso de virar a tela ao contrário e interromper aquele exame minucioso.

— É muito bonita — ele repetiu as palavras da irmã e finalmente olhou para a Bia. — Você não precisa agradecer, e nem precisava ter me trazido um presente, mas eu tô feliz de você ter vindo. Eu achei que eu nunca mais ia te ver.

A sala pequena parecia ainda menor com aquele homem ocupando o espaço quase todo. A proximidade e a intensidade com que ele a encarava estavam deixando a Bia zonza. E com calor. E como um cara que ela mal conhecia podia fazer o chão sumir de debaixo dos seus pés?

Ele deu um pequeno passo para frente e...

— Lôro, o seu arroz tá queimando! — O grito quebrou o clima e a Bia voltou a respirar.

— Droga! — Ele correu para ir salvar o arroz.

A Bia o seguiu até a porta da cozinha.

— Esse já era. — Ele parecia um menininho que tinha acabado de descobrir que o Papai Noel não existe ao mostrar os grãozinhos marrons agarrados no fundo da panela. — Não tem problema, eu começo de novo. A gente sempre almoça com a Mariana no domingo, mas hoje ela foi pra casa de uns amigos e a Alexa queria fugir.

— Eu não tô fugindo. — A Alexa revirou os olhos, enquanto lavava as folhas da salada. — Eu só não tô a fim de aturar aquele chato do filho deles. Quantas vezes eu vou ter que dizer não pra ele se tocar?

— Como irmão, eu dou o maior apoio pra essa ideia. — O Lourenço pegou outra panela no armário e derramou óleo antes de acender o fogo. — Mas a Mari tá certa, você bem que podia dar uma chance pro coitado, ele tá caidinho por você.

— Grata pelo conselho, mas não — a Alexa disse num tom de voz que encerrou o assunto.

— Não tem que lavar o arroz? — a Bia perguntou ao ver o Lourenço virando o saquinho direto na panela.

— Você também? — Ele balançou a cabeça como se estivesse decepcionado. — Eu nunca ouvi dizer que alguém morreu por comer arroz não lavado. Eu aposto que é frescura e eu vou descobrir um segredo revolucionário que vai economizar o tempo de todos os cozinheiros do mundo.

A Alexa deu uma risada abafada. A Bia só se lembrava do Lourenço tenso e nervoso daquele outro domingo. Essa versão segura de si, descontraída e brincalhona era uma surpresa. Uma surpresa muito agradável.

— Você tem irmãos? — A Alexa deu uma olhadinha para a Bia.

— Um, mais velho.

— Ele também é chato assim?

— Um pé no saco — a Bia respondeu com uma risada. A implicância dos dois não era diferente de como ela era com o Fred. — Eu acho que faz parte.

— Você duas são umas ingratas — o Lourenço reclamou. — Eu aqui me matando pra fazer um arroz pra gente e vocês me detonando.

— Ahh, tadinho. — A Alexa secou as mãos e deu um abraço no irmão.

Por um segundo a Bia cogitou fazer o mesmo. Pelo olhar que o Lourenço deu na direção dela, ele não se importaria, mas melhor não. Pelo menos, ainda não.

Os motivos que levaram a Bia até aquele apartamento podiam estar confusos na cabeça dela, mas uma coisa era certa, naquela cozinha, com duas pessoas que ela mal conhecia, prestes a comer uma comida que tinha tudo para não estar boa, ela estava mais à vontade do que em qualquer outro lugar do mundo e ela também ficou feliz por ter ido.


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O arroz do Lourenço ficou horrível. Duro, sem tempero e com um gosto... eca, mas num reconhecimento pelo esforço dele, a Alexa e a Bia tentavam não fazer careta depois de provarem a primeira garfada e trocarem um olhar aflito. Elas dividiam o sofá, e ele sentou no chão, espremido no pequeno espaço embaixo da janela.

— Pelo amor de Deus! — Ele fez uma careta, colocando a mão na frente da boca. — Não come o arroz. Tá horrível.

— Ainda bem! — A Alexa empurrou o monte de grãozinhos para o canto do prato com uma gargalhada. — Valeu a tentativa.

— Não me leva a mal, mas eu acho que foi a pior coisa que eu comi na vida. — A Bia respirou aliviada por poder parar de fingir. — Mas a salada tá uma delícia.

