3. Acredite ou não



— Acredite ou não, sua fantasia é uma das mais criativas.

Quase derrubo ponche por cima do meu lençol branco, quando ouço a voz do Timóteo bem atrás de mim.

Eu me viro e ele está bem mais próximo do que eu esperava. Provavelmente para que eu o ouça sem dificuldade no meio da cacofonia de sons festivos.

Meu coração dispara ainda mais forte.

— É só um lençol — falo num tom mais grave, tentando disfarçar a voz.

Abro os braços, uma mão equilibrando o copo com o líquido alaranjado.

— E você a criou sozinha. A maior parte do pessoal comprou a deles na internet ou viu num post do Pinterest.

Ele ri e eu não resisto rir junto.

Timóteo é o filho santinho "dessa-água-não-beberei" adotado pelo pastor da igreja quando ainda era bebê. Teoricamente nós nos conhecemos desde a infância, mas sempre tivemos uma respeitosa distância. Ele sempre foi esse garoto-modelo, alto, moreno, com um sorriso incrível, que sabe a Bíblia de cor e vai madrugadas para o meio do mato orar.

Ou seja, um perfeito candidato a serial killer.

Brincadeirinha. Mais ou menos.

— Ah, isso aqui é clássico Pinterest. Segui todos os passos de um blog — respondo.

Nunca estive tão à vontade com ele. Suponho que seja porque agora a assombração sou eu. E ele não faz ideia de quem está por trás da fantasia.

— É mesmo? Todos os passos?

— Sim! Passo um, pegue uma tesoura. Dois, corte dois furinhos. E olha só o resultado!

— Impressionante.

Beberico um pouco do meu ponche, me divertindo mais com a situação do que deveria.

O Timóteo me encara por uns segundos, com um sorriso intrigado.

— Bem, eu diria para você tirar o lençol para que eu possa conhecê-la propriamente, mas... é melhor assim. É como... um protesto contra a nossa sociedade obcecada por imagem. Gosto de protestos.

— Exatamente a minha intenção — brinco. — E a sua? O que está fazendo aqui? Tipo... a gente não vai na sua igreja fazer festa, por que veio falar de religião aqui?

Timóteo franze as sobrancelhas e olha ao redor, confuso.

— Religião? Acha que estou aqui para falar de religião?

— Não? E essa fantasia de Martinho Lutero?

Ele abre um amplo sorriso e depois suspira, com uma aura satisfeita.

— Olha só. Finalmente. Até agora todos acham que sou um monge pedreiro ou algo do tipo.

— O martelo para pregar as noventa e cinco teses foi uma boa dica. — Indico com o olhar a mão que segura o objeto.

— É que hoje não é só Halloween. É dia da reforma protestante, sabia?

— E você está fugindo totalmente do tema da festa, sabia?

— Como? "O véu entre os mundos"! Poderíamos dizer que a reforma protestante retirou o véu que ocultava todo um mundo diferente.

— Viu? Olha aí você falando de religião.

Timóteo dá de ombros e ri.

— Primeiro, foi você que começou. Segundo, a reforma foi mais do que um ato religioso, sabia? Mudou o mundo nos aspectos social, econômico, cultural. Estudiosos são praticamente unânimes em dizer que foi o que abriu a porta para o modernismo e movimentos intelectuais posteriores. Na verdade, ocasionou uma descentralização do monopólio da igreja para a liberdade individual.

— Blá, blá, blá — Zombo. — Admite logo que veio pra estragar a diversão da galera.

— Eu vim porque.... — começa, com uma expressão divertida. — Porque quando se é apaixonado por algo, não dá pra evitar de querer compartilhar com o mundo inteiro, sabe?

Eu o encaro silenciosa, muito feliz que um lençol está cobrindo minha expressão. Porque parte de mim está achando fofo e imaginando que isso significa que ele postaria na internet 'Em um compromisso sério' assim que começássemos a...

— É como o nosso relacionamento com Deus. — Ele interrompe meu devaneio. — Se somos sérios a respeito disso, precisa afetar todos os aspectos da vida e não ficar apenas concentrado em quatro paredes. Se você acredita que Jesus é o próprio Deus encarnado e alega amá-lo e segui-lo, não acha que isso deveria influenciar mais do que apenas o que fazemos aos domingos? Precisa mudar a forma como pensamos, tratamos uns aos outros, gastamos nosso tempo...

— Religião de novo! — Rio, desacreditada.

— Por que você fica tentando colocar esse assunto numa caixa? — pergunta. — É mais do que religião, não entende?

Ele tem a mesma paixão nos olhos castanhos e na voz que conheço de quando fazia seus discursos na igreja. Sobre assuntos que o comovem. Justiça. Arte. Ajuda ao próximo. Devoção.

Por que isso mexe tanto comigo?

— É como o oxigênio. Oxigênio não é algo reservado a uma sala de aula ou a uma prova de Biologia — ele continua. — É algo que faz toda a diferença em todos os aspectos da vida, mesmo que não acreditemos nele ou saibamos de sua existência e, especialmente...

— Especialmente quando ele te falta — completo, ofegante.

Timóteo me encara sério e depois sorri, evidenciando uma única covinha na bochecha esquerda. Ele olha para o chão e depois para os meus olhos por trás dos furinhos do lençol. Sorrio também, embora esteja evidente de que ele não possa ver. A forma como os olhos dele brilham olhando para mim é algo que nunca pensei conseguir causar num garoto sem... sei lá, estar vestida como uma enfermeira sexy?