— Obrigada. — A Alexa sorriu, satisfeita. — De onde vocês se conhecem?

— Do bar onde o seu irmão trabalha. — A Bia economizou os detalhes, e tomara que fosse o suficiente para satisfazer a curiosidade da Alexa, porque, realmente, a história verdadeira não ia dar para contar.

— No dia daquele desfile que você estava doida pra ir — o Lourenço completou.

Os olhos da Alexa se arregalaram.

— Você é modelo?

— Eu? Não, eu não levo o menor jeito. Eu só estava acompanhando uma pessoa.

— Mas deve ser uma pessoa importante. Aquele desfile foi superexclusivo. O meu cunhado é dono do bar e não conseguiu me arrumar um convite. — A Alexa analisou a Bia com um olhar interessado. — Me apresenta?

— Quem?

— A pessoa que estava com você. É que eu sou fixada em tudo sobre moda. O meu sonho é ser modelo, mas é mais fácil o Lôro aprender a fazer arroz que...

— Alexa! Deixa a Bia em paz. O Toninho não te arrumou um convite porque você é de menor. — O Lourenço olhou para a Bia pedindo desculpas. — Não liga pra ela.

— Não tem problema. — A Bia não queria ser mal-agradecida depois que a Alexa tinha sido tão simpática. — Mas não vai dar pra te apresentar porque eu não tô conversando com essa pessoa, desculpa.

— E faz muito bem. — O Lourenço apontou o garfo para a Bia. — Ela é uma péssima amiga se te largou sozinha a noite toda.

— Lourenço! — Foi a vez da Alexa brigar com o irmão. — O Lôro acha que todo mundo ligado à moda é má pessoa. Eu tenho certeza que ela é uma ótima amiga, e que vocês vão voltar a se falar e aí, se você puder, você me apresenta. Agora, me diz uma coisa, o Diego Valdez desfilou naquele dia. É esse aqui, olha. — Ela virou o celular mostrando a foto de uma campanha de perfume em que o Diego aparecia sem camisa e soltou um longo suspiro. — Ele é tão lindo de perto quanto na foto? Eu ouvi dizer que ele tem namorada, mas se eu estivesse lá, eu aposto que eu fazia ele esquecer dela rapidinho.

A Bia tentou não reagir, mas a ironia da situação toda fez a gargalhada vir de repente e ela não conseguiu se segurar, tendo tempo só de tampar a boca ou ia cuspir comida para todo lado. Os dois irmãos a encararam por alguns segundos e trocaram um olhar, provavelmente se arrependendo de terem convidado a louca para almoçar. Ela respirou fundo várias vezes e tomou um gole de suco, recuperando o fôlego.

— Eu não sou louca. — Ela passou uma das mãos nos olhos e secou as lágrimas do riso, segurando a mão da Alexa com a outra. — Desculpa por antecipação se eu vou te deixar sem graça, mas eu juro que eu não me importei. Eu estava no desfile com o Diego. Eu era namorada dele, e você não precisou estar lá pra fazer ele esquecer de mim. Como o seu irmão mesmo disse, eu passei a noite toda sozinha. — A Alexa ficou da cor do tomate da salada, o que não impediu a Bia de continuar. — E eu imagino que o seu irmão esteja errado, alguém ligado à moda deve ser bacana, só que eu não tive o prazer de conhecer nenhum deles. Todo mundo com quem eu tive contato era interesseiro, superficial e todas as palavras gentis que eu ouvi foram totalmente falsas.

— Mas você namorou um modelo? — a Alexa meio perguntou, meio acusou.

— Ele não era modelo quando a gente começou a namorar, e ele ter mudado tanto foi um dos motivos pra gente terminar. E desculpa o ataque de risos, mas é que você não é a única que tá fugindo. A minha mãe convidou o Diego pra almoçar lá em casa hoje e eu saí pra não ter que encontrar com ele.

— Quer dizer que a minha casa virou abrigo de fugitivas? — O Lourenço estreitou os olhos e apontou para a irmã que se encolheu no sofá. — Você? Bem feito, eu já te disse que você fala demais. E você? — Ele apontou para a Bia — Eu continuo feliz por você ter vindo, e você tá certa em não conversar com o babaca que te largou sozinha a noite toda e o seu namoro ia terminar de qualquer jeito, porque o seu ex-namorado é gay.