— Sim, especialmente quando te falta — ele concorda.

Que estranho. Uma única conversa e um rapaz como ele parece enxergar algo de valor em mim, mesmo sem me enxergar.

Ele pigarreia quando o silêncio se torna constrangedor e eu disparo:

— Enfim.... Do jeito que você fala da reforma, até parece um pouco idiota comemorar.... isso aqui. — Abro os braços e indico com as mãos o salão. — Seja lá o que estamos comemorando. Você acha errado ir a festas assim?

— Acho que... as pessoas só estão aqui porque querem se divertir — ele diz suavemente.

Engulo em seco com a proximidade. Suponho que ele não sinta o mesmo por causa do véu branco que nos divide?

— Não sei. Eu, pessoalmente, queria... — digo, gaguejando um pouco. — Queria me fantasiar e fingir só por uma noite que não sou quem sou e minha vida não é o que é. Queria por uma noite ser interessante e... digna de um story no Instagram com pessoas bacanas. — Rio alto. — Soa tão babaca agora.

Ele dá de ombros.

— Acha que é mais babaca do que se fantasiar de monge pedreiro? — Ele dá uma voltinha se exibindo e balança o martelo.

Rio novamente.

— Mas por que Martinho Lutero? — pergunto. — Só por causa do dia da Reforma?

Ele abaixa o olhar e parece refletir.

— Acho que a maior parte de nós passa pela vida como zumbis...

— Com vontade de comer cérebro?

— Semi-vivos — continua, ignorando o comentário, embora o canto dos lábios denuncie graça. — Aceitando tudo como nos é dado. Mas aqui está um cara que olha para o mundo e diz: "Assim não! Minha razão e minha consciência não me deixam aceitar o mundo como é, mesmo que isso custe minha vida!" Um rebelde com causa.

— Isso é muito legal — admito, olhando para os lábios dele. — Mas confesso que nunca pensei que ia te ver defendendo rebeldia.

Timóteo pisca os dois olhos algumas vezes, parecendo surpreso e demoro para perceber por quê. Estou distraída porque, por cima do ombro dele, vejo que a Carol se lembrou que existo e está me procurando.

Droga, e se ele lembra dela e de que é minha amiga? Ela só visitou a igreja uma única vez. Na época eu só queria que ela percebesse que ser crente não é tão esquisito assim. Embora, convenhamos, seja.

— Espera, a gente se conhece? — ele pergunta ao mesmo tempo que a Carol me alcança e me puxa pelo braço.

— Precisamos ir! — ela diz e no meu ouvido, sussurra: — Você é louca?

— Quem é você? — ele grita para mim mais alto que a música conforme me afasto.

— Por que você não vai orar no meio do mato? Se for pra ser, Deus vai te revelar! — Carol responde e dou risada baixinho do desaforo, embora esteja um pouquinho ofendida.

Timóteo desvia o olhar de mim e se concentra na noiva ensangüentada.

— Pode deixar que vou pedir sim... — ele responde. — Carol, né?

Minha amiga abre a boca, provavelmente chocada por ele saber quem ela é. Ele me encara com humor nos olhos e não consigo evitar de sorrir.

Algo me diz que Deus vai responder a essa oração.

— Como você sabe? — minha amiga para de me puxar e pergunta.

— Você é melhor amiga da menina que eu gosto. Ela te levou na igreja. E há alguns meses a vi cantar na igreja e. Sei lá. Tenho pensado muito nela.

Paraliso.

E então disparo, chocada:

— Ah, nem vem. Duvido!

— Como é? — ele grita de volta.

— Você disse que quando se está apaixonado, não dá pra evitar de compartilhar com o mundo, certo? — repito as palavras.

— Sim, mas... talvez eu estivesse orando, pedindo a Deus sabedoria e oportunidade para tomar um passo.

— Assim você me decepciona, Martinho. Tem coragem de arriscar a vida para mudar o mundo, mas não tem coragem para se declarar para uma menina?

— Na próxima vez que vê-la. Prometo — ele diz, sério, alcançando minha mão com dedos quentes e a segurando por uns instantes.

A promessa me mantém acalentada até chegar em casa e entrar de mansinho, sem acordar os meus pais.

O que me surpreende na manhã seguinte é subitamente não ter mais o desejo de ser outra pessoa ou ter outra vida.

Talvez, em vez de me esconder por trás de um véu, eu deva ter a coragem de enxergar a minha vida pelo que ela é, mas não necessariamente aceitar que permaneça assim. Reformar o que precisa. Encarar o mundo e decidir por mim mesma — não pelos meus pais, não pela igreja, nem pelos meus amigos e redes sociais — no que acredito e no que isso implica. Porque se o oxigênio, ou Deus, é real, isso não pode ser só uma teoria. Precisa mudar tudo.

Ter a coragem para fazer o que é necessário, custe o que custar.

E talvez até mesmo compartilhar com certos olhos castanhos uma ou outra oração no mato. Esquisito como é. E, quem sabe... algo mais.



* * *

FIM

[3.000 palavras]

NOTA DA AUTORA:

SIM, eu sei que o conto é curtinho. Limite de palavras, lembra? Perdão. Amem os desafios, eles mantém a veia criativa pulsando.

Obrigada pela atenção e pelo carinho! 

Não se esqueçam, meu romance SONS DE FERRUGEM & ECOS DE BORBOLETA sairá nos formatos áudio, físico e digital pela editora PILGRIM no ano que vem. Me sigam no Instagram (@mimapumpkin) para ter todas as novidades em primeira mão! 

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top