— O Diego não é gay. — A defesa da Bia foi automática, mesmo que o Diego não merecesse, porque ele era muitas coisas, mas gay não era uma delas.

— É a única explicação. — O Lourenço passou o olhar pelo corpo da Bia e foi a vez dela ficar vermelha quando o significado das palavras ficou óbvio. — E como pagamento pela minha proteção, as duas vão ter que lavar a louça.

— Desculpa. — A Alexa deu um sorrisinho sem graça. — Eu realmente não tenho filtro.

— Não tem problema. Eu não me importei, de verdade. — A Bia levantou. — Eu lavo e você seca?

— Justo — a Alexa concordou e liderou o caminho até a cozinha.

Com a louça lavada e a cozinha em ordem, elas voltaram para a sala e a conversa fluiu sem nenhum outro constrangimento. A Alexa falou quase o tempo todo sobre ela mesma, e, entre outras coisas, a Bia descobriu que ela morava com a irmã mais velha. Foi tentador perguntar o que tinha acontecido com os pais deles, mas pela maneira que nenhum dos dois voluntariou uma explicação, ficou óbvio que deveria ser um tópico delicado e a Bia freou sua curiosidade em nome de preservar o clima descontraído.

Já o Lourenço saia pela tangente sempre que o assunto virava para o lado dele e a única informação que a Bia conseguiu foi que, além do bar, ele também trabalhava numa academia, o que justificava todos aqueles músculos.

Quando a irmã deles ligou avisando que estava esperando a Alexa lá embaixo, a Bia se levantou.

— É melhor eu ir. — Ela pegou a bolsa, com um aperto no coração. Fazia tempo que ela não se sentia tão tranquila e em paz e não estava a fim de ir embora, mas ela tinha vindo sem convite e o Lourenço devia ter programa melhor do que ficar em casa numa tarde de domingo.

— Fica mais um pouco — ele pediu. — Eu queria te perguntar uma coisa. A não ser que você tenha outro compromisso?

— Não, nenhum compromisso.

Será que ele tinha mesmo uma pergunta ou era um pretexto para fazê-la ficar? As duas possibilidades espalharam um friozinho gostoso pela sua barriga.

— Adorei te conhecer, Bia. — A Alexa se despediu com um abraço apertado.

— Eu também.

A Bia sentou enquanto o Lourenço foi levar a irmã até o elevador. Ela escutou os cochichos e as risadas, provavelmente, falando dela, e pegou o celular para se distrair. Nenhuma ligação e uma mensagem da Vivi.

Vivi: Onde vc se meteu?

A Bia quase não respondeu, mas a prima ia ficar preocupada.

Bia: Eu tô em Copacabana

Com os passos do Lourenço voltando, a Bia apertou o botão que desligava o telefone e o jogou dentro da bolsa antes que a prima pudesse reagir.

Ela tinha pedido ajuda no dia anterior, mas naquele momento, nenhum argumento da Vivi ia mudar a certeza de que ela estava fazendo o que precisava fazer. A Bia já tinha perdido tempo demais lutando contra o impulso de procurar o Lourenço e ela não queria se pegar, um dia, se arrependendo por ter sido covarde. Carregar uma experiência, ainda que não fosse boa, fazia a pessoa crescer e amadurecer, enquanto conviver com fantasia e a ilusão do que poderia ter sido, só trazia amargura.

A Bia começou a namorar o Diego esperando um conto de fadas. Com o Lourenço, ela não tinha expectativa que nada fosse acontecer. Ele parecia ser o tipo de cara com os pés bem plantados no chão e inspirava o mesmo na Bia.

Uma coisa de cada vez, foi o conselho dele ao ver que ela passava por uma situação difícil, e ela não duvidava de que era como ele encarava a vida, vivendo o momento, sem esperar nada de ninguém. Era libertador lidar com uma pessoa assim, alguém com quem ela podia ser ela mesma. Ela não podia decepcionar quem não esperava dela mais do que ela podia oferecer, não é verdade?

O que tiver que ser, será.

Ela respirou fundo e se preparou para responder à pergunta dele e deixar rolar.

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